Até meio século atrás, as únicas pinturas rupestres conhecidas no Brasil estavam em Minas Gerais. Em 1963 a Universidade de São Paulo promoveu no Museu do Ipiranga uma mostra sobre elas, quando um visitante vindo do interior do Piauí quis conhecer algum funcionário da organização. Lá trabalhava uma moça formada em História Natural, que o recebeu.
Queria mostrar fotos de pinturas semelhantes às da exposição. Ela se surpreendeu ao notar que as pinturas eram na realidade completamente diferentes. Ficou tão impressionada que dirigiu sozinha desde São Paulo até o Piauí para conhecê-las. Mas não conseguiu, uma ponte interrompida sobre o São Francisco a fez retornar.
Essa moça guerreira era militante de esquerda, na época em que a Ditadura se estabelecia no Brasil. Era filha de pai francês e tinha a sorte de possuir passaporte daquele país. Alertada de que seria presa, fechou sua casa em São Paulo e voou para Paris, onde se formou em Arqueologia e lecionou por anos.
De volta ao Brasil, pôde finalmente viajar ao Piauí para conhecer aquelas inscrições antigas. Tinha sido ensinada que as pinturas rupestres da América eram primitivas – mas o que encontrou foram criações fantásticas, complexas, como comentou mais tarde.
Naquela época, era assistente de Anette Emperaire, da Missão Francesa, que buscava evidências do homem antigo na América. Como só se conheciam vestígios em Minas, Madame Anette (como era chamada) pediu-lhe que colaborasse com suas escavações. Elas iriam acontecer em Lagoa Santa, local onde inúmeros fósseis tinham sido achados desde o século XIX.
Curiosamente, ela não tinha então qualquer interesse na pesquisa daquilo que fosse mais velho, preferia as pinturas que havia conhecido no Piauí. E foi assim que, à busca do mais belo, acabou descobrindo ela também o mais velho, como você logo verá. Obteve recursos do governo francês e liderou a primeira pesquisa na região, junto com seus antigos alunos. Era 1973 e exatos dez anos haviam transcorrido.
Mais seis anos se passaram, quando em 1979 o governo brasileiro decretou a fundação naquela região de um Parque Nacional. Mas, como acontece com frequência no país, a área permaneceu abandonada. Durante quase dez anos, ela foi depredada por madeireiras, caçadores e moradores, que se aproveitaram da falta de fiscalização naquele território com tanta história passada, mas sem nenhum dono presente.
Aquela arqueóloga guerreira criou com outros pesquisadores uma fundação. Esta conseguiu a gestão do Parque – uma façanha única num país em que todas as reservas naturais estão sob o comando (quase sempre sonolento) do governo. Ela foi morar definitivamente no Piauí vinte anos depois de sua primeira pesquisa. Até hoje, passados trinta anos, a fundação continua administrando a área.
A notável pessoa de que falo chama-se Niède Guidon e a sua criação é o Parque Nacional da Serra da Capivara, a melhor dentre todas as nossas reservas naturais.
No início de seu trabalho, Niède morava na França e apenas visitava o Piauí nas férias. Dizia-se então que não haveria vestígios antigos no Nordeste, devido ao limitado povoamento e à aspereza do ambiente. Um dia, recebeu a datação de 18 mil anos para um carvão do Sítio da Pedra Furada que enviara para a França.
Achou que o laboratório havia trocado o seu por outro testemunho mais antigo. A datação é do seu carvão. Volte lá e amplie sua pesquisa porque tem algo diferente ali, disse o técnico. E assim ela fez: hoje a Pedra Furada é o sítio arqueológico mais profundamente estudado do país – e talvez da América.
E as evidências foram aparecendo. Sobretudo, a famosa fogueira datada de inacreditáveis 48 mil anos, até hoje envolta em polêmica. Pois o que alguns pesquisadores entendem por artefatos (produzidos pelo homem), outros acreditam ser geofatos (formados na natureza).
Mas vieram depois objetos de pedra lascada que Niède corajosamente acredita terem 100 mil anos, ferramentas com idade de 59 mil anos, pinturas datadas em 35 mil anos e dentes humanos com datação de 15 mil anos. Preciosos esqueletos foram encontrados, porém provavelmente sem suficiente matéria orgânica para a análise do Carbono 14.
Com estas descobertas, Niède Guidon reescreveu a história do povoamento ancestral da América.
Pois a arqueóloga acredita numa teoria de amplo alcance: Minha hipótese é a de que houve várias entradas, por diversos caminhos, inclusive por mar. E em várias épocas diferentes. O homem saiu da África e se espalhou pelo mundo. É um absurdo achar que o continente foi povoado somente a partir do Estreito de Bering – como pretende a arqueologia norte-americana, o que daria a eles a primazia do povoamento ancestral da América, já que Bering fica entre a Sibéria russa e o Alasca americano.
Segundo ela, os primeiros homens teriam chegado há 100 mil anos, e por via marítima. No período glacial, o Atlântico estaria impressionantes 140 metros abaixo de seu nível atual, reduzindo a distância entre a África e a América e fazendo aflorar inúmeras ilhas no percurso. A África passava então por uma enorme seca, que quase dizimou a espécie humana e a induziu a migrar.
Ventos e correntes, que se lançam para oeste, teriam levado esses homens pioneiros até o litoral da América. Niède especula que foram empurrados para o Norte e Nordeste brasileiros. Mas também considera que houve migrações pelo Pacífico. Essas levas de origem africana encontraram-se com aquelas de origem asiática, que avançaram pelo Estreito de Bering, sendo por elas absorvidas. Existem inclusive vestígios, ainda que raros, de indivíduos miscigenados, com traços dessas duas origens.
Esta hipótese parece ser, entretanto, vulnerável, devido a uma importante razão: a carência de vestígios. Niède argumenta que a arqueologia americana tem sido insuficiente.
Nos Estados Unidos, só se tem pesquisado na Costa Oeste e sempre a pouca profundidade, pois lá existe o dogma da presença recente do homem. Ou seja, os arqueólogos consideram que escavações profundas não acrescentariam novas evidências. Na prática francesa, ao contrário, escava-se até encontrar a rocha.
Nos demais países americanos, a pesquisa tem sido limitada. Exceto recentemente no Brasil, em especial no Sítio da Pedra Furada, que tem sido escavado continuamente há décadas. Porém o clima quente e úmido não colaborou com a conservação dos artefatos e esqueletos encontrados – fazendo-os escassos e difíceis de datar.
Próximo ao PN da Serra da Capivara existe outra reserva federal enorme, de quatro vezes o seu tamanho. É o PN da Serra das Confusões, nome explicado pela cambiante coloração da serra – verde pela manhã, vermelha após o meio dia e amarela à tarde – que induzia a erro os viajantes.
Recoberto mais por cerrado do que por caatinga, como seu vizinho, também contém inscrições ancestrais. Não era sequer visitado quando o conheci, mas lá encontrei os inconfundíveis veículos amarelos comandados por Niède, por certo à busca de novos sítios rupestres.
Pois ela sempre quis unir as duas áreas, antes que os assentamentos circundassem a sua e interrompessem o corredor natural entre elas, que permitia a livre migração dos animais. Estes buscavam na seca as regiões úmidas da Serra das Confusões e retornavam nas chuvas à Serra da Capivara.
O espaço entre elas foi desmatado e plantado, separando para sempre os dois Parques. O esforço de Niède conseguiu dotar em 30 anos o Capivara de uma excelente estrutura nas suas muitas portarias. Desde sua fundação 25 anos atrás, o Governo nunca se interessou por desenvolver o Confusões, que continua até hoje com seu único e precário acesso.
Agora, Niède Guidon é uma octogenária. Suas brilhantes imagens escavando na Pedra Furada, uma mulher tão enérgica e bonita, já estão distantes. Contraiu doença tropical, dolorida e incurável, que dificulta seus movimentos. Não consigo mais. Não posso mais ver as coisas bonitas que tem lá, diz se referindo ao Parque.
Não mais se parece com aquela guerreira que, de tão brava, chegou a servir de nome para uma aranha de ataque mortal descoberta na região. A França me emprestou, vim para cá, fiz todo esse projeto. Deixei de morar em Paris para morar (no Piauí), para defender esse patrimônio e não consegui. Realmente um fracasso total, resume ela com tristeza.
Leio suas entrevistas: o Parque contava com 270 funcionários, há dez anos eram 80 e agora são meros 30. Seus piores momentos talvez tenham sido passados em Brasília, mendigando dinheiro. Chegou a fechar o Parque algumas vezes, por falta de recursos.
Nunca conseguiu dispor de um orçamento anual. A ação social para integrar e promover as comunidades foi desvirtuada pelo governo. O prometido aeroporto recebeu uma verba milionária, que derreteu sob o sol forte – sua inexistência contribuiu para que a visitação do Parque não passasse de ridículas 25 mil pessoas/ano.
Quando retorno lá depois de dez anos, noto a diferença – menos cuidado, menos orgulho. Disseram que a gestão era compartilhada, ela a dividia com uma bióloga indicada pelo Governo, por certo com grande conhecimento da história primitiva do homem.
Quando Dante escreveu A Divina Comédia, criou um severo aviso na porta do seu inferno. É o mesmo que decora a entrada da casa de Niède Guidon: Lasciate ogni speranza, voi che entrate, aconselhando aos que entrarem a abandonar toda esperança. Parece que ela antecipava o desengano e amargura de seus últimos anos.
Numa noite, ao abastecer o carro na cidade vizinha de São Raimundo, ouço que ela vai embora, ficou rica e não precisa mais trabalhar. Niède não criou filhos, herdeiros ou sucessores, diz que pensa viver sua aposentadoria num asilo na França. É desta forma que o Brasil recompensa os seus guerreiros.