Os Historiadores

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Em livros anteriores, escrevi sobre os cronistas das épocas do Descobrimento e da Colônia. Entretanto, até meados do século XIX, quando o Brasil já era um Império independente, não havia um relato histórico abrangente sobre o jovem país.  Os novos historiadores que vou descrever foram capazes de criar esta narrativa.

Três estrangeiros, curiosamente, foram pioneiros em esboçar uma ampla descrição de nossa história, talvez devido à visibilidade do Brasil causada pela transferência da Corte portuguesa para cá.

O britânico Robert Southey foi o primeiro a analisar o Brasil em relação ao contexto europeu e às colônias da América Espanhola, valendo-se da farta documentação dos arquivos europeus ao seu alcance. Southey preocupou-se com a crítica das fontes (algo que até então não existia) e construiu uma narrativa realista, ao apontar as dificuldades impostas pelo meio e pelos nativos à conquista de nosso território.

Robert Southey foi poeta e ensaísta, com muitas obras publicadas. Teve à sua disposição a enorme biblioteca do seu tio. Além de escrever sobre o Brasil, pesquisou a história de Portugal.

O relato de Southey, que nunca esteve no Brasil, estendeu-se até a chegada de Dom João VI. Foi publicado de 1810 a 1819. Coube a John Armitage continuá-lo até a abdicação de Dom Pedro I. Ao contrário, Armitage viveu longamente no Brasil, como funcionário de uma casa comercial inglesa e pôde comparar o engessamento da sociedade brasileira face à liberdade de comércio dos ingleses. Sua obra foi publicada em 1836. Assim como Southey, desenvolveu um relato objetivo e foi crítico de nossos costumes.

O terceiro europeu foi o alemão Heinrich Handelmann, cujo livro saiu em 1860, sem que jamais tivesse visitado o Brasil. É impressionante como este professor universitário tenha acumulado a massa de conhecimentos que lhe permitiu descrever nossa política e administração e nossa sociedade e economia. Além da objetividade e da busca de fontes praticada pelos ingleses, Handelmann perseguiu um entendimento orgânico da história, não apenas seu relato factual.

Em 1839 foi fundado o IHGB, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, fortemente apoiado pelo governo de Dom Pedro II. Sua função principal foi a busca da documentação sobre a nossa história, seguindo a tendência europeia.

Mas é importante lembrar que, até então, nossos relatos históricos eram baseados numa ridícula exaltação do país: seu clima era considerado benigno, sua terra fértil e amena, seus homens bravos e criativos, seus indígenas nobres ancestrais –  chegava-se a afirmar que o Brasil era um centro de luzes e de civilização, o árbitro da política do novo mundo.

Os relatos eram pedantes e patrióticos, sem objetividade ou concisão. Não havia pesquisa nem análise, apenas descrições otimistas e superficiais de um país idílico e surreal, pacífico e progressista, que nunca chegou a existir.

Na realidade, existe um precursor desta situação: Sebastião da Rocha Pita (1660-1738), pertencente à elite colonial baiana. Até os escritos mais abrangentes do século XIX, sua História da América Portuguesa era o único texto amplo sobre nossa história. Porém não tinha nenhum compromisso com as fontes documentais ou a veracidade dos fatos – numa antiquada prosa poética, era um hino de louvor á terra e ao homem que a colonizou.

Mas não o confunda com José da Rocha Pombo (1857-1933), um modesto professor do interior paranaense que publicou no início do século XX uma prodigiosa História do Brasil em nada menos do que dez volumes. Não se sabe como ele pôde levar doze anos editando o que foi considerada a obra mais vasta, a mais considerável da nossa literatura, pela superfície imensa que cobriu, das origens do Brasil aos dias presentes. Mas, de novo, foi antes uma obra de erudição do que de pesquisa.

O diplomata Francisco Varnhagen pesquisou no Brasil e no Exterior uma enorme quantidade de documentos sobre nosso passado. Sua História do Brasil era considerada a mais completa da época.

Até que surgiu Varnhagen. Seu pai foi um engenheiro alemão que se casou com uma portuguesa. Ele veio ao Brasil instalar a fundição de ferro de Ipanema (SP), num belo prédio que pode até hoje ser visitado.

O filho Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878) seguiu a carreira diplomática, em uma dezena de países da Europa e da América. Foi um incansável pesquisador, recolhendo documentos sobre o Brasil em todos os arquivos, bibliotecas e cartórios por onde passou. Escrevia textos em uma porção de línguas vivas e mortas, impressos nos mais variados lugares, para não perder seus ávidos e múltiplos apontamentos.

Varnhagen é considerado o Pai da História do Brasil, como aliás consta em seu túmulo em Sorocaba, e por duas importantes razões: a extensão de sua pesquisa, que estabeleceu um exemplo para o futuro, e o fato de ter abarcado toda a nossa história, e não apenas períodos dela. Sua História Geral do Brasilpublicada em dois volumes de 1854 a 1857, era considerada na época a crônica definitiva sobre o país.

Entretanto, a sua forma de narrar a história (junto com os historiadores contemporâneos do IHGB) caracterizou-se pela descrição do tipo factual, uma história tradicional no sentido de legitimar as raízes oligárquicas e elitistas do Estado brasileiro que estes historiadores se empenhavam em construir. Ele acreditava que o conjunto de fatos isolados sucessivos formaria uma narrativa objetiva e imparcial.

Assim, sua obra não contém sínteses, análises ou críticas, embora ela se debruce sobre  o processo de povoamento, a contribuição das raças, o desenvolvimento da lavoura e do comércio, a formação dos ofícios e das ciências.

Inexiste uma preocupação com a formação da sociedade brasileira, com a política econômica, com o regime escravagista, com os aspectos sociais ou culturais. Como se dizia então, a sua é uma história pragmática mas não filosófica, no sentido em que não buscou explicar os fatos por uma visão global evolutiva.

Gravura sobre a visita da família real ao monumento em memória a Varnhagen. Fica no alto do Morro de Araçoiaba da Serra (SP), onde existe uma reserva florestal.

Se você quiser homenagear esse homem formidável, visite a Floresta Nacional de Ipanema, nas proximidades de Sorocaba, sua terra natal. Suba ao interessante morro vulcânico e descubra lá em cima um monumento em memória de Varnhagen, nascido na terra fecunda descoberta por Colombo. Iniciado por seu pai nas coisas grandes e úteis, estremeceu sua pátria e escreveu-lhe a historia. Sua alma imortal reúne aqui todas as suas recordações.

Capistrano de Abreu (1853-1927) foi, curiosamente, quase o completo inverso de Varnhagen. Nasceu no interior do Ceará, era e sempre foi pobre, destituído de modos refinados e nunca saiu do Brasil. Estudante rebelde, veio para o Rio de Janeiro, onde obteve cargo na Biblioteca Nacional, ensinando depois por longo período no Colégio Pedro II. Essa escola pública, fundada junto com o IHGB, era na época o modelo de ensino das elites. Existe até hoje em mais de uma dezena de locais no Rio.

Selo comemorativo do centenário do nascimento de Capistrano de Abreu. Foi um incansável pesquisador de nossa história e geografia. Lecionou por quinze anos no Colégio Pedro II.

A sua obra é caracterizada por uma rigorosa investigação das fontes e por uma visão crítica dos fatos históricos. Suas pesquisas fazem assim contraponto às de Varnhagen. Capistrano nunca quis (ou pôde) escrever longos textos. Optou sempre por ensaios, estudos, comentários ou artigos, ricos em informação histórica, mas escassos de história propriamente. De novo neste aspecto, em oposição a Varnhagen.

Porém ambos foram notáveis pesquisadores. Imagine que foi Varnhagen quem descobriu o túmulo de Cabral na Igreja da Graça em Portugal. E foi Capistrano quem encontrou e publicou a obra de Frei Vicente de Salvador, um dos mais importantes cronistas coloniais.

Capistrano cultivou não só a história, mas também a geografia, junto com tudo aquilo que se relacionava ao território, à biologia, à etnologia e à linguística indígena, deixando em cada ramo dessas variadas disciplinas estudos considerados definitivos.

Em realidade, apenas a história colonial o interessou – os índios, as capitanias, os jesuítas, os governadores e as povoações iniciais. Assim, não escreveu sobre o Império ou a República, que lhe eram entretanto contemporâneos.

Era um homem de temperamento áspero e pouco sociável. Consta que quando alguém sugeriu que deveria se unir à Academia de Letras, respondeu que não pertenceria a sociedade nenhuma, a não ser à sociedade humana, da qual contra a vontade já fazia parte. Não recebeu um bonito monumento como Varnhagen. Apenas a rua do sobrado onde modestamente morou em Botafogo no Rio de Janeiro mereceu o seu nome.

O Colégio Pedro II foi fundado durante o Império para desenvolver a educação básica das elites do país. Teve enorme influência e existe até hoje no Rio de Janeiro.

Queria falar sobre três historiadores muito influentes, embora nem todas as suas obras tivessem tido grande abrangência. O pernambucano Manuel de Oliveira Lima (1867-1928) foi diplomata em inúmeros países, da Alemanha ao Japão e à Inglaterra. Boa parte de sua obra foi publicada fora do Brasil. Tinha uma cultura extraordinária. Sua crônica mais importante abrangeu o reinado de Dom João VI, visto por uma abordagem rica dos pontos de vista pessoal e internacional.

Oliveira Lima tinha um temperamento tão difícil como o de Capistrano, o que lhe prejudicou a carreira no Itamaraty, junto a seu poderoso chefe, o Barão do Rio Branco. Sua biblioteca de 60 mil livros foi a terceira maior do país, depois das da Biblioteca Nacional e da USP. Ele a doou a uma universidade em Washington, para onde se mudou no fim da vida e onde se encontra sepultado.

Oliveira Lima (1867-1928) era diplomata e apaixonado por livros. Historiador influente, foi dos primeiros a estudar a formação da nacionalidade brasileira.

A escola predominante da época estabelecia que a autenticidade documental equivalia à verdade por inteiro. Bastava, portanto, uma cuidadosa arrumação cronológica e sistemática dos textos para que a cadeia dos acontecimentos se reconstituísse automaticamente.

Por outro lado, ao fazer a História gravitar em torno da noção de Estado, tornava-se suficiente descrever o quadro político-administrativo, com a sucessão de soberanos, de governadores e de altos funcionários. Esse era o enfoque seguido por Varnhagen.

Porém surgiu na Alemanha um movimento renovador, de rompimento com a historiografia tradicional. Agora, a retrospectiva histórica passaria a abranger todas as formas de cultura e todos os setores de atividade. Foi João Ribeiro (1860-1934), formado em Sergipe, quem introduziu estes novos conceitos no Brasil. Ele os absorveu na Europa, onde fora enviado para estudar os sistemas locais de ensino. Sua História do Brasil foi recebida como um compêndio moderno, lúcido, inovador, uma nova síntese. Foi adotado no ensino em todo o país.

João Ribeiro teve um talento invulgar: estudou, entre outras disciplinas, medicina, música, arquitetura, pintura e literatura. Foi jornalista, crítico, tradutor, cronista, pintor – e, naturalmente, historiador. Como tantos estudiosos na sua época, foi membro do IHGB e da ABL, além de professor do Colégio Pedro II, três das instituições importantes da época.

Rodolfo Garcia foi um jornalista e historiador, com um grande círculo de amizades e importante ação na edição de obras de nosso passado, quando diretor da Biblioteca Nacional.

Rodolfo Garcia (1873-1949) passou metade da vida no Nordeste e o restante no Rio. Coube a ele reeditar as obras de Varnhagen e de Capistrano, de quem era muito próximo. Compartilhava com ele dos interesses sobre a geografia, a etnologia e a linguística nativa. À frente da Biblioteca Nacional, teve uma grande atuação na edição de muitas obras e na reunião de muitos acervos, fundamentais para a  nossa história. Era um homem generoso e agregador.

Prédio da Biblioteca Nacional, que possui o maior acervo de livros do país. Fundada no Império, junto com o Instituto Histórico e Geográfico. Garcia foi ligado a ambos.

Rodolfo Garcia tinha um talento único em analisar e corrigir os textos básicos de nossa historiografia. Isto tornou a sua obra praticamente escondida por esses mesmos textos. Assim como Oliveira Lima, produziu estudos e artigos, por oposição a longas obras. Prestamos mais atenção aos autores de sinfonias, monumentos ou murais, obras de alcance público e impacto sentimental. E deixamos de perceber os humildes tecelões da cultura como Rodolfo Garcia.

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Sobre o autor

Nasci no Rio, vivo em São Paulo, mas meu lugar é em Minas. Fui casado algumas vezes e quase nunca fiquei solteiro. Meus três filhos vieram do primeiro casamento. Estudei engenharia e depois administração, e percebi que nenhuma delas seria o meu destino. Mas esta segunda carreira trouxe boa recompensa, então não a abandonei. Até que um dia, resultado do acaso e da curiosidade, encontrei na natureza a minha vocação. E, nela, de início principalmente as montanhas. Hoje, elas são acompanhadas por um grande interesse pelos ambientes naturais. Então, acho que me transformei naquela figura antiga e genérica do naturalista.

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