Ricardo Rato Baltazar: Solo na Aguja de la S

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O escalador gaúcho (e brasileiro) Ricardo Baltazar de Oliveira está novamente na Patagônia, para a sua terceira temporada de escaladas e devaneios na região. O plano de Ricardo é permanecer por lá até fevereiro de 2013, num total de 3 ou 4 meses. Ele preferiu não detalhar objetivos específicos, afora o básico, ou seja, “escalar muito”. Neste ano, Ricardo recebeu um estratégico apoio em equipamentos da empresa Conquista, o que lhe deixa em melhores condições para enfrentar as belas e exigentes montanhas da Patagônia. Ao longo da temporada, Ricardo deverá enviar os seus já tradicionais relatos para o Alta Montanha, contando um pouco de suas desventuras e dos acontecimentos por lá. Desejamos sorte e sucesso ao nosso grande parceiro Ricardo Baltazar nestes meses que estão por vir.

Texto: Ricardo Baltazar       

Introdução: Eduardo Prestes
 
E apenas uma semana depois de sua chegada em Chaltén, já recebemos a primeira narrativa de Ricardo, após escalar em solitário a Aguja de la S. Esta agulha de 2335 metros está localizada no cordão de montanhas do Fitz Roy, logo ao lado da Aguja Saint-Exupéry. A primeira ascensão desta agulha aconteceu apenas em 1968, por escaladores franceses. Desde então, a cada temporada, esta agulha tem recebido ascensões, de escaladores de todos os níveis, cada qual buscando a rota mais adequada ao seu objetivo. Em comparação com seus vizinhos, a Aguja de la S parece acanhada. Mas, como sempre, as dimensões na Patagônia enganam. Na face leste, as vias da Aguja são relativamente curtas e acessíveis, com cerca de 350 a 400 metros em rocha, mais a aproximação pelo glaciar. Entretanto, as vias da parede oeste partem do fundo do Vale do Torre e alcançam quase 1000 metros de extensão, sendo bem mais seletivas em termos técnicos. Assim, o cardápio oferecido pela Aguja de la S é variado, englobando desde vias moderadas e de rápida realização até linhas mais complexas e longas, em gelo e rocha. 
 
De certa forma, Ricardo conseguiu conciliar um pouco destes dois mundos. Ao optar pela Via Austríaca, uma linha moderada nas faces leste e norte, com cerca de 450 metros, a idéia era fazer um aquecimento e um treino inicial para a temporada. Em compensação, ao decidir realizar a via em solitário, e sem segurança na maior parte do tempo, Ricardo acrescentou um grau maior de dificuldade, tanto na parte física como mental. O que poderia ser apenas uma investida despretensiosa acabou se tranformando em uma arriscada conquista pessoal, uma vez que Ricardo ainda não havia escalado desta forma na Patagônia. Lendo este primeiro relato da temporada, é possível perceber a seriedade de cada decisão que se toma nas montanhas. Alguns segundos ou uma pequena dose de sorte podem ser a diferença entre a tragédia e um retorno tranquilo.      
 
 
Pues, aqui estou eu mais uma vez, na Patagônia. Não sei se é paixão, vício ou falta do que fazer mesmo. Peguei o voo para Buenos Aires no dia 6 de novembro, paguei o inevitável excesso de bagagem, viajando com as cargueiras cheias de tralhas, depois mais uma noite "divertida" zanzando no aeroporto de Buenos Aires, fazendo amigos e mandando uns mails. Às 6 da manhã, peguei meu voo para Calafate, daí foi aeroporto,, ônibus e enfim, Chaltén ! Cheguei na tarde do dia 7, cansado e meio torto, e instalei meus dois bivaques: um no camping e o outro no bar, para saber o que anda acontecendo por aqui.    
 
A economia está meio louca na Argentina, os preços subiram muito desde o ano passado e o peso argentino está valendo pouco. Um dólar no câmbio oficial está uns 4,35 pesos, mas os hotéis pagam 5,50 pesos. Vale mais vir com dólares no bolso para cá do que depender de repasses bancários. Já nos primeiros dias, houve uma reunião dos "porteadores", para subir os valores dos serviços. Está todo mundo meio apavorado, oxalá tenha bastante trabalho. Encontrei meu amigo Victorio Godoy, el Cabezón, e já assuntamos alguns planos para as próximas semanas.
 
Estar em Chaltén me traz sentimentos contraditórios. Por um lado, é como voltar para casa, pois já estou ambientado com o lugar. Mas por outro lado, tem um pouco de exílio também, é difícil ficar longe das pessoas das quais a gente gosta, e que gostam da gente. Nem sempre é fácil administrar isso. Um dia desses, andei até passeando com uma garrafa de "Old Smuggler" embaixo do braço, capotando aqui e ali. Bom, ao menos não fui o primeiro, o Jim Donini e o Gregory Crouch, dois caras com muitas histórias nos ombros, fizeram uma homenagem ao velho Smuggler em uma conquista na face norte da Poincenot. O Vinícius de Moraes uma vez definiu o whisky como o "amigo engarrafado". Eu não vou tão longe, mas tudo tem a sua hora.
  
Nestes primeiros dias, com o clima ruim, foi inevitável meditar ainda sobre estas escolhas que eu faço, como voltar para Chaltén depois de gastar todas minhas economias nos andes peruanos, no meio do ano. Como resumiu o Lionel Terray no título do seu famoso livro, somos "Conquistadores do Inútil". É meio doida essa vida nas montanhas, a gente nunca sabe o que vai acontecer depois. Por enquanto, é ficar feliz quando tenho o que comer e vamos peleando. 
 
Com todas estas coisas na cabeça, amadureci minha primeira investida na temporada. A partir do dia 14 estava prevista uma janela de bom tempo e a movimentação começou. Tive alguns convites para parcerias, porém minha opção foi tentar alguma coisa em solitário. Queria me perder uns dias em meio ao granito e ao gelo, com meus pensamentos.   
 
A bola da vez foi a Aguja de la S. Primeiro porque é uma agulha que eu ainda não havia visitado. Segundo, eu sempre tive interesse em caminhar e conhecer essa quebrada da Laguna Sucia. Olhando desde cima, da Laguna de los Três, parecia um lugar inacessível e de uma beleza ímpar. Em terceiro lugar, precisava eleger uma rota moderada, onde eu não corresse um risco tão grande de quebrar o pescoço escalando sozinho. Ao longo do ano, estive escalando mais em gelo e fiz algo de esportiva, mas pouca coisa de tradicional. Eu precisava me adaptar de novo à Patagônia, testar um pouco os músculos e engraxar as juntas. Optei pela Via Austríaca, que inicia na face leste e termina na norte, com um "recorrido" de uns 450 metros na rocha, mais aproximação e rampas de gelo.
 
Decisão tomada, arranquei tarde de Chaltén, para uma parada no abrigo de Rio Blanco, um casebre de madeira na borda do mato, a leste do cordão do Fitz Roy. Este casebre aparece naquele filme do Herzog, Scream of Stone, é onde morava o eremita doido. Qualquer semelhança … Não uso relógio e o último celular que tive foi roubado há dois anos. "Por supuesto", não tinha como ver as horas. Só me dou conta disso no abrigo. Ali encontrei uma maca, daquelas de carregar feridos ou caras em estados piores. Como não levava isolante, apoiei a maca entre dois bancos e tirei uma sesta macanuda, acho que até umas 11 da manhã ! Dormi com a porta do abrigo aberta, para ventilar. De manhã, um turista inventou de meter a cabeça dentro do abrigo, para dar uma conferida. O cara então viu aquela figura enroscada num saco de dormir, em cima de uma maca, sozinho com as ratazanas, num casebre no meio do mato. Se ele leu o livro do Krakauer, deve ter lembrado do Alex Supertramp !!! Eu pressenti que o cara estava só me sacando, eu mirava meio de revesgueio de dentro da bolsa, aí meio que para sacanear, dei um pulo da maca e soltei um berro, o bicho quase caiu para trás, proferiu uns palavrões sei lá em que idioma e rasgou trilha acima ! Foi engraçado, mas eu fiquei sem saber as horas …
 
A aproximação pela Laguna Sucia é massa. Ela fica num buraco, aprisionada entre encostas imponentes e bem verticais. O caminho segue ladeando uma das margens e a gente vai curtindo as avalanches, que parecem marcar o ritmo. Mais ao fundo, é preciso trepar um "acarreo" longo em direção ao glaciar, e a seguir chega-se ao ponto de bivaque. Bom, isso se o sujeito não se perder, como aconteceu comigo. Vaguei um tempo, alcancei a borda do glaciar, estava anoitecendo, voltei um pouco e encontrei uma pedra com uns arbustos em volta, "vai ser aqui mesmo".  A noite foi curta. Despertei às 2 da manhã, soquei um panelaço de massa com sardinha na goela e me arranquei para o glaciar.
 
Queria estar cedo no pé da via, pois se fosse necessário me auto-assegurar muito, a escalada iria demorar. Mas isso acabou não acontecendo. Cruzei o glaciar, o que é um processo sempre divertido quando se está sozinho e não há rastro algum para seguir. Cheguei ao pé da via lá pelas 6 da manhã, já com o primeiros raios de sol. Bom, esclarecendo um detalhe, eu não estava a esta altura adivinhando a hora nem pelo sol ou pelas estrelas, como um índio. Acontece que havia descoberto que a máquina fotográfica tinha um relógio. Hehêe ! 
 
Na base, parei uns minutos para descansar e me equipar, preparando-me para solar uns 150 metros de rampa de gelo a 60 graus. O verão não chegou ainda por aqui e havia bastante gelo acumulado. Subo um pouco e encaro o primeiro monstrengo que me bloqueia o caminho: uma "rymaia" com uma boca escancarada feito um Godzila ! Esquerda ou direita ? Uni duni tcherere tchê ! Escolhi safar o pelego pela extrema-direita, porque o bicho estava feio e tentar escalar essa rymaia seria um mondongo meio duro de pelear. Bueno, desviei da fenda e quando achei que dava para seguir, plantei meu bastão de caminhada no gelo, pensando em resgatá-lo na volta, e comecei ganhar altura. Havia subido um tanto quando, do nada, escuto um trovejar e logo a seguir um "bruuuuummmvummmm !" A porra da parte de cima da rymada desabara inteira, sepultando para sempre meu bastão de caminhada. Foi uma avalanche pesada, com blocos de gelo do tamanho do casebre meia-água no qual eu havia dormido em Rio Blanco ! E eu ali, grudadito nas pontas dos crampons e piquetas, só tive tempo para me despedir do meu bastão e seguir escalando, tentando não processar muito o que acabara de acontecer. Um cigarro a mais no bivaque ou uma demora de uns minutos por qualquer motivo e tchau alemãozinho ! Estava lá até agora, congelado no glaciar. Bueno, não era a minha hora, safei-me, mas essa foi por pouco. Fica a dica: evite dar mole abaixo de rymaias. 
 
Saindo do gelo, alcanço a primeira parada da via, com rocha solta, blocos fraturados, fissuras, amo muito tudo isso, estou em casa. Subi solando este largo, depois reboco a mochila com a única corda que carrego, uma 8 mm com 40 metros. Mais acima, encontrei as fendas estupidas de neve e gelo. Sem pestanejar ou "embrabar", parti para o auto-asseguramento. Trinquei os dentes, e foi um sobe, amarela, desce, sobe de novo, passa o lance, mas aí desce mais uma vez porque a mochila trancou, solta a mochila, sobe a terceira vez, puxa a queridinha, dá umas cuspidas para o lado, tira uma foto só para ver a hora, abre a gaita e segue o baile, porque o fandango não pode parar. Depois deste entrevero, fui solando tudo, muito massa, fissuras boas, granito de qualidade, tempo bom e exposição. Cheguei no colo com a Saint-Exupéry às dez da manhã. Cedo. Descansei, hidratei, e empolgado, me agarrei na rocha para os últimos 150 metros da via. Tinha umas passadas de 4º e 5º graus, fui subindo rápido, quando uma baforada vinda do Torre fez ranger a porteira no alto da De La S. Surpreendido pela rajada, descolei como um adesivo seco no vidro, balancei na munheca, mas voltei. Agarrei-me na rocha de novo e desescalei até um degrau, como um gato (ou como um "Rato", no meu caso) que levou um baldaço de água fria. Deixei baixar um pouco a pressão, olhei para cima, analisei se seguia solando and I say: no and no and no ! Pela segunda vez, montei meu auto-seguro e parti contra o meu companheiro vento, desta vez com melhores armas. O largo saiu fácil.      
 
Deixei a corda fixa na parada, porque me deu preguiça de baixar tudo de novo, para soltar a corda e buscar a mochila. Até o cume, a via aparentemente seguia por uma canaleta fácil, protegida do vento. Claro que a coisa não foi bem assim, tinha uma paredezita bem vertical que eu não enxerguei de baixo, mas encarei os regletes e cheguei no cume da Aguja de la S, lá pelas 12 horas do dia 16 de novembro. Foram umas 5 horas de escalada. Um vento frio castigava um pouco no topo, estava meio chato ficar lá em cima, exposto, porém o dia estava ensolarado e o céu limpo, o que me permitiu tirar boas fotos.  
      
Faltava ainda a outra metade do caminho. Os rapéis foram sendo resolvidos na medida em que se apresentavam os problemas. Foi osso. Para descer 450 metros com uma só corda de 40 metros, foi preciso chamar na criatividade, aprendi alguns truques novos.
 
Deixando a rocha para trás, cruzei a "mardita" rymaia, que não me saiu da cabeça o dia inteiro. Desescalei me auto-assegurando a partir de um "hongo" de gelo, construído com muuuuito carinho por alguém muuuuito cagado!
 
Vencida a tal rymaia, mandei um palavrão em homenagem a ela, mas a curiosidade bateu. Voltei um pedaço para dar uma "mirada" num buraquinho do tamanho de um copo que havia no chão. A vista lá dentro não tinha nada de animadora, o bagulho era um portal para outra dimensão. Lembrei na hora do Joe Simpson, aquele maluco que caiu numa greta na Cordilheira Branca e conseguiu se salvar depois de rastejar por dias até o acampamento. O que eu vi foi um palácio do oriente, azul, imponente, profundo, pronto para engolir qualquer incauto, com umas figuras flutuando lá dentro, era um troço sinistro mermão !!! 
 
Afastei-me com respeito e envergonhado de ter xingado tamanha obra. Olho para cima e me despeço da Aguja de la S, obrigado pela acolhida ! Foram 4 dias sozinho na montanha. Os deuses permitem que visitemos a sua morada, mas lá não podemos ficar. Aos poucos, vou saindo do meu transe e desse universo paralelo, rumo ao mundo dos mortais outra vez. 
 
E foi mais ou menos assim esse "causo" …
 
Para encerrar, gostaria de fazer um registro especial. Para esta temporada, recebi um apoio da Conquista Equipamentos para Montanhismo. Foi uma ajuda que chegou em boa hora. Depois de uns anos de estrada, meus equipamentos estavam bastante surrados. A reposição foi fundamental. O Edemilson é um cara que conhece a Patagônia, escalou coisas importantes por aqui e em outros lugares, então fico particularmente grato e honrado por ter merecido um voto de confiança desse pessoal. Valeu !
 
 
Ricardo Baltazar de Oliveira
 
 
 
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Sobre o autor

Texto publicado pela própria redação do Portal.

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