Os Cronistas Coloniais

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Se você viveu bastante, então ao se recordar de sua vida percorre a sua história pessoal. Quando rememora a trajetória de seus pais, irmãos ou tios, consulta a sua história familiar. Se considera os eventos da sua cidade, quem a colonizou, o rio que a atravessa, os novos bairros no alto do morro, está indagando sobre a história regional. E quando pensa no seu país, como começou, se tornou independente, ocupou suas fronteiras, então se pergunta sobre a história nacional.

Mas você não teria nenhuma dessas histórias se não houvesse o registro dos seus fatos importantes: uma certidão de nascimento, uma data de descoberta ou de fundação, uma carta geográfica ou litorânea, um momento de fuga ou de regresso, uma situação de crise ou crescimento, um registro de casamento ou de imigração. E, tampouco, se não houvesse alguém que fizesse o relato e a interpretação de todos esses eventos.

Essa pessoa é o historiador. A meu ver, a história é o mais abrangente dos conhecimentos. Em uma coluna anterior, comentei sobre os primeiros historiadores de nossa terra, ou seja, durante o descobrimento – começando naturalmente pela carta de Pero Vaz de Caminha. Escrevo agora sobre os relatos feitos em seguida, durante o período colonial.

Os Cronistas Coloniais

Frei Vicente do Salvador (1564-1636) é considerado o primeiro historiador do país. E com razão, pois na sua História do Brasil ele narra os acontecimentos desde nosso descobrimento até a expulsão dos holandeses, ou seja, quase um século e meio de nossa história inicial. Descreve a terra e os nativos, as capitanias hereditárias, os sucessivos governadores gerais e as guerras contra índios e invasores.

Ele foi um padre franciscano nascido em Salvador e formado em Coimbra. Serviu no Nordeste, participou da fundação do Convento de Santo Antônio no Rio e teve importantes funções administrativas junto à sua Ordem. Quando esteve em Portugal para prestar contas de suas atividades, foi-lhe sugerido que pesquisasse a história da colônia. E ele assim fez por sete longos anos até 1627, data do término de seu livro, que entretanto ele nunca viu publicado.

Numa de suas viagens de estudo, ao voltar do Rio para Salvador, Frei Vicente foi capturado pelos holandeses. Permaneceu preso por um ano, até a derrota dos invasores. Seus vívidos relatos se beneficiaram tanto de sua presença no Brasil como de seu acesso aos arquivos portugueses.

Você vai encontrar neste capítulo vários padres historiadores. As razões são variadas: num país sem cultura, tinham a vantagem de serem letrados, além de contarem com estrutura de apoio, disponibilidade de tempo e influência junto às fontes de informação. Este foi o caso de Frei Vicente, um homem dedicado, ativo e estudioso.

A obra de Frei Vicente cobriu os primeiros século e meio de nossa história. O livro só sobreviveu como manuscrito, um dos quais foi publicado no fim do século XIX.

A obra de Frei Vicente é dividida em cinco livros e começa de forma curiosa: Livro primeiro em que se trata do descobrimento do Brasil, costumes dos naturais, aves, peixes, animais e do mesmo Brasil. Seu texto é claro e objetivo, num estilo forte, vivo e irônico, com uma opinião crítica em relação aos portugueses. Tem o formato tradicional de um relato cronológico e descritivo.

É famosa uma das primeiras frases do livro: é a terra do Brasil da figura de uma harpa, cuja parte superior fica mais larga ao norte (…) e as colaterais do sertão correndo do norte a sul, e da costa do nordeste a sudoeste, se vão ajuntar no Rio da Prata em uma ponta à maneira de harpa. Da largura que a terra do Brasil tem para o sertão não trato, porque até agora não houve quem a andasse, por negligência dos portugueses que, sendo grandes conquistadores de terras, não se aproveitam delas, mas contentam-se de as andar arranhando ao longo do mar como caranguejos.

Frei Vicente termina o livro com seu estilo cortante: e darei fim a esta História, porque sou de 63, e é já tempo de tratar só da minha vida, e não das alheias. Mas, pelo visto, os alheios não se preocuparam muito com livro de tamanha importância – a edição completa da obra, que incrivelmente passou muito tempo perdida, só aconteceu 250 anos após a morte de seu autor. Em outro capítulo, você saberá quem a recuperou.

A Holanda era um país em ascensão quando planejou invadir o Brasil. Seu objetivo era restaurar o comércio do açúcar, interrompido por sua adversária Espanha. Nesta época, Portugal e suas colônias estavam sob domínio espanhol. Naturalmente, a Espanha bloqueou o refino e a distribuição que os holandeses até então faziam do açúcar brasileiro.

E Pernambuco, o mais rico dos domínios portuguesas no Brasil, foi conquistado pela ação da maior esquadra estrangeira jamais vista na colônia. O Conde Maurício de Nassau foi enviado para governar esse novo território. Ele foi o primeiro dominador estrangeiro a trazer para o Brasil uma equipe de cientistas e artistas para estudar o país. Até então, as expedições compunham-se apenas de soldados, comerciantes e padres – quando não de degredados.

O palácio de Maurício de Nassau em Recife, que era então considerada a mais cosmopolita cidade das Américas. Os holandeses dominaram Pernambuco por um quarto de século.

Nassau encomendou ao humanista Gaspar Barléu (1584-1648) o relato do período em que liderou a empresa holandesa no Nordeste. Assim surgiu a História dos Feitos Praticados no Brasil, uma obra ricamente ilustrada, pois pôde se valer do acervo de mapas e figuras dos holandeses. Barléu assim descreve Nassau: ostentava ele no porte e no corpo a bizarria e gentileza não só própria da idade viril, mas também da dignidade do seu alto cargo.

O livro comenta sobre a exótica natureza brasileira, descreve as guerras da ocupação holandesa e detalha o período em que Nassau comandou a economia local, realizando importantes reformas. Mas Barléu nunca esteve no Brasil e seu texto enfeitado parece um tanto suspeito, elaborado sob a ótica holandesa e carregado de excessivos elogios. Ao saber das práticas libertinas da colônia, escreveu sua mais famosa passagem ao dizer como se a linha que divide os hemisférios separasse também a virtude do vício.

Vou fazer uma breve menção ao jesuíta Fernão Cardim (1549-1625), que se dedicou durante quase quarenta anos à catequese dos indígenas, desde Pernambuco até São Vicente. Pertencia a uma importante família do Alentejo e era descrito como uma pessoa incansável e curiosa.

Sua obra foi pequena: uma brilhante narrativa em carta sobre as missões jesuíticas e dois tratados, sobre o clima e a terra do Brasil e sobre as origens e os costumes dos indígenas. E, pior, esses textos só vieram a ser conhecidos em conjunto em 1925, quando publicados sob o título de Tratados da Gente e da Terra do Brasil. Você perceberá que esta foi uma infeliz prática durante os tempos da colônia – simplesmente esquecer aqueles que a descreveram.

A obra de Fernão Cardim não foi publicada em vida. Só no século XX seus textos puderam ser reunidos num livro único.

Cardim foi um escritor objetivo, que relatava sem julgar as realidades que encontrava. Como não podia deixar de ser, ele se encantou com a exuberância de nossa fauna e flora. Mostrou muita admiração pelo país: este Brasil já é outro Portugal, e não falando no clima que é muito mais temperado e sadio, sem calmas grandes nem frios, e donde os homens vivem muito com poucas doenças.

A curiosidade de Cardim sobre nossos indígenas o fez debruçar-se sobre as tribos e os idiomas, sobre as cerimônias e a educação, sobre os alimentos e os instrumentos, os costumes e a religião. Rodolfo Garcia disse sobre sua obra: o que nesses escritos verdadeiramente nos encanta é a nota de constante bom humor, a vivacidade da narrativa, a graça das comparações. Fernão Cardim foi uma admirável testemunha da realidade humana e geográfica do Brasil.

Assim como Frei Vicente e Fernão Cardim, André João Antonil (1649-1716) era religioso, formado em Direito na Itália, sua terra natal. Seu nome original era Giovanni Antonio Andreoni, que ele mesmo mudou. Como um jovem jesuíta, chamou a atenção do Padre Antônio Vieira, que o trouxe ao Brasil. Chegou em Salvador por volta dos trinta anos e lá viveu até sua morte aos sessenta.

Antonil escreveu sobre o início do Ciclo do Ouro. O minério era extraído nos leitos ou encostas dos rios. Ele criticou fortemente a atividade.

Antonil era um observador atento e sistemático, capaz de escrever com detalhe e estudo sobre a realidade colonial. Diferentemente de Frei Vicente, não se preocupou com o relato histórico e sim com a análise social e econômica. Sua obra fundamental Cultura e Opulência do Brasil foi publicada em 1711, quase cem anos após o término do livro de Frei Vicente. Foi dividida em quatro partes, cada qual versando sobre uma atividade econômica: a cana de açúcar, a mineração de ouro, a cultura do tabaco e a criação de gado.

O relato de Antonil é precioso, como foi dito cheio de grandes méritos pela abundância, riqueza e sinceridade dos informes. Sobre a indústria da cana de açúcar, ele comenta desde a compra da terra e a organização dos feitores, desde a escolha dos maquinários e a educação da família dos senhores de engenho, desde as formas de produção e os valores do comércio. Sua obra traz surpreendentes estatísticas sobre os volumes e preços da produção.

Engenho de açúcar da época de Antonil. Ele foi o maior historiador da sociedade canavieira da colônia.

Nesta época a mineração do ouro estava em franca expansão, movida pela cobiça do enriquecimento fácil. Antonil observa os efeitos da carestia, dos abusos, das migrações, da desorganização da produção e da dissolução moral da sociedade. Relata os rendimentos e qualidades do ouro, os roteiros e repartições das minas, os processos de produção e, como é do seu feitio, os volumes e valores processados. Antonil também pesquisou a lavoura do fumo e, de maneira mais superficial, a criação de gado.

Ele diz de forma crítica que não há pessoa prudente a que não confesse haver Deus permitido que se descubra nas minas tanto ouro, para castigar com ele o Brasil, assim como está castigando no mesmo tempo tão abundante de guerras, aos europeus com o ferro.

Comentou ao fim de sua obra que bem se vê a utilidade que resulta continuamente do estado do Brasil aos portos e reinos de Portugal (…) nada mais justo, pois, que se favoreça o Brasil por ser de tanta utilidade ao Reino de Portugal. Assim, Antonil não apenas documentou a riqueza da colônia, como criticou a injustiça praticada no seu governo.

Não surpreende que o livro fosse considerado perigoso. A Coroa não se limitou a proibi-lo, mas ainda confiscou todos os exemplares que encontrou. Cultura e Opulência simplesmente desapareceu, até que fosse reeditada mais de um século depois, num país já independente de Portugal. Passou a ser indispensável a todos estudos sobre o Brasil Colônia.

Não queria abandonar este texto sem falar daqueles escritores que se dedicaram não à sua, mas a uma outra língua – à dos indígenas. O jesuíta português Luís Figueira (1574-1643) escreveu uma das primeiras gramáticas da língua tupi, no período em que estava em Pernambuco.

Entretanto, Figueira na realidade viveu por cerca de trinta anos no Maranhão, então invadido pelos franceses. Lá desenvolveu grande ação evangélica. Depois das aventuras da França Antártica do século XVI, referidas num capítulo de um livro anterior meu, houve no século seguinte a investida no Norte da chamada França Equinocial. (Na realidade, os franceses só desistiram de possessões no Brasil ao perder em 1900 um grande território no Amapá.)

Figueira tinha duas opiniões importantes. Era contrário à exploração dos indígenas, lutando contra sua escravização pelo gentio, posição muito comum entre os jesuítas. Acreditava também que a ação missionária era fundamental para controlar os nativos e erradicar a perigosa presença estrangeira na Amazônia

No fim da vida, Figueira recrutou jovens jesuítas para uma nova missão no Maranhão. O embarque em São Luís foi complicado, pois a cidade fora invadida pelos holandeses. A embarcação naufragou perto da Ilha de Marajó. Figueira preferiu não ser dos primeiros a serem regatados e morreu tentando prestar auxílio aos demais embarcados.

Esta foi a primeira edição da obra de Luís Figueira. Os jesuítas criaram e sistematizaram o nheengatu, fusão do português com o tupi-guarani.

Figueira foi sucedido em sua obra por João Felipe Bettendorff (1625-1698), um jesuíta luxemburguês com talentos artísticos. Ele também se envolveu longamente na atividade missionária no Maranhão. Sua ação protetora dos nativos acabou lhe custando a expulsão da região.

Bettendorff foi igualmente um estudioso do idioma nheengatu e reeditou em Lisboa a Arte da Língua Brasílica, a conhecida gramática de Luís Figueira. Os índios foram sendo dizimados, mas pelo menos sua língua pôde ser documentada.

Mas o maior fato histórico do fim do período colonial foi a Inconfidência Mineira, quando membros da elite de Vila Rica se insurgiram contra a governo português. O grande símbolo do movimento foi Tiradentes, sentenciado no Rio de Janeiro três anos depois do início da revolta.

E quem foi o cronista deste movimento? Infelizmente, não existe nenhum relato a ele contemporâneo. Que eu saiba, a primeira obra a respeito foi a História da Conjuração Mineira de Joaquim Norberto Souza e Silva, um trabalho considerado de pouco valor. Datada de quase cem anos depois do evento, procura diminuir a importância de Tiradentes.

De muito valor, porém, são os Autos de Devassa da Inconfidência Mineira, impressionante registro em três mil páginas do julgamento dos inconfidentes pela Coroa. Foi no seu texto abundante que me baseei para escrever o relato sobre Tiradentes em outra coluna.

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Sobre o autor

Nasci no Rio, vivo em São Paulo, mas meu lugar é em Minas. Fui casado algumas vezes e quase nunca fiquei solteiro. Meus três filhos vieram do primeiro casamento. Estudei engenharia e depois administração, e percebi que nenhuma delas seria o meu destino. Mas esta segunda carreira trouxe boa recompensa, então não a abandonei. Até que um dia, resultado do acaso e da curiosidade, encontrei na natureza a minha vocação. E, nela, de início principalmente as montanhas. Hoje, elas são acompanhadas por um grande interesse pelos ambientes naturais. Então, acho que me transformei naquela figura antiga e genérica do naturalista.

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