Nangma Valley – Segunda Parte

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Com previsão de bom tempo para os dias seguintes, a vontade de ficar no campo base não era muita. Ainda assim, para favorecer uma aclimatação “by the book”, forçamo-nos a passar por ali dois dias antes da nossa primeira incursão aos fundilhos do vale. A curiosidade espicaçava-nos o espírito, já que as nossas passeatas nos tinham levado a espreitar o que haveria por ali, ou seja…já tínhamos avistado o terço superior do Kapura.

ACLIMATAÇÃO

Com previsão de bom tempo para os dias seguintes, a vontade de ficar no campo base não era muita. Ainda assim, para favorecer uma aclimatação “by the book”, forçamo-nos a passar por ali dois dias antes da nossa primeira incursão aos fundilhos do vale. A curiosidade espicaçava-nos o espírito, já que as nossas passeatas nos tinham levado a espreitar o que haveria por ali, ou seja…já tínhamos avistado o terço superior do Kapura.

Assim, ao segundo dia, carregámos as mochilas com o necessário para passar 2 ou 3 dias em terreno desconhecido… e que bem carregadas estavam, 27kg para cada um, quando saímos do campo base! A experiencia é sempre a mesma, na primeira vez, levamos tudo em excesso, ou seja, alguma roupa a mais e…muita comida a mais!

 Obviamente, a marcha de aproximação ao glaciar foi lenta, não diria penosa porque as vistas roubavam a nossa atenção e enquanto os nossos olhos repousavam nas maravilhosas paisagens cada vez mais nevadas, o nosso corpo não sentia o cansaço.

 Quando chegámos ao branco gelado declarado do glaciar, vimos pela primeira vez o fecho do vale, todo um circo glaciar de aspecto agreste e selvagem.
– UAU!!! Espectáculo! Olha para aquela face! Daniela, aquela é a linha! – Exclamava o Paulo, esbaforido.

 Lançámos a âncora e montámos a nova tenda da RAB, analisando bem a quantos metros teríamos de estar da vertente adjacente, para que os calhaus que rolavam frequentemente daí, não abrissem o primeiro buraco no tecido do nosso refúgio amarelo. Mais importantes que o tecido da tenda eram, obviamente, as nossas cabeças. Já perfeitamente instalados apreciámos o lugar idílico onde nos encontrávamos. Pouco depois… “zrrruuuuuummmm!”

– Hummmm, como vês não estamos assim tão longe da vertente! – Dizia o Paulo. Ambos avaliámos a distância a que os calhaus paravam de nós – Será de mudar para mais longe?
– Os calhaus que vê-mos mais perto ainda devem estar a uns bons 30 ou 40m! – respondi.
Entre dúvidas, optámos pela opção mais preguiçosa: deixar a tenda onde estava. Escusado será dizer que várias vezes fomos obrigados a espreitar o exterior, sempre que o rolar de pedras provocava rugidos maiores.

 Passámos a primeira tarde na tenda a hidratar e a observar as imediações. Procurávamos algum objectivo mais “humano” para a aclimatação. No entanto, grande parte das montanhas estava demasiado seca e as “rolling stones” eram mais que muitas.

Após (des)ponderadas algumas opções de aclimatação, percebemos que a nossa melhor opção seria aclimatar na própria via, subindo a um óbvio colo que estaria a cerca de 5700m. Como imaginámos que o colo poderia ser demasiado apertado para dormir, e como os dias de bom tempo eram muitos, decidimos no dia seguinte reconhecer apenas o glaciar até à base da via e só no outro dia fazer um “toca e foge” ao colo, regressando directamente ao campo base. Ou seja, passaríamos no total duas noites no glaciar a cerca de 5000m e roçaríamos por uns breves instantes os 5700m.

 Cumprindo o plano à risca, no dia seguinte iniciámos a nossa incursão pelo glaciar aos primeiros sinais da luz da manhã. Seguindo o instinto, rapidamente chegámos à base do Kapura. Aí tomámos o nosso tempo para observar como chegar ao colo. A opção imaginada inicialmente estava decididamente excluída, uma rampa de gelo empinada que parecia dar acesso directo ao colo, terminava com um bom largo de rocha/chaminé com aspecto difícil. Para ajudar à decisão, não fossem ainda existir algumas dúvidas, reparámos que essa chaminé era ponto de passagem das pedras que frequentemente se desprendiam de zonas mais cimeiras da vertente.

À esquerda, surgiu a segunda opção, uma rampa inclinada de cascalheira levava a uns neveiros que se adivinhavam bem gelados. Não tendo a mínima ideia das dificuldades que iríamos encontrar, esta era a única opção que nos sobrava.

 No dia seguinte, muito perto das quatro da manhã, já tínhamos cruzado o glaciar e estávamos plantados na base da montanha, dispostos a fazer uma tentativa de chegar ao colo.
Ainda na escuridão, encontramos um fácil acesso para iniciar a subida da primeira vertente. Surpresa. O terreno não era tão empinado quanto parecia desde baixo o que nos permitiu um avanço relativamente rápido.

Entretanto, o dia clareou e foi fácil intuir qual a melhor linha de acesso ao colo. Depois da cascalheira, seguiram-se largos de gelo duro, e algumas zonas de terreno misto fácil mas, nalgumas passagens, aéreo e exposto. Com a inclinação de gelo que encontrámos, a técnica piolet-tracção foi quase sempre obrigatória, o que para aclimatar e a cerca dos 5500 metros me fez arfar e pensar bastante.

 “Se assim, de mochila quase vazia vou a arfar desta maneira, como vou escalar isto de mochila carregada, quando tentarmos o cume?”. Tentei colocar de lado as reflexões pessimistas e concentrar-me apenas na progressão. “Endireita as costas que respiras melhor, controla a respiração, não queiras ir demasiado rápido, deixa o piolet fluir…” Uns 4 largos mais acima, já com o sol a tocar na vertente, estávamos bastante perto do colo. Faltava um largo em travessia e outro de gelo.

Entretanto, desde as sete da manhã começamos a ouvir o típico rolar das pedras que se soltavam. Na reunião, quando olhámos para cima, percebemos que do nosso lado esquerdo se empilhavam literalmente toneladas de rocha degradada. Torres enormes que pareciam estar ali num precário estado de equilíbrio. Na travessia que iríamos de seguida realizar teríamos de ser rápidos. Rápidos e com o “timing” certo para não sermos apanhados por um qualquer pedregulho que decidisse abandonar as alturas e rolar para cotas mais baixas. Sessenta metros depois, estávamos a um escasso lance do colo. Pelo avançado da hora, para acelerar a descida, decidimos que só o Paulo subiria a espreitar e o mais rápido que conseguíssemos, desceríamos até ao glaciar.

 Assim foi, e as notícias do colo foram: “Creio que vai dar para dormir…isto é, para bivacar! O colo é super apertado, mas pode ser que consigamos montar uma mini plataforma que dê para descansar. Com sorte, ainda pode ser que dê para montar a tenda pequena, senão olha, embrulhamo-nos nela!”.
A pensar no desconforto da noite que antecederia a tentativa de cume, começámos a descer, rapeis após rapeis até que chegámos a um ponto crítico que não tínhamos notado durante a subida. Num encaixado diedro, o sol derretia um enorme torreão de gelo que aglomerava pedras dos tamanhos mais diversos, desde televisores a frigoríficos. O último rapel antes da cascalheira conduziu-nos directamente para um canal por debaixo desse torreão e, as pedras rolavam com violência e a uma frequência medonha. Seria uma verdadeira roleta russa passar por ali! No entanto, não tínhamos outra solução senão arriscar. Corria também água. Aquilo que, durante a noite estava congelado, estava transformado num regato, arrastando pedras. Reconhecemos que aquele era o único caminho e, a perspectiva deixava-nos com os nervos literalmente à flor da pele.

 Preparámos o rapel e o Paulo desceu primeiro.
– Boa sorte! – Disse-lhe.
– Se vires cair algum calhau grita alto. Lá em baixo, posso não ouvir.
Ele desceu. Eu tinha os olhos presos no torreão e o coração batia com uma força que há muito não lhe conhecia. Lá em baixo, quase no fim do rapel as cordas enrolam-se “F…s, é a lei de Murphy!” Pensei.
– PEDRAAAAAA! – Gritei o mais alto que as minhas cordas vocais me deixaram.
Os calhaus que caiam arrancavam outros e o número de pedras multiplicava-se à medida que se aproximava do local onde estava o Paulo. Vi-o ali muito encostado, encolhido, imóvel, numa tentativa vã de se fundir com a própria vertente e, não sei se o meu coração bateu ainda mais forte ou se simplesmente parou. Passou o momento de tensão e, uma vez mais, tudo estava bem.
– VAI VAI VAI! – Gritei novamente, quando a montanha voltou ao silêncio.
Pouco depois, colocava eu a corda no descensor. O Paulo ainda não estava em sítio totalmente seguro.
– SAI DAÍÍÍÍÍÍÍ! – gritava eu.
– DEEESCE! – Respondeu-me.
O seu gostar não o demoveu de me esperar no final das cordas. Sem hesitar, iniciei o que creio ter sido o mais rápido rapel da minha vida. Concentrada na descida, com a respiração ofegante, invadia-me o medo de que o silêncio da montanha se quebrasse. Rapelei aqueles 60m quase sem me dar conta das dificuldades impostas pela altitude. Cheguei perto do Paulo, puxámos rapidamente as cordas e fugimos daquele lugar para um esporão muito mais protegido das pedras. Só aí percebi o quanto ofegava. Estávamos já em porto seguro!

 – Está visto, tanto para subir, como para descer, da próxima vez, é obrigatório passar aqui sempre de noite! – Concluiu o Paulo. Promessa feita. Sorrimos. Abraçamo-nos.
Faltava apenas descer a inconstante cascalheira para chegar ao glaciar. Só nos tocava ser rápidos para nos afastarmos das vertentes que, devido à acção do sol, ganhavam vida.
Já no glaciar, a uma boa distância de segurança das paredes, voltámos a abraçar-nos e a sorrir, desta, não só por estarmos ali, mas também por termos descortinado o acesso àquela face bonita que constituía a parte superior do Kapura. Estava descoberto o portal para a nossa linha de sonho.
Algumas horas depois, chegávamos cansados e felizes ao campo base, onde nos esperava o aconchego de uma tenda grande num local confortável, onde nos esperava uma fresca garrafa de coca-cola, uma pizza de cabra (típica na zona do Karakorum!) e “potato chips”, as normais e correntes batatas fritas, um dos menus favoritos do Paulo, que nestes locais, se transformam em verdadeiros pitéus!

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Sobre o autor

Daniela Teixeira e Paulo Roxo é uma dupla portuguesa que pratica escalada (rocha, gelo e mista) e alpinismo. O que mais gostam? Explorar, abrir vias! A Daniela tem cerca de 10 anos de experiência nestas andanças e o Paulo cerca de 25. A sua melhor aventura juntos foi em 2010, onde na cordilheira de Garhwal (India - Himalaias), abriram uma via nova em estilo alpino puro na face norte da montanha Ekdante (6100m) e escalaram uma montanha virgem que nomearam de Kartik (5115m), também em estilo alpino puro. Daniela foi a primeira e única portuguesa a escalar um 8000 (Cho Oyu). O Paulo é o português com mais vias abertas (mais de 600 vias abertas, entre rocha, gelo e mistas). Daniela é geóloga e Paulo faz trabalhos verticais. Eles compartilham suas experiências do velho mundo e dos Himalaias no AltaMontanha.com desde 2008. Ambos também editam o blog Rocha Podre, Pedra Dura (rppd.blogspot.com.br)

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