Vou lhe contar uma história que se passa no Pantanal brasileiro. O Pantanal é uma enorme savana árida, na sua maior parte alagável, com uma altitude baixa de planície. Fica no oeste mato-grossense, se estendendo também pelo norte paraguaio e o oeste boliviano. Esta região suavemente ondulada pertence à bacia do Rio Paraguai, cuja lenta drenagem causa seu alagamento.
Rico em depressões rasas, é circundado por serras ou encostas bem mais altas, que o limitam. Existem poucas elevações, em geral isoladas, as serras e as chapadas situando-se nos seus limites, não no seu interior. Diz-se que o Pantanal é um país aquático, com talvez 200 a 250 mil km², a maior parte deles no Brasil.
Esse grande mar interior já foi comparado ao oceano, quando os primeiros espanhóis o conheceram na cheia e o chamaram de Mar de Xaraés.
Porém a geologia aponta o soerguimento dos Andes como a força que deformou e afundou a placa onde o Pantanal repousa. Ela a debruçou nos sentidos oeste e sul. Este movimento explica por que os rios do sul e sudeste brasileiro correm para o interior.
Mas o nome pantanal é enganoso, pois existem poucos pântanos na região. Ela é alagada, não pantanosa. Sua inundação não decorre também de chuvas torrenciais, pois no Pantanal chove por exemplo tanto quanto em São Paulo.
Ela acontece devido às baixas declividades: talvez 12 metros entre as extremidades norte e sul desta enorme área e meros 60 metros entre os lados leste e oeste. Assim, diz-se que a água leva nada menos do que quatro meses para atravessá-la.
O percurso das águas é muito interessante. No início da estação chuvosa elas se concentram na borda leste do Pantanal, pois é de lá que fluem os rios vindos do planalto. À medida que o verão prossegue, a área alagada engrossa lentamente, cobrindo talvez a metade direita da região.
Mas, quando as chuvas começam a rarear, o lado leste começa a secar e a inundação passa a avançar vagarosamente para o centro e o oeste. Na seca, a região úmida continua se estreitando e caminhando a oeste até que, no fim do processo, fica restrita à fina faixa da extremidade sul.
Assim, o Pantanal apresenta uma paisagem móvel, conforme as estações. Esta fisionomia pode ser muito afetada nos anos de cheia. A mais catastrófica delas no último meio século foi a de 1974 – embora não tendo sido enorme, veio após dez anos de estiagem, surpreendendo os fazendeiros e dizimando talvez metade do gado pantaneiro. Em geral, a cada década ocorre uma grande cheia – a exemplo das duas recentes, no começo e no fim da década passada.
O Rio Paraguai é um gigante simples e silencioso – o silêncio dele é tão alto que os passarinhos ouvem de longe, como dizia o poeta pantaneiro Manoel de Barros. Percorre 2.700 km, recebendo no Pantanal brasileiro as águas do Cuiabá, Taquari, Miranda e Apa, na Bolívia as do Bermejo e no Paraguai as do Pilcomayo, até mergulhar as suas no Paraná. Notem que a maior parte dos afluentes vem da esquerda, devido à declividade do relevo brasileiro para oeste.
É uma bacia importante, assim como as dos seus principais afluentes. Seus 366 mil km² equivalem às bacias do Araguaia ou do Parnaíba, a 70% da do Xingu e a 4 a 6 vezes as de cursos importantes como o Paranapanema, o Doce e o Paraíba do Sul. Pertence á bacia do Prata, até hoje a única região que tem colocado o Brasil em ativo contato com os países vizinhos.
Possui apenas uma cachoeira, naturalmente no seu trecho inicial, quando nasce na Chapada dos Parecis no MT. Funde-se com uma série de lagoas no seu curso alto, num espetacular processo chamado de coalescência. Corre quase sempre de norte a sul, entre Argentina, Bolívia, Paraguai e Brasil.
Até o passado recente, o comércio e a comunicação da região eram feitos pela bacia do Prata. O Paraguai é um rio lento, e o único que drena todo o Pantanal. Ou seja, as águas deste enorme país úmido confluem apenas para ele, depois de percursos sinuosos. Além da rasa declividade de que já falei, o curso do Paraguai é retardado por algumas soleiras rochosas.
Mas seu afluente Taquari é outra história. Como os demais rios pantaneiros, ele traz os sedimentos do planalto onde nasce para a planície onde escoa. A baixa declividade freia a velocidade das águas e a estação das cheias as faz transbordar – sua calha se transforma numa planície inundada, como é frequente no Pantanal. Porém, no caso do Taquari, ocorrem três complicações.
A primeira é que seu subsolo anormalmente fraturado criou condições para o solapamento e o desmonte do frágil arenito do seu leito numa escala inexistente nos demais rios. A segunda é o refluxo de suas águas quando encontra o Paraguai, empurradas de volta pelas águas deste – o que alaga todo o delta de sua foz.
E a terceira é a presença de abalos sísmicos, que rebaixam ou elevam o terreno, alterando o seu curso, como também acontece com outros rios pantaneiros. Mas, no caso do Taquari, sua região foi soerguida, fazendo com que sua calha esteja acima da planície – isto acarreta o arrombamento de suas margens, fazendo-o sistematicamente invadir novas áreas.
Você deve estar curioso com minha afirmação sobre a presença de abalos sísmicos no Pantanal. Existia na região um antigo oceano, que foi fechado quando da criação do ancestral continente Gondwana. Este processo deixou uma gigantesca cicatriz geológica: estende-se por 4 mil km desde o Paraguai e o Brasil até o Togo e a Argélia – pois nesta época a América estava unida à África.
Ela tem um nome sonoro: Lineamento Transbrasiliano, representando a linha de colisão de dois antigos blocos tectônicos continentais. Semelhante à famosa Falha de San Andrés na Califórnia, mas três vezes maior, ela divide o Brasil entre os domínios Amazônico e Brasiliano. Apresenta uma zona de cisalhamento ou ruptura, por onde emergem os abalos que, no nosso caso, reacomodam os terrenos pantaneiros.
O planalto acima do Pantanal foi fortemente desmatado para a criação de gado e a plantação de soja. Isto aumentou o transporte de sedimentos pelos rios e contribuiu para os assoreamentos.
O Pantanal possui uma natureza vulnerável, com rios de leitos rasos e não encaixados, solo arenoso de fácil erosão e regime variável de chuvas, fatores que facilitam a sua degradação. Como você verá, o impacto na bacia do Taquari foi dramático.
A areia arrastada do planalto deu novos contornos ao Taquari, fez a calha sumir junto com a água, que foi empoçada, espalhada ou simplesmente dissipada. Locais onde operavam portos fluviais são hoje estradas em leitos secos. Outros lugares transformaram-se em pântanos com troncos ressecados de árvores.
Algumas comunidades foram abandonadas pelo rio, que delas se afastou, e se mudaram em desespero para a periferia de Corumbá. Para evitar a falência, os fazendeiros procuram fechar as bocas por onde a água penetra – mas facilitam outros arrombamentos em terras de terceiros.
Os pescadores sabem que o fechamento das bocas provoca a morte dos peixes, tornando-os ainda mais miseráveis. Estabelece-se assim um conflito entre os pantaneiros e os ribeirinhos, ambos arruinados pelas mutações do rio.
Mas, se o rio secou de um lado, do outro fez surgir um segundo Mar de Xaraés, num gigantesco leque alagado na região do Paiaguás no MS.
Ali, uma nova vida está nascendo, um novo e desconhecido bioma que precisa ser estudado para saber se aquela tragédia que expulsou famílias, inundou fazendas e causou a morte de um rio importante acabou dando lugar a um inédito, maravilhoso e inexplorado ambiente, comenta de forma polêmica o Instituto Agwa.
Dizem outros que o Taquari não morreu, que ao contrário renasceu. Há estudos que mostram que em milhares de anos o rio mudou de curso várias vezes. Os braços, córregos e leitos hoje secos foram o Taquari do passado – a propósito, o próprio Paraguai mudou grandemente o seu leito, eliminando uma enorme curvatura a leste.
Todo mundo fala do desastre do rio, mas ele também destruiu o Paiaguás, criou um delta enorme debaixo d´água. O que morreu de animais e o Estado deixou de produzir, ninguém ficou sabendo, opina o produtor Orlei Trindade.
Falta ciência no Pantanal, conclui o biólogo Alcides Faria. Controle do desmatamento no planalto, plantio em curva de nível, dragagem do rio, construção de canal de escoamento, melhores medições das enchentes, estudos do clima e da flora são algumas das medidas propostas para sanear o Taquari– nenhuma delas até hoje sequer iniciadas.
A Guerra do Paraguai (1864-70), que se passou nessas terras ocidentais, mostrou a necessidade de colonizar as vastidões pantaneiras. O Governo estimulou a ocupação pela pecuária e a Fazenda Mutum foi uma das primeiras estabelecidas na região do Paiaguás. Hoje ela pertence a Ruivaldo de Andrade, bisneto do antepassado pioneiro, um homem maduro, expressivo, irrequieto e inteligente.
A família se expandiu e a fazenda chegou a mais de duas mil cabeças de gado. Porém, dos seus 5 mil hectares, hoje sobram apenas 300 para o cultivo – o restante ficou permanentemente submerso. A propriedade se tornou um sítio e caminha para se tornar uma chácara, lamenta Ruivaldo.
Ruivaldo foi o único que permaneceu, toda a família se espalhou. Seus oito vizinhos fracassaram e o deixaram sozinho. Ele sobrevive do plantio de frutas e do arrendamento de gado. Além dos carneiros, vivem em sua terra muitas araras azuis.
Para proteger sua pouca terra, Ruivaldo começou a construir um sistema de diques, fechando as bocas com sacos cheios de material. Então, eu vou fazer de minha fazenda um oásis. Vão vir navegando num mar de água e vão encontrar esse mato. Vai ser uma bolinha, mas essa floresta aqui vai ficar viva, conta ele (adaptei levemente o texto).
Dele dizem que seu pequeno gesto, salvando a terra, aponta um caminho e que a sua é uma história transformadora, de pertencimento, determinada a salvar o Pantanal. Pois Ruivaldo, mesmo isolado, sobreviveu à ruína com amor, coragem e trabalho. Seus três filhos talvez continuem a sua obra e sua chácara talvez volte a ser fazenda.