O visual da Serra dos Martírios é diferente da natureza do Pará à sua volta. Sem ainda conhecê-la, eu fiquei curioso, quando a avistei pela primeira vez ao cruzar por balsa o Rio Araguaia. Perguntei sobre ela e me disseram ter sido vendida a uma empresa estrangeira. Descubro ao retornar a São Paulo que, ao contrário, lá havia sido criada uma reserva. Volto então no ano seguinte para visitá-la – e aqui vai o relato.
A Serra dos Martírios foi assim chamada devido às gravuras rupestres existentes nos lajedos da Ilha de Santa Cruz, banhada pelo Araguaia na divisa entre PA e TO. São figuras variadas e expressivas, que os primeiros bandeirantes acreditavam representar a paixão de Cristo: o que sabemos hoje ser o desenho do sol era entendido como a coroa de espinhos e o machado estaria ligado aos pregos que perfuraram suas mãos.
Além disto, aqueles exploradores confundiram a mica com o ouro, daí surgindo a lenda da existência de uma rica mina no local. Nos séculos seguintes, muitos sertanistas buscaram sem sucesso descobri-la. Somente em meados do século XX ficou estabelecido que as gravuras da ilha eram os antigos e misteriosos martírios coloniais.
Mas há uma outra razão, e bem cruel, para este nome. A serra foi o local onde eclodiu a Guerrilha do Araguaia, durante o governo militar. Os esquerdistas militantes infiltraram-se junto à população local, mas acabaram detectados pelo Exército. Na terceira ofensiva, foram dizimados e até hoje os locais de deposição de seus corpos permanecem desconhecidos. O Governo mudou então o nome para Serra das Andorinhas, para desvinculá-lo das mortes.
São fatos antigos e talvez hoje de pequeno impacto para nós. Mas este não é o caso dos moradores das comunidades. Os idosos recordam-se de fatos ocorridos há 35 anos e os transmitem à sua descendência, que mesmo agora os relatam aos visitantes. Pessoas destes vilarejos foram mortas, desapareceram, tiveram seus bens destruídos – e isso não se esquece tão fácil. Senti que muitos tinham necessidade de falar comigo sobre esses outros martírios.
A existência de diversos sítios arqueológicos e a paisagem rica e diferente foram as principais motivações para a criação do PESAM – PE da Serra dos Martírios-Andorinhas, cerca de vinte anos atrás. Entretanto, só depois de dez anos começou a ser organizado. Possui 25 mil ha, sendo envolvido por uma pequena APA e estando próximo da área indígena do Suruí, com tamanho equivalente. Fica totalmente contido no município de São Geraldo do Araguaia, às margens deste rio.
Apresenta um formato alongado e irregular, seguindo naturalmente o traçado da serra, que tem 36 km de extensão. As comunidades de Sapucaia e Santa Cruz, as únicas na área, não pertencem ao Parque. Apresentava graves problemas fundiários, com quase uma centena de famílias no seu interior, ativas na agricultura de subsistência e na criação de gado em pastagens formadas e naturais. Apesar de não terem titulação das terras, os posseiros foram indenizados e deixaram o Parque.
A Serra dos Martírios ocupa uma escarpa de falha, orientada na direção NW-SE. É formada por uma sucessão de platôs e de cristas com topos aplainados. As altitudes não são muito expressivas, oscilando entre 250 e 500m. Visualmente você pode reconhecer duas formações pronunciadas – são os Morros da Trincheira e do Passat (que mais parece um Fiat). Entretanto, o local mais elevado é considerado a Casa de Pedra, com 560m.
Está numa zona de transição entre o Cerrado e a Floresta Amazônica. Você encontrará o primeiro nas encostas da serra e a segunda nos vales, onde também aparecem veredas de buritis. Assim, haverá trechos de cerrados e campos limpos, bem como de florestas aluviais e montanas – jatobás, ipês e sapucaias convivem com castanheiras, babaçus e copaíbas. Mas é um ambiente um tanto pedregoso e seco.
A fauna é descrita como muito variada, com animais como o gavião real, o bicho preguiça, o macaco mão de ouro, além de felinos, roedores, tamanduás e muitas aves, borboletas e morcegos. A rocha é o quartzito bastante fragmentado, sob o qual estão assentados xistos variados. A erosão ao longo do tempo dissecou os xistos, realçando os quartzitos, que são mais resistentes.
O PESAM é muito interessante, devido à variedade de atrativos. O principal é o pedral em Santa Cruz, com inúmeras inscrições rupestres, seja em formato ou quantidade. Existem gravuras figurativas e abstratas, com representações de urubus e lagartos, espirais e calendários, mantos e machados. As cheias do Araguaia e o trânsito de pessoas as estão infelizmente destruindo. Ao lado fica a chamada Pedra Escrita, junto com a Caverna do Morcego.
São referidos mais de 50 sítios arqueológicos, bem como 20 cavernas, 50 grutas e centenas de abrigos. A principal caverna é a Serra das Andorinhas, à qual você chegará após 1½ hs de forte rampa no Morro do Passat. Tem uma boca interessante e uma extensão de 1 km, que é importante nas formações menores de quartzito como essa. Só as cavidades calcárias são decoradas pela deposição do carbonato sob a forma de estalactites, flores e cortinas. As de arenito e quartzito não exibem esses ornamentos, mas podem ser muito bonitas na sua amplidão e simplicidade.
Cachoeiras existem muitas (dizem ser três dezenas), uma das maiores sendo a Spaner (70m), numa trilha irregular a partir da comunidade de Santa Cruz. A do Riacho Fundo começa ao sul da comunidade, com três saltos e bom poço. Mas a mais visitada é a das Três Quedas, com fácil acesso ao norte. Se você encarar mais 1½ km, chegará à quarta queda e, cerca de 2½ km depois, à véu de Noiva (90m). Quedas d´água são sempre bem-vindas, mas estas não me pareceram especiais. Além disto, são sazonais.
Talvez o ponto mais visitado pela população local seja a Casa de Pedra, onde há meio século existe uma prática de romarias. Centenas de romeiros alojam-se por dias seguidos nos abrigos que lá existem, rezando e cantando ao Espírito Santo. Ao chegarem em cima, alcançam a chamada Igreja da Trindade, local de seu culto do Divino. Apesar de denúncias de depredações, achei o sítio limpo e conservado.
É uma trilha rumo norte muito bonita, entre mata, campo e pedra que chega após 5 km a um ampla formação rochosa. É um local elevado, você subirá cerca de 350m desde o início até o abrigo onde funciona a igreja. Após uma pequena escalada, subirá ao teto da Casa de Pedra (560m), com uma ampla visão dos campos limpos, das matas ralas e das ruínas rochosas que acabou de atravessar no caminho.
2 Comentários
Boa tarde, tudo bem ! Ficou muito bom, meus parabéns.
Tem algumas informações com dados errados caso queira posso contribuir c as informações
Boa tarde. Acabei de conhecer a vila de Santa Cruz dos martírios, um lugar muito rico historicamente, porém precisa de um olhar diferenciado por parte dos governantes, é muita história sendo perdida. Fui na caverna do morcego e na pedra com a escrita rupestre. Que os governantes possam voltar seus olhares para aquela região.