Se você me perguntar qual minha paisagem andina preferida, direi que é o altiplano boliviano. Banhado por uma luz brilhante, varrido por ventos incessantes e colorido por uma eterna cor ocre, parece um mar terreno sem ondas ou história. Sua monotonia é decorada pela emocionante aparição dos perfis nevados das cordilheiras. E, de todos os países andinos, prefiro a Bolívia, pois me parece mais radical e autêntica.
Glaciar do Illimani, Cordilheira Real, Bolívia
A mais conhecida das cordilheiras é a Real, com quase vinte picos acima dos 6.000m, em especial o espetacular Illimani (onde já tinha estado), seu ponto culminante com mais de 6.400m.
A sul e a norte ela prossegue por duas formações distantes e desconhecidas, Quimza Cruz e Apolobamba. A primeira não é tão alta e nem nevada, mas a segunda apresenta neves perenes, montanhas deslumbrantes e incríveis desfiladeiros em vales remotos.
Junto com o boliviano Javier Carvallo, um excelente companheiro de trilha, fizemos por cinco dias o percurso sul de Apolobamba, até a horrenda vila de Pelechuco, num buraco que estrategicamente separa a cordilheira nos trechos sul e norte. Foi uma linda travessia, onde só por uma vez avistamos uma pessoa – um polonês neurótico que caminhava sozinho.
Estávamos subindo um passo, quando o vi lá embaixo: um ponto minúsculo que rapidamente se aproximava. Nunca que ele vai chegar ao passo antes de mim!, pensei. E foi por pouco, bastou eu parar em cima para ele passar apressado. Nem olhou para o belo panorama. Só voltamos a encontrá-lo na vila de Pelechuco dias depois. Mas nosso polonês parecia querer exorcizar algum demônio interior e não queria conversa.
Passo com Vista do Cerro Acamani, Apolobamba, Bolívia
Talvez a vista mais incrível da travessia tenha sido a do Cerro Sunchuli, um ou dois dias depois daquele passo. Suas paredes enegrecidas, cortadas por misteriosas estradas sem fim e coroadas pela brancura da neve, estarão exatamente à sua frente, parecendo irrealmente próximas.
O vale oposto é espetacular, de um verde salpicado de pedras e repleto de lhamas e alpacas pastando. Você estará envolto por uma paz silenciosa e uma beleza rústica que me fizeram pensar se o paraíso não seria assim.
A travessia é o chamado Trek Sul. Você pode fazê-la pelas vilas de Charazani ou de Canisaya – serão 85 km ou 70 km. Os principais picos da cordilheira são o Chaupi Orco (6.044m) ao norte e o Cololo (5.915m) ao sul, que exigem escaladas mais longas.
O Trek Sul tem o dobro do tamanho e desce pela floresta amazônica desde Pelechuco até Apolo, na baixa altitude de 300m. Naturalmente, com outros visual, clima e altitude. Já os passos que percorri eram exigentes, com 4.700 a 5.100m.
Passo de Pelechuco, Apolobamba, Bolívia
Meu plano era receber em Pelechuco os equipos para escalada em neve do maciço próximo de Katantica – suas suaves encostas contemplam um lago elevado, numa paisagem de beleza surreal. Mas nosso material nunca chegou. Sem que tivéssemos conhecimento, os camponeses do altiplano haviam bloqueado as estradas, isolando La Paz e paralisando o país.
A água só chega a La Paz após descer o altiplano e os camponeses queriam cobrar por ela – se não houvesse acordo, ninguém entraria ou sairia da região. Tentamos em vão passar pelos bloqueios nas estradas. Tivemos de enfrentar ameaças de camponeses furiosos, sedentos por uma gorjeta e hostis a um gringo bacana como eu.
Num dado momento, avistamos naquele planalto deserto uma camionete. Seu motorista era um chinês, ele nos disse que estávamos perto da divisa. Mostrou-nos então a direção de um rio – nós o cruzamos e passamos para o Peru.
Naquela madrugada havia lá uma feira e conseguimos subir na caçamba de um caminhão que partia naquele momento. Estava repleta de cholas, mulheres do povo vestidas com lindos mantos coloridos e ridículos chapéus coco. Nevava, mas eu não conseguia me mover, com o pé preso embaixo de uma chola que parecia feita de pedra.
Vista da Face Sul do Chaupi Orco
Finalmente saltamos numa vila perdida na imensidão do planalto. Como por mágica, havia um furgão na praça, que estava saindo para Juliaca, uma cidade maior. Agradecemos nossa sorte! Colocamos nossas consideráveis tralhas no veículo e fomos legalizar nossa entrada no Peru.
Na volta, o transporte havia sumido, saímos correndo à sua busca, diante do olhar divertido da população. Já estávamos comendo pó fora da vila quando descobrimos que ele só tinha ido abastecer e logo reapareceu.
Tive então de compartilhar com vinte outras pessoas e duas cabras (que dividiam a mesma mamadeira com uma criança) o que lá chamavam de Kombi, embora fosse uma Toyota. Minha claustrofobia tornou intermináveis as muitas horas da viagem.
Foi nessa ocasião que criei um método estupendo de dividir cada hora em parcelas de 15 minutos, estas em outras de 7 ½ e estas últimas em pedaços irregulares entre 3 e 4 minutos, cujo cálculo era capaz de distrair minha aflição. Experimente você no próximo perrengue.
Cerros Sunchuli e Cololo Vistos do Lago Kotani
Mas à tardinha já estávamos em Juliaca, um local estranho, parecendo um covil de malfeitores (a cidade dos ladrões, segundo Javier). E, sem surpresas, prosseguimos para Puno, vila turística do circuito do Lago Titicaca.
Foi como descobrir de volta a civilização, depois de quase duas semanas na natureza: nas ruas apinhadas de gente, havia quase tantos estrangeiros como locais. Lembrou-me Katmandu, a maioria parecia curiosamente fantasiada, com impecáveis roupas de trekkers de última geração – que contrastavam com nosso visual troglodita total, sujos e barbudos.
Mas não havia mais tempo: no dia seguinte, com algumas outras surpresas, pude voar de volta para o Brasil. Meu amigo boliviano só chegou um dia depois em La Paz, após caminhar 120 km em dois dias, contornando o Lago Titikaka!
E só fui receber os equipamentos de escalada em casa bem depois, quando fiquei olhando-os com tristeza e saudade – e também raiva por perder o lindo Katantica, naquela paz meio irrreal dos cenários nevados.