Cheguei lá pelas 9:30hr na Estação Capuava, que faz parte da Linha Turquesa da CPTM, com sol radiante e céu limpo escancarando meu rosto. Primeira vez que pisava nesta estação, que sempre despertou minha atenção nas incontáveis trips pra Paranapiacaba por conta do enorme viaduto de um lado e fumegantes refinarias no outro. A titulo de curiosidade, a estação Capuava foi aberta como posto telegráfico em 1920; o prédio original sobreviveu até 1960, quando foi substituído pelo atual e desde então tornou-se estação de trens.
Pois bem, dando as costas ao polo petroquímico ganhei a rua na direção sul, passando por um quarteirão bem eclético, composto por um motel, uma fábrica e uma boate. Após acompanhar brevemente o Córrego Itapuã tomei a Av. Giovanni Battista Pirelli, sentido Santo André, onde não demora pra passar sob uma placa dando as boas vindas ao município. Dali adentrei no miolo do Parque Marajoara, novamente tocando quase na direção sul, agora acompanhando uma linha de alta tensão cuja base é convenientemente utilizada pra plantios agrícolas. Forma sustentável e eficiente de não desperdiçar este espaço normalmente largado.
Desemboquei finalmente na Av. Professor Luiz Ignácio de Anhaia Mello, e nela me mantive até o final, ainda pro sul. Via estreita que acompanha um afluente poluído do Córrego Itapoã e divide os bairros de Centreville e Vila Guarani. No final desviei pra via paralela á direita, ou seja, a Av. Valentim Magalhães, onde já se consegue avistar o destino da vez na forma dum elegante e verdejante domo, coroado por esvoaçante eucaliptal, elevando-se em meio a horizontalidade cinza da urbe. E é nesta via que avalio o melhor acesso ao parque, uma vez que logo me deparo com sua entrada original, um enferrujado portão de metal fechado por correntes e cadeados, interditando acesso. Os dizeres em letras garrafais “Proibido Nadar, Perigo de Morte”, reforçam a proibição.
Continuei avançando nos limites da Vila Guaraciaba afim de buscar acesso ao parque, que logo encontrei contornando o campo de futebol, que naquela manhã de domingo estava repleta de moradores locais prestigiando um “clássico” do bairro. Pois bem, logo atrás nasce uma larga via de chão que sobe o chamado “Morro da Kibon” e que bastou acompanhar, ganhando altitude suavemente em meio a uma baixa florestinha. Num piscar de olhos o borburinho do campo fica pra trás, dando lugar ao farvalhar do vento na copa do arvoredo a minha volta. No caminho tropeço com um senhor (acompanhado de duas crianças) que me diz que aquela precária via nada mais é um atalho da comunidade a sudeste com o campo. E me deu as coordenadas pra acessar o parque. Horário? Pouco antes das 11hrs.
Pra isso retrocedi um pouco a via de chão que logo reparo uma discreta vereda que deriva da via principal, em meio ao pasto e algum capim abaixado, tocando pra leste. Uma vez neste caminho não tem mais erro, pois ele contorna sinuosamente o arvoredo e logo emerge na encosta norte do morro, por sua vez coberta de pasto. O terreno desnudo descortina uma bela panorâmica do interior do parque, com destaque pro enorme espelho d’água reluzindo o sol do quase meio-dia, cercado de ondulante morraria como se fosse um anfiteatro verde.
Dali a vereda desce em ziguezagues encosta abaixo, as vezes alternando-se num escorregadio e erodido trilho de boi, até chegar no estradão de pedregulhos que nasce daquele portão trancado e vai até a margem do lago. De onde me encontro posso avistar perfeitamente o lugar que correspondia ao antigo estacionamento e quadra, uma clareira de concreto trincado em meio ao alto capinzal. Perto dali, a base da guarda civil municipal meio oculta do meu campo de visão me recorda que devo sair logo dali, e prosseguir apenas andando em direção ao lago pra sair fora do seu perímetro.
O caminhar é tranquilo e no trajeto trombo com as únicas pessoas que aqui vieram se aventurar, uma família que retornava dum mero passeio até o lago. Aceno cordialmente e dou continuidade a chinelada. Em tempo, contabilizei mais de 30 placas, espalhadas na estrada e por toda margem do espelho d’água, reiterando o aviso escancarado no portão de entrada: “Proibido Nadar, Perigo de Morte”. O alerta tem sua razão de ser, já que desde a década de 90 mais de 40 pessoas, a maioria jovens e crianças, morreram afogadas nadando no lago.
Aqui vale um breve histórico do lugar, uma vez que até a década de 80 ali funcionava uma usina de extração e pedras. Mas a atividade ficou inviabilizada porque a mesma fez brotar água da terra (pois o solo estava repleto de nascentes e veios d’água) que terminaram criando o lago. Isso somado ao endurecimento das leis de proteção ambiental fez com que o lugar fechasse as portas. O terreno foi desapropriado e passou a ser administrado pela prefeitura, que criou o Parque do Guaraciaba em 1989. Foi a época áurea, com guarita na entrada e segurança, onde famílias inteiras usufruíam das quadras e área própria pra natação, numa lagoa menor do lado do Tancão.
Entretanto, isso durou pouco pois logo o antigo proprietário ganhou na justiça o direito de receber uma quantia exorbitante relativa á desapropriação, valor questionado pela prefeitura. E assim ficou desde 2005, o parque permanece fechado e abandonado desde então por conta desse imbróglio judicial, em que não houve acordo entre as partes envolvidas. Mas virou atrativo refrescante pra população dos arredores, que sem opções de lazer fazia do piscinão um balneário nos dias de verão. Sem a mesma segurança de antes, foi aí que começaram os afogamentos sendo que o última data de 2014. Pra não responder por improbidade administrativa, a prefeitura proibiu terminantemente o acesso do lugar, reforçando a fiscalização do parque.
Percebendo que aparentemente a barra tava limpa, percorri boa parte do perímetro da lagoa acessível a pé, as vezes chapinhando pelo baixo capim rente á água. Muitas flores dançam na brisa refrescante que também remexe as águas cristalinas do tancão ao meu lado. É possível ver, entre outras coisas, artefatos precários de pesca e as antigas fundações do porto, parcialmente engolidas por trepadeiras. Uma pena este lugar bonito destes ser vedado ás pessoas por irresponsabilidade de visitantes relapsos quanto a própria segurança.
No final da estrada, no lugar onde ela intercepta a água, existe um minúsculo cais onde provavelmente deve estacionar a lanchinha que fiscaliza as margens não acessíveis a pé, do outro lado do tanque. Ao lado dela tem um telhadinho que me fornece sombra necessária naquele meio dia de domingo, onde o calor começa a pegar forte. Dali se aprecia a outra margem do lagão, onde enormes paredões cobertos de mata, de onde pipocam reluzentes quaresmeiras, se erguem quase que verticalmente, acompanhando a beirada de quase todo espelho d’água de forma irregular. Infelizmente a lagoa vizinha, a que antigamente era própria pra banho, estava vazia devido a estiagem, mas a principal estava linda e convidativa, refletindo o céu azul daquele dia. Com o calor pegando, não pensei duas vezes e mandei ver um tchibum numa margem mais segura. Deu pra perceber logo de cara que o chão é bem irregular uma vez que a profundidade aumenta de forma súbita e abrupta em questão de poucos metros. É dar um passo que se cai num buraco fundo, e pelas infos, alguns buracos tem nada mais que 30 metros de profundidade! Realmente, o piscinão é mesmo uma armadilha pra quem não souber de fato nadar ou se virar na água. Não era meu caso, claro.
Pois é, mas tudo que é bom termina logo. O banho rolava tranquilo e refrescante, quando de repente avisto a viatura da Guarda Civil Metropolitana de Santo André vindo em minha direção. “Puta merda, ferrou!”, pensei comigo mesmo, já voltando novamente pra margem enquanto punha a cabeça pra funcionar. “Sabe ler não?”, gritou um dos dois guardinhas, que saíram da viatura vindo na minha direção. Por sorte já tô calejado a esse tipo de situação e meu jogo de cintura obtido anos a fio em trocentos outros parques pelo país veio a calhar naquela hora. Mas claro que o que colaborou também foi a compreensão e esclarecimento dos guardas, já que teve ocasiões onde a ignorância e prepotência ditaram a tentativa de diálogo. Do contrário, meu inofensivo rolê terminaria na delegacia, prestando esclarecimentos.
E enquanto me secava e vestia roupa tive uma breve prosa com ambos, obtendo mais informações interessantes dali. Contaram que o barco de apoio tava em manutenção e por isso não se encontrava no cais (nem na água) e que não dá pra vigiar com muita eficiência uma área de perímetro tão grande como essa, repleta de brechas. Emendaram que em dias de muito calor a molecada costuma acessar o lago do outro lado, desescalando as íngremes encostas de mato ao lado do Parque Gerassi e do aterro Santo André.
“Como você ficou sabendo daqui?”, perguntaram quando disse que era da Zona Oeste. “Ué, internet!”, respondi. “Então não incentive a mais gente vir aqui, pois no verão a vigilância é redobrada! Hoje você se safou mas da próxima vez vamos te levar na delegacia!”, frisou com olhar carrancudo. E tá certo, pois desconsiderar ou descumprir deliberadamente uma medida judicial é pedir pra ser autuado ou conduzido á delegacia. Fica portanto o aviso: não venham aqui; e se for, é por sua conta e risco. Falo isso por experiência própria.
Dali não me restou opção senão dar as costas ao lago e voltar pelo mesmo caminho da ida, tendo a escolta da viatura bem atrás, no cangote, companhia esta que só me abandonou assim que ganhei a encosta de pasto, morro acima. E assim, tendo meu rolê abreviado bem antes das 15hr, tomo uma outra trilha que desce pro outro lado do morro em direção ao campo de futebol. Em questão de minutos atravesso arbustos, eucaliptos e até um barraco ilegal mocado na encosta do parque, pra vereda me largar num estradão maior, cercado de material descartado.
Durante o caminho de volta pra estação e após passar no mercado pra “abastecer”, não pude deixar de pensar na situação esdrúxula que se encontra aquela bela opção de lazer pra população da região, ou seja, fechada a visitação por motivos estúpidos. Pesquisei a respeito na internet e vi que moradores e ambientalistas lutaram a favor do parque conseguiram ao menos que a área fosse alçada á área de preservação, em 1996. Isso porque até então as discussões chegavam ao nível de sugerir o aterramento do lago tanto pra ampliar o aterro sanitário do lado como pra área de deposito de entulho ou até projeto de construção de apartamentos. Vai vendo o nível de conscientização ambiental.
Na verdade, a situação real é que o Parque Guaraciaba é um parque apenas no nome, pois há um jogo de empurra onde ninguém assume responsabilidades. E vale lembrar ao poder público que apesar do nome e do histórico mórbido, o “Tancão da Morte” tem sim condições de se tornar um poderoso sinônimo de vida e resistência, uma vez que além de pulmão verde do bairro, a área tem potencial enorme de abastecimento hídrico, repleto de nascentes de água que renovam o lago constantemente. Então porque não dar continuidade ao que já deu certo uma vez? Enquanto isso, os moradores das vizinhanças são os únicos prejudicados nesse impasse judicial; não bastasse as poucas opções de lazer, são ainda privados de desfrutar deste belíssimo espelho dágua que seria diversão ideal prum dia quente de verão.