Entramos aleatoriamente em uma agência (ou nem tanto, pois fugimos obviamente das do público gringo) e tivemos a grata surpresa em conhecer Angel Rafael, um guia que conhecia algo além do Canõn de Palca: o Valle de Las Ánimas (Vale das Almas). Passeio pouco procurado e pouco ofertado, quando é realizado pelas agências simplesmente envolve um passeio de carro em que se contempla de longe as formações rochosas enigmáticas. Pouquíssimos guias conhecem este lugar por dentro, apesar de não apresentar dificuldades consideráveis de orientação, caminhada ou escalada. Como o Cristiano descreveu – e ele estava retornando pela terceira ou quarta vez a Bolívia – esta foi a cereja do bolo de nossa viagem.
Quando retornei a Bolívia com minha esposa Paula em julho de 2015, fiz questão de contatar e contratar Angel – que agora além de guia é sócio da Chakana Tours – para caminhar de novo por este mágico lugar. Partimos de auto em torno de 8:00 de uma manhã cálida para a capital La Paz. Apesar de termos chegado na Bolívia na semana mais fria do ano, alguns dias depois o El Niño já estava dando as caras e as temperaturas estavam relativamente amenas para os padrões Andinos. Atrasamos um pouco a saída devido a um protesto dos mineiros Potosinos que fechava a Plaza Murilo, mas em 40 minutos já estavamos no Canõn de Palca, lugar conhecido dos montanhistas que seguem adiante para o Illimani. Antes de chegar às estradas de terra, passamos pela zona sul, onde fica a parte rica da cidade, pouco conhecida pelos turistas e que revela produtos, serviços e construções de primeiro mundo. Na estrada poeirenta, deixando a metrópole para trás, bucólicas paisagens e algumas crianças pastoreando ovelhas.
Dentro do Cânion, o qual passa a estrada que desaparece na época das chuvas, ficamos frente a dezenas de milhões de anos de sedimentos, do tempo em que os Andes era o fundo do mar. Paredões imponentes, formações rochosas muito diferentes, avermelhadas e douradas que brilhavam sob o sol matutino. Ao final do cânion se avista o imponente Illimani. O Cânion não é tão grande em extensão nem em altura – no Brasil temos vários maiores, mas é singular e muito diferente do que eu conhecia. Após uma aula básica de geologia proferida por Angel – que é formado em turismo e grande conhecedor de seu país, retornamos de carro até onde iniciaríamos a caminhada. Da primeira vez que realizei esta pernada, o auto nos deixou no Canõn de Palca e fizemos todo o trajeto a pé – 4 ou 5 quilômetros até o Valle de Las Animas, mergulhando ainda mais na cultura local, parando em algumas vivendas e vendas ou conversando com os camponeses. Também a caminhada ao lado de Angel nos fez desmistificar algumas distorcidas informações sobre este lindo país e desejar votar em Evo. Pudemos compreender o quanto a Bolívia foi explorada, por séculos, por espanhóis, franceses, americanos… e,inclusive, pelo Brasil.
Já da segunda vez, optei por iniciar a caminhada da base do Valle, onde o carro nos deixou. Partindo do cemitério da comunidade local, próximo a uma igreja/propriedade católica que chama atenção, iniciamos uma pequena subida, caminhando 200 a 300 metros. Há outras trilhas, em que se caminha por dentro das torres pontiagudas de pedra, porém são mais perigosas e instáveis. Quis poupar Paula de provável perrengue, como o que passamos quando da primeira vez, pelo outro caminho. Tivemos que escalar alguns trechos – vinte ou trinta metros – em um terreno pedregoso e muito instável, um tipo de cascalho grosso. Isto rendeu algumas chances de queda que poderia causar algum problema maior. Mas no fim sobrou só história para contar. Além disto, a trilha percorrida anteriormente já não existia mais, devido a desabamentos. Estas formações parecem ser muito frágeis e sofrer facilmente a ação das chuvas e ventos.
O nome Vale das Almas diz respeito as formações, que sugerem almas petrificadas e pelo som lúgubre que o vento faz ao passar pelas infinitas frestas. Segundo a lenda, são as almas. Ninguém pisa neste lugar a noite, disse Angel.
Logo no primeiro platô, já se tem uma deslumbrante visão do Illimani, do Canõn de Palca a sua frente, das propriedades e das formações rochosas da região. Também se avista parte de outro nevado, o qual não me recordo o nome. Cidade de La Paz, ao norte. Caminhamos mais algumas centenas de metros até chegar ao ponto mais alto. Obviamente gastando o dedo de tantas fotografias e querendo morar ali, mesmo sendo escalpelado por um forte e frio vento que fazia o anorak sair da mochila. Tirando o impacto de andar em torno dos três mil e seicentos metros, nenhuma outra dificuldade. Iniciamos a descida e fiquei feliz por estar andando em uma trilha diferente da que já tinha feito. Ângulos diferentes, formações diferentes, perrenguinhos diferentes. A cada dez metros vontade de contemplar e fotografar. Um ou outro trecho um pouco mais tenso, mas nada de mais até para caminhantes com bem pouca prática. Paula só quis me matar uma vez, ao passar por um trecho com o solo pedregoso muito instável, uma ladeira com um pequeno penhasco ao lado e em que encanava o vento cortante que tirava o corpo do lugar. Mas um bom guia faz toda diferença, e Angel faz jus ao nome, passando confiança e segurança. Após adentramos mais ainda pelo vale, uma grata surpresa: vários trechos nevados, tornando a caminhada mais bela ainda. E segundo Angel, algo bem raro de acontecer ali. Pudemos observar as plantações de batatas e se espantar com o local extremo usado para a agricultura. Pequenos terraços em penhascos, inacreditavelmente cultivados. Também nos entristeceu saber que toda esta área não é protegida. É da comunidade de Palca, mas há um rumor não confirmado que passou as mãos de um banco devido a dividas dos camponeses. Ou seja, pode desaparecer, pois a cidade avança em sua direção. Continuando a descida, torres de pedra pontiagudas, entranhas rochosas, apenas nós em terra e um ou outro pássaro no céu. Caminhada intensa, de alguns quilômetros mas sempre descendo, que termina quando os primeiros sinais de civilização dão as caras. São sinais assustadores, pois se constata que a área é de ninguém. Casas estão sendo construídas ao largo do vale, dando a impressão que daqui a alguns anos o concreto vai avançar e destruir as frágeis formações. Ao final do vale, encontra-se uma via asfaltada e toma-se uma van, logo percorrendo a região mais rica e desenvolvida da cidade. Antes de tomar a condução, saciamos a sede com um delicioso refresco natural de pessêgo e especiarias. Para fechar o dia com chave de ouro, tomamos o Mi Teleférico e voamos pelos ares de La Paz, vislumbrando o espetáculo que não cessa, agora também com a presença da Mula del Diablo, formação rochosa da região. Após 30 minutos no maravilhoso e moderno transporte de tecnologia austríaca e modelo de eficiência e organização -imperdível mirante móvel – tomamos um táxi, dentro do qual pudemos ouvir um funk brasileiro de alto nível, intitulado perereca suicida. Coisas da globalização. Paula e eu fechamos o dia tomando uma Pacenã na Tia Gladis, restaurante/lanchonete muito boa, bonita e barata na calle Illampu. Se for a La Paz, deixe de lado o Valle de La Luna, passeio de meia tarde geralmente conjugado com a subida ao Chacaltaya e descubra a energia e o exotismo do Palca e Valle de Las Ánimas, enquanto ele existe. Não se arrependerá. Serve também como aclimatação para quem vai dar umas pernadas mais extremas. Não se esqueça de agradecer a Pachamama, e pedir para voltar em breve!