As Missões

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Alessandra e eu pouco sabíamos sobre as antigas missões gaúchas, quando ensaiamos uma pequena de travessia entre elas. As missões ou reduções foram povoados criadas durante o período colonial pelos jesuítas, para a proteção e educação dos índios do sul do continente.

Fazia um tremendo calor ao longo da paisagem ondulada, com bonitas plantações de soja e calmos campos de pastoreio, que se sucediam no ritmo lento de nossa caminhada. Acordávamos na madrugada ainda escura e procurávamos alcançar os locais de pouso antes do calor da tarde. O que permitia fartas conversas com os casais gaúchos que nos acolhiam.

Muitos anos depois, na volta de uma viagem pelas terras desoladas dos Andes, aproveitamos para conhecer as missões paraguaias e argentinas. O clima então era úmido e tínhamos menos tempo, devido ás distâncias maiores e ao desejo de retornar para casa. Ainda assim, foram muitas conversas com as pessoas do sul, naturalmente agora em espanhol.

Existe no Brasil uma rota a ser feita a pé ou de bike, chamada de Caminho das Missões. Atravessa os chamados Sete Povos, um conjunto de sete reduções implantadas pelos jesuítas espanhóis no Rio Grande do Sul. Você pode escolher entre caminhar por 70 km em três dias, por quase 200 km numa semana ou por mais de 300 km em duas.

Roteiro do Caminho das Missões entre Santo Ângelo (São Miguel) e São Borja. Foi nosso primeiro contato com as missões.

Mas, se quiser também visitar as ruínas paraguaias e argentinas, talvez percorra algo como 750 km – equivalente a um Caminho de Santiago, porém ainda não tão bem estruturado. O roteiro foi inaugurado muito recentemente, enquanto o trajeto brasileiro já é oferecido comercialmente há vinte anos.

Este capítulo é um relato da surpreendente criação das missões, da sua grande obra educadora e da sua lamentável destruição e decadência.

Em consequência dos descobrimentos de terras distantes pelos europeus, surgiram novas ordens religiosas, dirigidas para a conversão dos povos da Ásia, da África e da América.

Diferentemente das antigas ordens voltadas para a cultura ou a caridade, como os dominicanos e os franciscanos, a dos jesuítas era um corpo missionário rigidamente disciplinado – semelhante a uma milícia, era dirigida para a atividade pastoral e educativa, para a ação no mundo, não para o misticismo, o estudo ou a contemplação.

Fundada em 1534 pelo nobre espanhol Inácio de Loyola, os jesuítas logo se expandiram para países como o Japão, a China, o Congo ou a Etiópia. Porém sua presença mais marcante aconteceu nas colônias espanholas e portuguesas – em especial na América do Sul.

Santo Inácio de Loyola (1491-1556) foi militar antes de fundar a Companhia de Jesus com seis companheiros. Foram os principais missionários após a Reforma.

Influentes e poderosos, ricos e organizados, os assim chamados Soldados de Cristo acabaram temidos pelos governos, invejados pelas outras ordens e odiados pelos anticlericais e liberais.

Em 1773 a ordem foi suprimida pelo Papa, com muitos padres sendo presos, exilados e supliciados. Porém foram aceitos na Rússia e na Polônia, onde tiveram grande sucesso, sendo autorizados pela Igreja a operar nesses países. Só no século seguinte a ordem foi restaurada, crescendo enormemente pelos 1 ½ séculos seguintes.

Os jesuítas compõem hoje a ordem mais numerosa da Igreja Católica, com quase 20 mil membros. Sua presença na educação continua importante, com centenas de colégios e universidades.

E Mario Bergoglio foi eleito o primeiro Papa jesuíta da história, sob o nome de Francisco. Seu estilo pragmático, despojado e combativo me parece uma herança da sua formação jesuítica.

As pilhagens, assassinatos e escravizações dos índios na América escandalizavam os europeus e impediam a obra missionária dos jesuítas. Tanto José de Acosta no Peru como Manuel da Nóbrega no Brasil tiveram a mesma ideia de segregar os indígenas em povoados autônomos. Isto permitiria a sua mais fácil atração, a proteção de suas vidas e bens, sua doutrinação religiosa e a preservação de seus costumes.

Nóbrega propôs sujeitar os índios de forma autoritária e as missões conduzidas no norte do Brasil pelos portugueses não foram bem sucedidas. Sua história foi instável e violenta, sem deixar hoje traços visíveis.

Ao contrário, o modelo espanhol de Acosta previa que o governo civil seria exercido pelos indígenas, cabendo aos padres a administração do ensino e da justiça. As reduções espanholas tornaram-se prósperas, superando bastante o nível de vida das vilas coloniais e praticando uma gestão mais humana e eficiente.

Mapa das reduções jesuítas entre Brasil, Argentina e Paraguai.

O primeiro objetivo era evangelizador, ou seja, a conversão dos índios. Esta prática expandiu-se para a sua aculturação. A educação era central ao projeto jesuíta, seja para o progresso social dos índios ou para a preservação dos seus costumes. A educação incluía não só as línguas (dos indígenas e dos padres), mas também os ofícios (em especial na agricultura e pecuária) e as artes (principalmente música, teatro e escultura).

Outro objetivo era naturalmente protegê-los contra as ações escravizadoras dos bandeirantes e os conflitos com os colonos. Mas havia também objetivos econômicos, no aproveitamento do enorme rebanho bovino que vivia livre nos pampas, no comércio (e mesmo exportação) de gêneros alimentícios e artesanais e na obtenção de receitas para a ordem e impostos para a Coroa.

E, finalmente, o objetivo inovador de criar uma sociedade missioneira justa e fraterna, com tolerância e progresso, mas sem vícios e violências, numa das mais notáveis utopias da história, como disse um cronista.

As missões se espalharam a partir do século XVII por toda a América colonial, da Flórida à Bolívia, do Peru ao Canadá.

Plano de uma missão, indicando a igreja, a praça, o cabildo ou conselho, a escola, as oficinas, moradias e plantações.

Tinham em geral um traçado típico, a partir de uma grande praça retangular, definida pelo pórtico de entrada e pela igreja, que era naturalmente a principal edificação. Construídas em pedras ou tijolos, foram com frequência obra de arquitetos italianos, com um desenho simples e bonito.

No entorno da praça eram instaladas as moradias dos índios, a escola e o claustro, o cemitério e as oficinas. Mais além ficavam os pomares, as hortas e sobretudo os pastos. Este planejamento não era fixo, podia variar conforme as necessidades e preferências.

A mim parece impressionante o sentimento de ordem transmitido por todas as missões que visitei. E a melancolia, modéstia e humildade das muitas figuras esculpidas, que me fitavam na serenidade rústica da pedra. Entre as missões que conheci, são belíssimas Santo Inácio na Argentina, São Miguel no Brasil e Santíssima Trindade no Paraguai.

Às vezes o núcleo das reduções era protegido por trincheiras e muros, pois podiam ser atacadas por bandeirantes ou índios rivais. Algumas delas possuíam exército e cavalaria, sendo armadas pelos padres. Quando sua produção não era suficiente, os jesuítas operavam fazendas independentes, com o objetivo de abastecê-las. Os escravos negros que lá trabalhavam não se misturavam com os indígenas.

As reduções funcionavam quase como cidades-estados autossuficientes, sob orientação religiosa e autonomia administrativa, garantida pela Coroa. Algumas eram particularmente populosas, como Santíssima Trinidade com 3 mil pessoas. O conjunto dos Sete Povos das Missões abrigava 30 mil indígenas, das etnias guarani, charrua e minuano.

Como se localiza no Brasil e corresponde ao chamado Caminho das Missões de que falei antes, vou contar a sua história.

Os Sete Povos das Missões, localizados no norte do RS, junto à divisa com a Argentina.

Os Sete Povos resultaram da destruição das dezoito Reduções do Tape espanholas, atacadas pelos bandeirantes cerca de dez anos depois de sua fundação em 1626. O Tape ficava próximo do Rio Uruguai, porém no lado brasileiro (oriental), onde é hoje o Rio Grande do Sul, então ocupado pelos espanhóis.

O Rei de Espanha havia condenado a escravização dos indígenas, gerando forte reação em São Paulo e no Rio de Janeiro. Os bandeirantes organizaram em represália uma grande expedição punitiva.

Mas os guaranis, com ajuda dos jesuítas, foram aparelhados com armas e barcos – e os repeliram nos dois confrontos navais de M´Bororé, no início e no fim de 1641. Este é o nome de um modesto morro às margens do Rio Uruguai – também nomeia o afluente que se tingiu do sangue dos combatentes.

A missão de São Miguel em Santo Ângelo no RS, talvez a mais formosa de todas.

Com a expulsão e desistência dos bandeirantes, os jesuítas espanhóis puderam então fundar durante um quarto de século as sete reduções, algumas sobre as ruínas anteriores. Ficavam entre São Borja e Santo Ângelo, que são os dois extremos da rota hoje percorrida pelo Caminho das Missões.

Os povos das reduções produziram uma surpreendente arte barroca, com uma mistura de escolas europeias e nativas. As obras, principalmente as esculturas, partiam de cópias de modelos europeus, porém com traços próprios. Sua música era considerada simples e expressiva.

Escultura dos Sete Povos das Missões (1).

Escultura dos Sete Povos das Missões (2).

A maior expressão da arte missioneira, entretanto, não ocorreu no sul e sim no Peru. A Escola de Cuzco, com a participação dos incas, mais evoluídos do que os guaranis, produziu um brilhante estilo de pinturas ornamentadas. Figuras frontais, com vestes suntuosas e cores vivas, em poses majestosas de fino acabamento criaram uma solene ilusão de beleza até hoje imitada.

A Escola de Cuzco criou um estilo barroco indígena, com temas reais ou sacros de opulento visual.

Gostaria agora de comentar sobre a língua guarani. Aqueles que a estudaram (principalmente os jesuítas) descobriram que tinha uma estrutura firme e uma grande elegância. Era capaz de nomear com clareza e precisão coisas, sentimentos e ideias. Talvez você se surpreenda ao saber que o guarani é falado ainda hoje por sete milhões de pessoas, por ser um dos idiomas oficiais do Paraguai (e de parte da Bolívia).

Aqui a língua colonial não era o português e sim a chamada língua geral, derivada do tupi da costa atlântica. Ela se dividiu em dois troncos. O setentrional ou o nheengatu amazônico, é ensinado e falado até hoje no Norte. O meridional ou língua geral paulista, tornou-se extinta. A língua geral foi proibida no século XVIII pelo Marquês de Pombal, o mesmo que expulsou os jesuítas do Brasil. Porém sobreviveu até os começos do século XX.

O Tratado de Madri entre Espanha e Portugal determinava que a primeira desocuparia as missões na margem oriental do Rio Uruguai, relocando-as para a margem oposta – enquanto Portugal cederia por sua vez a Colônia de Sacramento.

Porém os guaranis dos Sete Povos rebelaram-se contra este absurdo: o abandono de seus lares arduamente construídos, de sua terra onde habitaram e semearam, e a transferência de 30 mil pessoas e 700 mil cabeças de gado através de um largo rio caudaloso.

Eles guerrearam duramente contra os ibéricos por três anos, tendo sido exterminados em 1756. Os sobreviventes foram finalmente evacuados para o lado ocidental do rio. Este foi o triste fim das chamadas Guerras Guaraníticas, que opuseram esses pobres e valentes homens da terra contra o aparato dos invasores dela.

Sepé Tiaraju (1723-1756), líder guarani e espírito gaúcho da liberdade.

O chefe indígena dos Sete Povos era Sepé Tiaraju. Órfão adotado pelos guaranis, foi treinado militarmente e comandou com inteligência e bravura a resistência de seu povo.  Na batalha em que foi morto, declarou: Essa terra tem dono, frase os gaúchos acreditam representar a sua própria coragem.

A expulsão dos jesuítas do Brasil contribuiu para desestruturar os Sete Povos. O governo civil que os substituiu foi um fracasso, com quebras de produção, revoltas e deserções, depredações dos prédios e saques das igrejas. E a dissolução pelo Papa da ordem dos jesuítas determinou o fim de todo o ciclo missioneiro.

As ruínas de Santíssima Trindade no Paraguai.

Depois disso, os sobreviventes dos Sete Povos foram saqueados em 1828 por Rivera, um militar sanguinário que veio a ser o primeiro presidente uruguaio. As obras de arte que representaram o esplendor das missões foram surrupiadas em carretas para o Uruguai.

Com o novo êxodo dos índios, sobraram algo mais de três centenas deles, descritos por um cronista como um bagaço de gente. Hoje só as ruínas silenciosas, que viveram por dois séculos, testemunham a grandeza daquela singular utopia jesuíta.

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Sobre o autor

Nasci no Rio, vivo em São Paulo, mas meu lugar é em Minas. Fui casado algumas vezes e quase nunca fiquei solteiro. Meus três filhos vieram do primeiro casamento. Estudei engenharia e depois administração, e percebi que nenhuma delas seria o meu destino. Mas esta segunda carreira trouxe boa recompensa, então não a abandonei. Até que um dia, resultado do acaso e da curiosidade, encontrei na natureza a minha vocação. E, nela, de início principalmente as montanhas. Hoje, elas são acompanhadas por um grande interesse pelos ambientes naturais. Então, acho que me transformei naquela figura antiga e genérica do naturalista.

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