Já ouvia falar da famigerada “Alpha-Omega” (ou “AO”, para os intimos) desde a virada do século através de conhecidos, e era interesse percorrê-la desde então. Contudo, houve vários impedimentos na época que sepultaram a idéia por bom tempo: escassez de informações, restrições do parque, tempo péssimo da região e, principalmente, inexistência de rota consolidada que rasgasse aquela cumeada do principio ao fim. Entretanto, o passar dos anos foi bem produtivo nesse quesito, com inúmeras incursões pioneiras dando forma ao trajeto, até que somente anos atrás a travessia foi efetuada com sucesso. Desde então o desejo de rasgar mato na “AO” apenas ficou numa única pendência: tempo favorável! Sim, e apesar de já ter sido convocado varias vezes pro rolê, declinei porque ultimamente ando mais exigente nesse naipe de perrengue: ele deve render bem mais do que afago ao ego; deve render visus espetaculares e belas fotos! Tanto que até imaginei que essa trip nunca mais fosse vingar, relegada ao limbo do esquecimento. Mas essa rara oportunidade de boa previsão meteorológica numa região tão arisca quanto imprevisível surgiu neste último feriado, quando o veterano montanhista Julio Fiori me ligou em tom de intimação: “Jorge, o tempo vai firmar agora e será minha aposentadoria da ´AO´. Você vem?” . Desnecessário dizer aqui qual foi minha resposta. “Claro!”
Dessa forma, aquela manhã de quinta começara fria e imersa em brumas espessas enqto o carro rasgava o asfalto da BR-277 sentido Botiatuva, algo de 30km após deixar a área metropolitana de Curitiba. No carro eu, Julio Fiori, Paulo Marinho e Moises Lima tagarelávamos sobre a iminente jornada, de modo a nos manter acordados após boa noite de sono. Até que o motorista Luciano (irmão do Moises) abandonou o asfalto e adentrou na sinuosa via de chão que atende pelo nome de “Estrada dos Manaciais”, e por ela tocamos em suas trocentas bifurcações, sem visu algum da serra que àquela altura já deveria dominar a paisagem a leste.
Chegamos na Chácara do Zezinho pouco depois das 7hrs. Uma placa indica ali ser cota dos 940m de altitude e o local limita-se a duas casas, sendo uma delas uma lanchonete improvisada com infra de apoio a montanhistas. O Zezinho, espécie de “Dilson” local, faleceu ano passado mas outra pessoa tomou seu lugar. Este novo dono não cobra pelo acesso mas sim pelo estacionamento. Não era o caso. O Luciano nos desovou e se pirulitou de volta pra capital paranaense, perdendo-se em meio a forte neblina, ao mesmo tempo em que a gente mergulhava de vez na vereda que nos levaria ao alto do nosso primeiro cume. Em tempo, fomos apenas munidos de poucas infos mas, principalmente, garantidos pela memória de rota (de 6 anos atrás) do Fiori; o Paulo até levou um GPS avulso, mas apenas pra gravar nosso percurso e depois me passar os dados da trip.
A ascensão do Morro do Canal foi bem tranquila e serviu pra aquecer o corpo naquela manhã fria e úmida. Com trilha em aclive forte e bem demarcada, o ganho de altitude foi instantâneo. Trilha no chão, degraus na terra, escadas fincadas na rocha e até correntes dispostas nos lugares mais verticalizados foram facilmente vencidos enqto enxugávamos o mato a nossa volta. Ao mesmo tempo, a farta e frondosa vegetação diminuiu de tamanho, limitando-se a um arvoredo de baixo porte e, principalmente, arbustos. Mas o melhor foi, logo acima, olhar pra trás e emergir sobre um tapetão de nuvens apenas pra constatar que havíamos deixado o péssimo tempo lá em baixo, no Zezinho. De agora em diante andariamos literalmente nas nuvens.
Uma breve parada foi feita por volta das 7:20, na metade do morro, apenas pra retomar o fôlego e beliscar uma mexerica, que foi devorada instantaneamente. O resto da subida se deu em terreno mais aberto, sob os acolhedores raios do Astro-Rei, fosse em meio a arbustos, serpenteando enormes matacões ou escalaminhando rochedos mais inclinados. Até que finalmente por volta das 8:15 emergimos nos 1370m do Morro do Canal, onde paramos apenas pra respirar, tomar goles de água e bater fotos. Uma panorâmica dali contemplaria facilmente as represas Cayuguava, Curitiba, Piraquara, a Baia de Antonina e outras montanhas distantes da Serra do Mar. Ao invés disso tínhamos a nossa volta um lindo oceano alvo, do qual emergiam os cumes de serras próximas como Baitaca, Prata, Farinha Seca, entre outras, que feito pequenas ilhas destoavam imponentes apontando pro céu.
Prosseguimos a jornada tocando pro norte, observando a imponente cadeia montanhosa preenchendo aquele quadrante. Após serpentear a quiçaça do cume chegamos na beirada do morro, num trecho que particularmente queria evitar. Já tinha vindo aqui anos atrás e tivera dificuldades num trecho de corda de quase 15m verticais que agora surgia na minha frente. Mas paciência, quem ta na chuva é pra se molhar! Após meus companheiros descerem o paredão com desenvoltura que deixaria qualquer calango corado de inveja, chegava minha vez. Respirei fundo, fiz o sinal da cruz, segurei a corda e fui. Trêmulo à beça, desescalando aquela laje inclinada quase 90 graus, ancorando as pernas e quadril do lado mais próximo ao corpo. Tudo até correu bem quando a bota travou numa fenda e tive certa dificuldade em “desatolá-la”. Com os braços já quase no limite do cansaço por sustentar quase 70kg acrescidos duma cargueira com pouco mais de 13, só respirei aliviado assim que a ponta das botas tocaram o chão. Ainda bem.
Depois daquele sufoco o que veio a seguir pareceu brincadeira de criança. Ainda com os braços tensos pela cordada tocamos pelo selado que separa o Canal do Vigia sem maiores dificuldades até surgir sobre a quiçaça nos 1380m do dito cujo, coisa das 9:45. Nova pausa pra descanso e apreciação da paisagem em volta. Dali deu pra reparar a muvuca começando a chegar e tomar conta do cume do Canal. Farofa da qual felizmente a gente se livrou. No entanto, pudemos perfeitamente avistar uma galera mochilada rasgando o selado, vindo na nossa direção. Era outro grupo que provavelmente fazia a mesma pernada que a gente.
Dali o rolê embicou algo de 100m no vale sem gente em meio a espessa vegetação num trajeto que desenha um “U”, isto é, de ferradura. A ascensão a partir duma simpática florestinha rasgou bambuzinhos e taquarinhas até que, suando em bicas, as 11hs pisamos no alto dos 1400m do Ferradura. Repleto de quiçaça baixa e lenhosa, no cume existe apenas uma pequena pedra na qual se pode ter algum visu ao redor, em especial do fundo vale que nos separava do imponente Carvalho, nosso próximo cume. Vale destacar que em todo momento havia rastros de estreita picada no caminho, ora óbvios ora meio escondidos, porém facilmente “farejáveis”. Fitas na vegetação tb auxiliaram muito na rota a ser tomada.
E tome piramba íngreme pro vale sgte, onde desta vez perdemos cerca de 170m num tiro só. Uma vez no seu fundo pedregoso tivemos mais um pit-stop pra descanso e bebericar o precioso liquido q vertia dum filete numa grota. O descanso era necessário pois a subida desta vez apertaria pra valer. E tome montanha acima, ascensão q se deu escalaminhando inclusive as lajes lisas duma cascatinha seca além do mato nas encostas mais inclinadas. Qq coisa servia como apoio, fosse raiz, tronco e até galhos de consistência duvidosa.
Suando em bicas e com os pulmões a pto de explodir, após um último trecho de bambuzal chegamos nos 1472m do topo do Carvalho. Nem mesmo o horário das 12:30hr fez com q nossa parada fosse demorada, apenas o suficiente pra conhecer o grupo na nossa rabeira q, bem mais jovem, nos alcançara. Era uma galera de engenheiros florestais capitaneada pelo Marcelo Brotto e composta pelo Renan, Ollyver, Daros, Raphael e Christopher. Trupe gente boa esta q catalogava espécies vegetais endêmicas da serra e com a qual cruzamos varias vezes no decorrer da trip.
Em tempo, o topo do Carvalho é coberto de mato e não tem visu algum a despeito dalgumas frestas na vegetação. Contudo, seu “atrativo” maior reside cerca de 200m na direção leste, materializado nos restos dum avião (um Dart Herald da Sadia) q ali chocou-se devido ao mau tempo, em novembro de 1967 e q vitimou 27 tripulantes. Já tinha ido ali 5 anos atrás e o caminho a estes restos de fuselagem se dava por um rastro bem batido q nascia próximo do cume, caminho este agora inexistente devido ao mato espesso, composto basicamente moitas compactas de taquara e muita macega. Lembro q num rápido ataque feito na ocasião, logo chegamos nos primeiros destroços, alguns enterrados sob espessa camada de folhas: um trem de pouso aqui, pedaços de alumínio acolá, um rotor entre os arbustos e uma enorme turbina de cerca de 2m de comprimento, partida em dois pedaços, mais abaixo na encosta inclinada. Bem, se tiver tempo de sobra vale uma esticada a estes restos apenas como curiosidade mórbida.
Voltando a pernada e com mais desenvoltura , tocamos um íngreme desnível sgte de 150m e repleto de bambuzinhos até o fundo de vale, agora na base do Sem Nome. Ali, as 13hr e pouco fizemos uma breve parada pra lanche e descanso num convidativo remanso arenoso, além de encher nossos cantis água fresca. Contudo, perto dali uma discreta picada desperta curiosidade e numa rápida fuçada me deparo com um acampamento abandonado, com lona, mochila, material outdoor (botas e roupa) dependurado num fio e até fogareiro montado!? Td bem arrumado embora a presença de fungos e mato denuncie o lugar ser meio datado. A impressão é q algo afugentou os campistas q nem tiveram tempo de arrumar seus pertences. Pergunto pro Fiori sobre aquilo e me diz q é mais um dos “mistérios da montanha”, q isso ta aí faz algum tempo e por questão de respeito ninguém mexe no lugar. Eu até olho com cobiça as botas e perneiras ali largadas, quase q novas, mas o receio dalguma maldição cair sobre minha pessoa (já entupida de pragas!) dilui q intenção de apropriação alheia. E o mistério do “Rancho Fantasma” perdura…
A ascensão ao Sem Nome se deu de forma amena e suave. Tudo na base da caminhada e com várias frestas revelando os picos vencidos, os 100m de desnível foram bem tranquilos em relação aos anteriores. Os 1450m do cume foram alcançados exatamente as 14:40hr, e q basicamente é um repeteco do cume do Ferradura, ou seja, repleto de mato e onde um minúsculo afloramento rochoso permite algo de visu. E q visu: td cadeia serrana alargando-se a nossa frente, com destaque pro Mesa, Alvoradas e Espinhento em primeiro plano; atrás, os maciços do Pelado, Angelo, Bandeirantes e Leão.
A descida dos 100m do Sem Nome ao selado sgte foi de forma suave, mas a partir da metade o piramba inclinou de vez, demandando atenção á ambas mãos, q se firmavam no campim e agarras do trajeto. E após a sagrada e breve parada pra tomada de ar num fofo vale forrado de verdejante mata, tem inicio a dura ascensão ao alto do Mesa. O desnível é de pouco mais de 100m e se dá através de 3 patamares bem diferenciados: inicialmente pela encosta em curtos ziguezagues; depois são serpenteados enormes rochedos nos quais é preciso atentar ás traiçoeiras grotas, escuras e frescas, escondidas no solo; e finalmente um último trecho de macega quase vertical, vencido na base de escalaminhada básica.
Mas firmes e fortes finalmente afloramos as 16:20hr nos rochedos q coroam os 1405m do topo do Mesa, q recebe este nome pois seu conjunto de pedras, conforme o ângulo de visão, ganha o formato duma “mesa”. O topo é bem bonito e se divide em dois mirantes rochosos, ambos separados por um seladinho repleto de macega. Mas, sentados á beira de qq dos mirantes e mastigando uma deliciosa macã, tínhamos vista mais q privilegiada de tds os cumes percorridos até então e dos q nos ainda estavam por vir. A paisagem se estendia além, agora com o nevoeiro matinal td disperso, e permitia avistar o espelho dágua da Represa de Piraquara e dos contrafortes da Serra da Baitaca a oeste, da Torre do Prata apontando pro céu a leste, e do Morro da Igreja destoando ao sul.
O descanso foi breve pois tínhamos mais um cume a vencer e por isso apressamos o passo de modo a evitar andar de noite, algo q pareceu inevitável perante o tamanho do vale q se descortinava a nossa frente. De qq forma tivemos q perder coisa de 200m obrigatoriamente de modo a obter o precioso liquido pras passar a noite. Uma vez no fundo do vale e bem abastecidos, as 17:20hr e com a penumbra do entardecer filtrada pela espessa folhagem, começou a penúria da subida, inicialmente feita do forma suave mas q não tardou a embicar de vez. E tome escalada quase vertical de encosta, algo q tava fora dos planos do Fiori. “Esta aqui é outra trilha e bem diferente da q fiz anos atrás, mto mais suave!”, dizia. So sei q qdo a noite se debruçou sobre a serra a gente continuou um bom tempo dando uma de macaco piramba acima, apenas para perceber q subia a face mais inclinada da montanha, sob fachos difusos de headlamps! Quem me conhece sabe q detesto andar a noite, mas paciência. E o cansaço já pegando…
Depois de um tempo e quase a beira da exaustão, finalmente despontamos da macega pros campos abertos, onde a declividade mostrou-se mais generosa com nossa condição física. Era pouco depois das 19hr, e no alto dos 1460m do Alvorada 3 respirei aliviado pra desabar na primeira clareira q surgiu a nossa frente. Dureza foi encontrar lugar decente pois os engenheiros já haviam dominado td, mas com o tradicional jeitinho conseguimos montar um toldo de bivake q suprisse nossas necessidades. Na sequência teve andamento o sagrado ritual da janta, incumbência q coube ao gde chef Moisés, q preparou um delicoso arroz carreteiro com petiscos de calabresa e provolone. Contudo, nem a beleza das luzes de Curitiba faiscando ao longe, nem a prosa animada com os moleques, nem o vento trepidando a lona madrugada adentro, nem a lua cheia ofuscando as estrelas e até as estrelas cadentes rasgando manto negro da noite pôde me impedir de desfalecer confortavelmente no meu saco-de-dormir antes da hora. O cansaço acumulado daquele árduo dia cobrava seu pesado tributo, e era necessário recompor o corpo o qto antes. Afinal, ainda havia mais dois dias do mesmo naipe pela frente.
Continua na Parte II