Uma semana antes ficamos em dúvida, pois algumas previsões eram para chuva, mas resolvemos manter a programação até a véspera e esperar previsões mais sólidas. Para nossa sorte houve uma bolha de ar seco em todo o estado, deixando o tempo ensolarado por mais de uma semana, sem chance de entrada de frentes frias. A equipe acabou ficando grande, mesmo com a desistência do Otávio e Maicon por problemas diversos. Para essa travessia creio que o ideal seja no máximo seis pessoas de passos rápidos, para uma progressão razoavelmente rápida. Não teve jeito, somaram-se oito cabeças, e cortar qualquer uma delas seria cometer injustiça. Vamos lá então; eu Zeca Reinert, Wilson, Hadassa, Cidinha, Vine, João, Serginho e Lila, essa última, a única de fora do estado e que não faz parte da AMC, nossa fiel guia no parque do Itatiaia, pela segunda vez nos faz companhia em terras paranaenses. Contamos com o apoio tático do Guilherme com sua Kombi já acostumada a trilhar pelas tortuosas estradas que levam as montanhas.
O feriado sendo na quinta, todos conseguiram folgar também na sexta-feira, e quatro dias era mais que suficiente para percorrer a Alpha Ômega por cima.
1º dia – Cronograma feito, a Lila que mora em Volta Redonda-RJ, saiu de ônibus na véspera, tendo a chegada programada para 05:40 de quinta feira, horário perfeito para o nosso inicio de caminhada. Chegamos com a “kombosa” no horário combinado na rodoviária, porém uma mensagem da Lia no watt zap (Sim, a tecnologia também está disponível aos montanhistas), informava que houve um atraso no percurso e que ainda estava passando por registro e o ônibus atrasaria umas duas horas. Ficamos a princípio desanimados, sem querer acreditar, pois este atraso poderia por a perder nosso cronograma da travessia. A Lila sugeriu que seguíssemos adiante sem ela mesmo. Mas como montanhistas éticos e parceiros, fincamos o pé e esperamos ela chegar, que, aliás, duraram mais três penosas horas.Final da história, iniciamos a travessia no Canal às 11 da manhã, mas com a convicção de que o tempo disponível era suficiente para concluir a travessia no domingo. Depois de algum tempo de caminhada com a neblina no horizonte, o tempo abril em definitivo e tivemos a certeza que esta seria “A Travessia”. Avançávamos sem problemas e logo chegamos ao Carvalho, onde fizemos pausa para alimentação, porém para não perder mais tempo, decidimos não ir até os destroços do avião da Sadia, e quem ainda não conhecia, poderá fazer uma visita em outra oportunidade.
Na descida já no fundo do vale encontramos uma espécie de acampamento fantasma; lona esticada, bota e polainas penduradas, fogareiro montado e até uma lanterna abandonada…. Sem saber do que se tratava, deixamos tudo como estava e continuamos a pernada. A ideia inicial era pernoitar no cume do Alvorada, mas duas coisas nos impediriam: Um grupo que também fazia a travessia e estavam umas três horas à nossa frente, provavelmente faria com que alvorada ficasse lotado e principalmente; não daria tempo de chegar de dia neste cume devido ao atraso no inicio da caminhada. Já tínhamos avistado o grupo a frente, um pouco antes do cume do Mesa, e só depois da travessia soubemos que era o grupo do Julio Fiori que se juntara a grupo do Marcelo Broto. O jeito era pegar um fundo de vale qualquer e montar acampamento, o que acabou sendo feio no vale que antecede o Mesa. Lugar não tão limpo, mas nada que o facão não desse jeito. Com as quatro barracas montadas, demos um jeito de apanhar água suficiente para a janta, num minguado riozinho, mas que nos abasteceu sem problemas. Dava pra ver entre as árvores que o sol se punha com uma vermelhidão de tirar o fôlego, o que me fez ter um pouco de inveja do grupo que provavelmente estaria acampado no Alvorada assistindo o por do sol de camarote.
Quem disse que montanhista come mal? Antes do jantar teve calabresa frita de aperitivo, depois cozinhei arroz com tomate seco, a Cidinha um gostoso risoto e ainda rolou polenta cremosa com calabresa. Depois da janta, como não havia mais o que fazer naquele vale, às 20 horas, todos bonitinhos em suas barracas dormindo. Raízes nas costas eram inevitáveis, e contorcionismo foi a maneira de dormir sem maiores incômodos.
2º dia – Acordamos na sexta feira com o sonoro grito; “Bom diaaaaaa Vietnãããããã”
que é característico do Serginho, mas que dessa vez dormiu de toca e a Cidinha lhe
passou a perna acordando antes, isso as 05:45, ainda escuro.Iniciamos a caminhada as 08:00, uma hora além da previsão, afinal numa turma numerosa, não é fácil disciplinar o horário com precisão, ainda mais que alguns cagões resolvem ir ao banheiro no horário de saída, inclusive eu.
Não lembrava mais como era cansativo chegar ao cume do Alvorada, e lá paramos para lanchar e fotografar. As montanhas estavam todas à vista num dos melhores dias ensolarados que peguei em travessias. Dava pra avistar, o Pelado, Ângelo, Leão, Serra da Prata, Ibitiraquire, Curitiba, Vigia e muito mais, num visual incrível de 360 graus. Lembrei-me do perrengue de algumas travessias com tempo ruim, inclusive a última do Ciririca ao Marco 22 com chuva torrencial, e pude desta vez sentir o prazer de caminhar com tempo seco tendo um visual incrível.
Andar num grupo grande numa travessia, tem seus porém; o avanço se torna mais lento, e lugares espaçosos para acampar são mais raros, mas o grupo formado era bem homogênio, com pessoas de alto nível e o relacionamento foi de muita parceria e camaradagem do início ao fim. Ponto pra todos nós. A Lila, acostumadas a caminhas em terras fluminenses adorou conhecer a nossa serra.
Descemos os Alvoradas sem maiores problemas e mais adiante outra parada pra lanche e abastecimento de água e continuamos em frente No vale que antecede a base do Espinhento, que considero um dos trechos mais chatos, nos perdemos por uma meia hora. Eu o Wilson, Vine, Serginho, e João nos dividimos para tentar encontrar pistas da trilha. Muitas gretas perigosas, pirambas e espinhos marotos. O suor tomava conta do corpo, até que o Wilson, encontrou uma fita, onde também tinha um ponto de água. Agora enchemos as garrafas com a média de 3 litros por
cabeça e seguimos em frente, serpenteando acima o torturante vale do espinhento.
Apesar do caminho ruim, não demorou para chegarmos na base do espinhento (perto das 16 horas), lugar ideal para nosso segundo pernoite, visto que não alcançaríamos de dia o pelado, que era a intenção inicial. Andar naquele vale à noite, não seria prudente, e o cansaço e exaustão seria inevitável. Logo encontramos um ótimo lugar para montar as quatro barracas, bem melhor que o acampamento do dia anterior. Convidei o Vine para subir no cume do espinhento e apreciar um lindo por do sol. Demos uma boa estudada no local e parecia que não seria difícil, mas alguns trechos verticais nos tomaria muito tempo e acabamos desistindo. Mais um festival de gastronomia, era tanta comida que eu nem precisei tocar nas panelas desta vez. Wilson com uma super macarronada, Cida e Lila com Purê e João e Vine fizeram uma polenta com carne seca que ficou espetacular. Após a comilança, como era cedo pra dormir, fizemos alguns contatos visuais de lanterna com o pessoal que acampava no Pelado e depois esticamos uma lona para apreciar aquele magnífico céu estrelado. Interessante como na cidade não conseguimos ter esse privilégio. Aviões passando, alguns possíveis satélites e várias estrelas cadentes nos agraciaram. Nesta hora o madrugador Serginho era o único já estar na barraca dormindo. Um pouco depois das 20 horas todos já nos seus aposentos para descansar bem o corpo e o cérebro para a jornada do dia seguinte.
3º dia – Desta vez o Serginho acordou no horário e já foi gritando um pouco antes das 06 horas o sonoro grito de alvorada “Bom diaaaaaaaaaaaaaa Vietnãããããããã”. Fotos do nascer do sol, que ao despontar do horizonte já havia nascido há alguns minutos, devido a alguns morros à frente e logo levantamos acampamento. Mais uma vez ida ao banheiro, e o café da manhã ficou para o vale entre espinhento e Pelado, devido à ausência de água no local. Na descida do vale, ouvimos o barulho de água correndo e encontramos numa pequena nascente numa gruta de pedras. Tomamos o desjejum, abastecemos as garrafas e iniciamos a subida ao pelado. Eu lembrava que aqueles paredões eram fortes, mas a adrenalina é inevitável, ainda mais com cargueiras carregadas. Apesar das dificuldades eu gosto desta situação, da um tempero a travessia. As meninas estreantes ficaram de boca aberta com o grau de dificuldade na subida, e nesta hora a Hadassa disse que depois da travessia iria exigir um certificado de cabra macho pra ela, por superar os grandes obstáculos da travessia. Eu achei justo e me surpreendi com a valentia das mulheres.
Finalmente chegamos ao cume do Pelado e posteriormente a Asa do Avião. Ufa…Alguns vestígios do acampamento da galera da frente com casca de ovos cozidos no mato e capim amassado, sinal de acampamento. O visual continuava deslumbrante com céu azul e poucas nuvens, possibilitando uma visão rara da serra do mar em todas as direções.
A free way já visível, mas não era por ali que iríamos desta vez. De agora em diante ninguém conhecia o caminho, pois iríamos via Ângelo e Leão. Com algumas dicas do Cover e Vitamina e um mapa impresso pelo Wilson, vimos que não tinha segredo, e que a dificuldade seria a possibilidade da trilha estar bem fechada por não ser utilizada regularmente. Seguimos em frente e a princípio não tivemos dificuldade, pois o caminho estava batido. Logo chegamos a um pequeno rio, onde abastecemos novamente uns 3 litros por cabeça, pois não sabíamos se encontraríamos água novamente antes da chegada ao Ângelo.
Subimos pelo vale encontrando fitas sinalizadoras de vez em quando, nos tranquilizando que era o caminho certo. A subida estava mais fácil do que eu imaginava, não tendo grandes perrengues ou vara matos. Logo chegamos ao local que seria a face leste do Ângelo e continuamos a subida, agora um pouco mais íngreme. Enfim chegamos ao cume do Ângelo encontrando um vento forte que quase nos derrubava, além de resfriar bastante o corpo. Algumas fotos e partimos imediatamente para o Leão. Chegamos ao cume relativamente cedo, aproximadamente as 14:40. A ideia era pernoitar no Boa Vista, mas ficava a dúvida se haveria clareira suficiente para nossas barracas, pois outro grupo estava lá. Resolvemos esperar um pouco para ver se eles lá pernoitariam, e logo os vimos no cume do Olimpo. Ficamos na dúvida entre acampar no leão ou ir ao Boa Vista, e como já passavam das 15 horas, e não sabíamos como estava a trilha e quanto tempo levaríamos até lá, resolvemos dormir ali mesmo, principalmente porque encontramos um lugar semi abrigado daquele vento forte.
Tivemos bastante tempo para armar as barracas e descansar as carcaças que foram bastante exigidas devido ao nível forte da travessia até ali. Pudemos apreciar desta vez o por do sol, apesar do vento gelado. Muitas fotos, brincadeiras, até que novamente voltamos à cozinha para a melhor hora do dia. Como era última noite, a janta foi reforçada, com macarronadas, purês, calabresas e doces de sobremesa. Depois de tanta fartura, fomos ao cume apreciar as estrelas, mas como vento soprava ainda muito forte e gelado, voltamos imediatamente, e bem antes das 20 horas todos já estavam em suas barracas. Tínhamos muitas horas de sono à frente, o que ajudaria a tirar o cansaço da caminhada e a renovar forças para o derradeiro dia.
4° dia– Dormi muito bem, e o meu companheiro de barraca novamente da o grito de alvorada, que a princípio irrita: “Bom diaaaaaaaaaaaaaaaaaa Vietnããããããããn”. Surpreendi-me como dormi bem aquela noite, sem ter acordado tantas vezes pra me virar. Rapidamente começamos arrumar as coisas dentro da barraca, até que o Serginho já do lado de fora disse que estava bastante escuro e que estranhamente não via a luz do pré nascer do sol no horizonte. Nas outras barracas alguns resmungos, até que o João e Vine gritaram que o Serginho estava louco, pois ainda eram meia noite e vinte…. Não acreditei muito, mas como eles foram taxativos, liguei o meu celular e comprovei que eram pouco mais de meia noite. Há esta hora até meu saco de dormir já estava guardado, e rapidamente desarrumei tudo e voltei ao isolante. Como ventava muito, foi difícil voltar a pegar no sono, e fui cochilando até o verdadeiro amanhecer e novamente o grito de alvorada. Não preciso nem falar que o assunto no outro dia foi a trapalhada do Serginho com o grito de falso de alvorada. Em homenagem a isso, a expedição foi batizada de “Travessia 00:20”.
Como tínhamos gastado toda a água no dia anterior, novamente resolvemos tomar café no vale. Já na descida encontramos água, mas como era empossada e não corrente, pegamos pouca quantidade e mais pra frente nos abasteceríamos pra valer. O caminho até o Boa Vista não é difícil, apenas algumas dificuldades nas paredes, como a primeira corrente onde o Serginho quase tombou e viu que seria difícil progredir por ali, até que encontrei a segunda corrente e subimos por ali.Já no cume do Boa Vista pegamos a trilha do Olimpo para descer via Noroeste. Faziam mais de 20 anos que eu não andava pela trilha do Boa vista ao Olimpo, e logo vi que não pegamos a mesma trilha, pois esta estava bem mais difícil com trechos que nos obrigava a ajudar as mulheres a subir ou descer, pois era bastante irregular e íngreme. Não havíamos mais encontrado água depois da descida do vale do Caraguatá.Chegamos ao Olimpo e logo iniciamos a descida via Noroeste, com a esperança de encontrar água no desfiladeiro das lágrimas, pois o sol raiava forte, e o nosso estoque já tinha acabado. A descida foi normal, mais a galera foi de desgastando bem mais do que nos outros três dias, provavelmente devido ao cansaço dos dias anteriores, ao sol forte e, principalmente a falta de água. Na Ponta do Tigre um grupo nos cedeu água, mas era numa garrafa pequena e deu apenas um gole por pessoa. Resolvemos descer rápido para não aumentar demais a fadiga, mas isso foi inevitável, pois as partes desabrigadas eram constantes e o sol tirava o pouco da água que tínhamos no corpo.
Era uma sensação ruim, e o grupo acabou se dissipando, pois alguns ficaram bem mais lentos que outros, num visível e preocupante desgaste. Eu sabia que apesar do esforço, logo chegaríamos a um ponto de água. Infelizmente o desfiladeiro das lágrimas estava seco e o jeito foi ir adiante assim mesmo. Ao chegar ao primeiro ponto de água, se não me engano na “Torneirinha”, alguns já estavam num ponto bastante preocupante, com visível sinal de esmorecimento. O Wilson tomou quase dois litros de água, e finalmente todos puderam se hidratar. Descemos até o rancho do Cover, onde tomamos um providencial banho e rumamos em direção a Dona Izabel, aonde chegamos as 18:10. A Kombosa não estava no local, e resolvemos ir seguindo a frente, porém uns 5 minutos depois apareceu o Guilherme, que nos deixou muito aliviados. Para nossa surpresa ele trouxe uma caixa com 4 litros de coca gelada e algumas latas de cerveja… parecia uma miragem. Atacamos imediatamente, e foi uma das cervejas mais saborosas que já tomei. Paramos na lanchonete ao lado da Ponte em Porto de Cima onde comemos alguns pasteis, tomamos mais umas cervejas e cocas, e logo rumamos para casa. O Guilherme deixou a Lilia na Rodoviária e um por um em casa. Todos cansados, mas, com a convicção de ter finalizado mais uma travessia com enorme sucesso.
Eu, dias antes da travessia já havia falado para algumas pessoas que esta seria minha aposentadoria da Alpha Ômega, pois era bastante exigente na parte física e psicológica e temos muitas outras travessias e montanhas na nossa serra. Depois da travessia concluída, mudei totalmente de ideia…. Aquela adrenalina, aquelas dificuldades, aqueles visuais, aquele companheirismo…. Não dá pra ficar longe…. Mesmo tendo outras mais fáceis e bonitas, esta é a travessia mais emocionante de todas…. Só vou me aposentar da Alpha ômega quando não tiver mais forças para percorrê-la…. E isso vai demorar, mesmo porque não é todo dia que tenho oportunidade de trilhar por aqueles tortuosos trechos da serra do mar paranaense. Que venha a próxima.
Parabéns a grande equipe: Zeca, Cida, Wilson, João, Vine, Lila, Hadassa, Serginho e Guilherme.