Confira como foi o Simulado de Buscas em Áreas Remotas GOST / CPM

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Concluído o Curso de Busca em Areas Remotas (CBAR) do CPM, fomos convidados para compor a equipe de buscas no simulado conjunto CPM/GOST, e assim que foi divulgada a data, reservei na agenda. Com a proximidade do simulado, arranjei duas mochilas. Uma “de ataque”, com 16 litros e todo o necessário para um pernoite em montanha, com preparo de refeições quentes, primeiros socorros “completos”, reforço do material de navegação e marcação de trilhas. A segunda mochila, para uso na base com barraca maior, isolante térmico, saco de dormir, alimentação, computadores e roupas. Dessa forma, poderia, a qualquer momento por demanda da Coordenação, alternar da equipe do Posto de Comando (PC) para compor/reforçar as Equipes de Campo e Rastreio (ECRs).

Parti de Santos com destino a Fazenda Rio das Pedras, chegando na madrugada de sábado. Escolhi um bom local, montei acampamento e fui dormir, aproveitando o cansaço da viagem.

Ainda antes do sábado amanhecer, vesti as roupas de trilha, revisei minha mochila acrescendo duas capas de chuva descartáveis, para caso precisasse ir a campo. Com a intensa (e breve) tempestade que caíra em Curitiba na véspera e a previsão de pancadas de chuvas ao longo do dia era algo bastante crível. Deixei o guarda-chuva à mão, li um pouco evitando perturbar quem ainda não despertara e, com a alvorada despontando menos lúgubre que o previsto, tratei de ajudar na organização do nosso PC.

Já escolados de eventos anteriores, em pouco tempo dispúnhamos de internet via link, pontos de energia, mesas e cadeiras para os trabalhos de base. Foi instalado uma antena de rádio complementar que permitiria a comunicação efetiva entre o PC e as equipes de rastreio, sem demandarmos o uso da repetidora do Caratuva.

A coordenação geral ficou naturalmente com o Paulo Máfia, nosso decano. Há um dito popular “o diabo é sábio, não por ser o diabo, mas por ser velho”. A longevidade, bem vivida permite amealhar valiosas experiências. Contávamos com ela para balizar nossos esforços salvando os perdidos do inglório destino, bem como aos familiares e amigos de tão dura notícia.

A liderança dessa ocorrência contou com a LUISA respondendo pelas ECR (buscas, rastreio, coelhos e bases avançadas), a NOEMI pelos entrevistadores de base e o ROBERTO pela geolocalização das ECRs. O CHRISPIM abraçou a rádio-comunicação, escudado pelo Gustavo. Nossos registros ficaram a cargo do DANIEL, na posição de escriba da vez.

No intuito de propiciar uma experiencia assemelhada à rotina operacional de ações de elevada criticidade, o Grupo de Operações e Socorro Tático (GOST), tropa de referência do Corpo de Bombeiros do Paraná em buscas em ambientes de florestas e montanhas, planejou um cenário com vítima(s) em situação de risco de morte, onde o tempo-resposta seria crucial para o melhor termo da ocorrência. Teríamos 26 horas corridas entre o acionamento e a fatalidade, por decurso de prazo. O cenário desenhado (e que montaríamos ao longo do dia) apresentava dois montanhistas, na faixa dos 40-50 anos, bem condicionados e que, partindo de São Paulo, adentraram o Parque Estadual Pico Paraná (PEPP) na quarta, 18/9. Fizeram os devidos registros no Instituto Água e Terra (IAT), às 7h, anotando interesse nas montanhas Taipabuçu e Ferraria, com pretensão de um pernoite. Por descuido, incerteza no caminho que seguiriam ou omissão intencional, deixaram de registrar a montanha seguinte na travessia a que se propuseram: o Ferreiro. Uma falha na coleta dos dados trouxe a informação de que pretendiam acender ao Pico Paraná e acampar no Itapiroca. Maurício, nosso informante, vivido pelo Capitão Maurício Dubas, se preocupara ao não ter notícias do retorno de ambos, na pousada LOST, na data prevista, quinta-feira, 19/9. Após aguardar mais um dia, ao comunicar a ocorrência, na manhã de sábado, reportou que ambos pretendiam fazer a travessia Alpha-Ômega (AO) a partir do dia 30/9. Não sabia informar qual das travessias possíveis do PEPP era a pretensão da dupla para esse treino. Também nos informou que seus celulares haviam ficado na pousada, em um saco estanque e que se encontravam desligados. Para efeito do simulado, uma área de buscas “ampla” foi fornecida, de aproximadamente 44 quilômetros quadrados, abarcando os cumes do Pico Paraná, Caratuva, Getúlio, Camelos, Tupipiá, União, Ibitirati, Saci, Sacizinho, Amaryllis, Cerro Verde, Taquaripoca, Itapiroca, Tucum, Camapuã, Taipabuçu, Ferraria, Ferreiro e Guaricana. Bater toda aquela área era tarefa hercúlea, mas dispúnhamos de equipe à altura. Nada menos que 24 montanhistas atenderam ao convite do CPM. Alguns, frente a incerteza do clima decidiram ir “de última hora”: já antevendo que as más condições de tempo tornariam as buscas mais morosas, se mobilizaram para reforçar o grupo. Se ao meu leitor a nobreza da atitude alegra, lhe garanto que testemunhá-lo, sob o céu plúmbeo e ameaçador que digladiava com sol tímido do amanhecer de sábado, foi de enternecer o coração mais empedernido. Bonito mesmo.

Equipes de campo divididas para permitir celeridade aos pontos cruciais, denominados Coelhos: Lili e Marcelo (Alfa); Luísa e Fernando (Echo); Turco e Roberto (Delta). Menos céleres, cobrindo a necessidade de eventual pernoite na serra, em pontos afastados ou com vegetação mais cerrada: Cláudio e Sintia *(Charlie); Anderson e Júlio (Bravo); Felipe e Eliseu *(Fox); Dico e Juliana *(Hotel), e Rodrigo e Dirlei *(Golf). O asterisco antes do nome da equipe (entre parênteses), denota equipes com operadores de rádio. A equipe Fox montaria acampamento no Itapiroca, após acumeá-lo passando pelo pico Amaryllis, com vegetação mais cerrada. A equipe Hotel pernoitaria no Ferraria, após subir Caratuva e Taipabuçu.

Compus a equipe do PC, para apoio com mapeamento da posição das equipes, de indícios e informações que surgissem. Identificou-se a conveniência de atacarmos a travessia das fazendas, por ambos os sentidos. A equipe Echo faria o ataque até o Cerro Verde, cobrindo também o Taquaripoca. A equipe Delta entraria na Serra do Ibitiraquire pela fazenda da Bolinha, subindo Camacuã, Tucum, Cerro Verde, Itapiroca, Getúlio na passagem. A informação falha do registro de entrada da dupla paulista, somado à circunstância de ser a travessia com maior quantidade de registros no Wikiloc fazia crer que esse trecho era de interesse primário. Caso estivessem nessa travessia, desde quarta-feira, estariam possivelmente já nos quilômetros finais dela, possivelmente bastante debilitados, o que ensejou o envio de equipes por ambos os sentidos. Fiz o transporte da dupla Echo, aproveitando para estressar a possibilidade de que os buscados tivessem passado pelo controle de entrada nessa fazenda, bem como identificar as demais pessoas que acessaram a montanha nos últimos dias. Essa providência permitiria que a equipe de entrevistadoras, a depender do progresso de obtenção de informações e evolução da ocorrência, contatasse os montanhistas que estiveram na montanha de forma coetânea aos desaparecidos.

Comandante do GOST, Major Gabriel, com a equipe do PC: Paulo Máfia, coordenador geral das equipes CPM; Capitão Maurício Dubas, comandando a supervisão do simulado pelo GOST; Marcelo Crispin, na coordenação da radiocomunicação; Roberto, respondendo pela geolocalização das equipes de campo; Gustavo Souza, operador de rádio e redundância nas comunicações; Suelen e Noemi, diligente equipe de entrevistadoras.

Retornei ao PC e, após me inteirar parcialmente dos progressos, fui designado para verificar atualizações no controle do IAT em dupla com o Gustavo Souza, nosso segundo operador de rádio. Identificamos uma falha na leitura da ficha de ingresso de nossos buscados. Os campos a serem marcados ficam à esquerda do nome do atrativo, porém como nas colunas centrais há campos em ambos os lados do atrativo é fácil marcar errado, ou ler errado. As marcações estavam corretas, ainda que incompletas: pretendiam subir Taipabuçu e Ferraria, sem registrar que seguiriam (ou não) para o Ferreiro na sequência. Erroneamente, leu-se que fariam o acesso ao Pico Paraná e acampariam no Itapiroca.

Também percebemos registros das pretensões de outras duas duplas pelo Guaricana, cujo horários de início sinalizava que teriam passado por lá antes das nossas equipes de rastreio, que reportaram não ter observado a presença de indícios de passagem recentes nos metros iniciais da trilha. Agora, sabendo da passagem de 4 montanhistas, a possibilidade de termos mais 2, com os rastros confusos se tornava mais considerável. Reportamos as informações coletadas à coordenação do PC, e fizemos uma parada para pastel na Rio das Pedras. A Noemi Pereira e a Suelen Vilimavicius, nossas entrevistadoras, nos encontrou ali e, juntos verificamos se havia registros de hospedagem dos buscados na Rio das Pedras, considerando que a pousada LOST poderia ser a própria Rio das Pedras.

Preenchimento incorreto, os cumes percorridos, de fato foram: Morro do Getúlio, Itapiroca, Cerro Verde, Tucum, Camapuã, Camacuã. Travessia clássica de treino, entre as fazendas Pico Paraná e da Bolinha.

Exemplo de preenchimento correto, as marcações dos cumes pretendidos estão à esquerda do nome do pico. Como o acesso pela Picada do Cristóvão / Caminho do Conceição e o próprio Guaricana não aparecem como opção, foram grafados em letra cursiva, legível.

Preenchimento correto, porém, incompleto (intencionalmente). Omitiu-se a pretensão de cumear o Ferreiro, de forma que havia pelo menos tuas travessias possíveis. A leitura incorreta da ficha fez supor que a passagem pretendida era pelo Pico Paraná e Itapiroca.

 

Retornamos ao PC e o Máfia, de posse dos reportes das diversas equipes de que até aquele momento não havia registros dos buscados em nenhum dos livros de cume, como também não se encontrara outros rastros significativos, ponderou as novas informações levantadas e decidiu reduzir a equipe do PC e formar uma nova equipe de rastreio, a Índia, composta por esse que vos escreve e pelo Daniel, nosso relator/escriba. Pedi alguns minutos para vestir a lente de contato e trocar as botas por tênis. Baixei um tracklog para referência, informei meu código de rastreio em tempo “semi-real” pelo MapShare da Garmin às 14h23 para o grupo de WhatsApp do simulado. Recebi as orientações finais enquanto o Daniel rapidamente preparava uma mochila de ataque para a nova função. O pessoal da base me orientou a subir costeando a Cabana Mexicana, em linha reta de forma a ganhar preciosos minutos até interceptar meu tracklog de referência. Apanhei um bocado nesse trecho, na primeira vez que subi o Guaricana, fazendo a travessia Full da Serra do Ibitiraquire em 2023, nos preparativos para a AC, em dupla com o Douglas, dos Malucos da Amantikir (MDA).

Às 14h30, com cerca de 3h30 de luz do dia, a equipe Índia se colocou em movimento, apertando o passo na medida em que os pulmões permitiam para reservar o máximo de tempo possível para o rastreio na subida do Guaricana. Dessa vez, com as valiosas informações em poucos minutos alcançávamos o primeiro portão de ferro, na Picada do Cristóvão. Confesso ter relaxado um bocado ali, pois a segunda vez que eu subi o Guaricana, já na AC, segui o pessoal que conhecia bem ali, e por descuido não prestei a atenção devida. Culpe a noite enregelante, culpe o cérebro adrenado (e amedrontado) com a enormidade do que se pretendia, se quiser. Fato mesmo, foi não prestei a atenção que costumo nesse trecho e agora, caminhara os primeiros metros transbordando uma confiança que, no íntimo, me faltava.

Nossa missão era alcançar a caixa de cume e fazer as buscas possíveis no trajeto, de forma a levantar maiores informações para a sequência das operações de busca, possivelmente “saturando” a região na madrugada e manhã de domingo com o reforço das demais equipes. Por precaução portávamos o necessário para um pernoite na mata e para auxiliar os buscados, caso os encontrássemos. No caminho, quando o fôlego permitia, discutimos os avanços do dia, tentando montar o quebra-cabeças da ocorrência com base nas informações compiladas até o momento.

No caminho, tentava identificar desvios da trilha principal que pudessem ter levado nossos desaparecidos ao erro, uma vez que, ao esquecerem os celulares com os tracklog que usariam para a trilha, passavam a depender de uma navegação que tem sido esquecida, com a facilidade dos aparelhos eletrônicos. Caminhar horas, por vezes dias, com base em estudos prévios de relatos e mapas, confiando na interpretação dos rastros das passagens de montanhistas precursores é algo que demanda muita expertise, foco e perseverança para corrigir eventuais desvios ou erros da forma mais segura, mas que por vezes não se apresenta como a menos custosa: voltar sobre os próprios passos, montanha acima (ou abaixo) por dezenas ou centenas de metros. Nossos buscados tinham cancha para fazê-lo? A idade da dupla, a cautela demonstrada em testar os equipamentos em campo previamente e a pretensão de fazer a AO permitiam supor que sim, mas a lei de Murphy está aí para deixar cristalino que nada, nunca, é garantido.

Minha suposição era negativa: sem dispor da navegação pretendida (os aparelhos ficaram na pousada, lembrem-se), a memória teria traído a dupla que, contando bifurcações para se orientar, tomara a direção errada algumas vezes e acabara por acampar em algum descaminho, já esgotados. O tempo dos últimos dias estivera chuvoso, e uma tempestade tropical na véspera trouxera forte muita chuva e grande incidência de raios. Talvez uma árvore houvesse caído, tornando o desviar da trilha inevitável e no tentar retornar ao caminho batido, tivessem se afastado mais e mais dele, até que tomassem a decisão prudente de acampar e aguardar socorro. Talvez um acidente com um deles tivesse impedido o prosseguir da dupla. Um possível desentendimento entre eles, poderia tê-los separado. Enfim, eram muitas as divagações que me vinham à mente. O singular era que a situação em si, desenhada pelo comando do GOST, era menos confusa: fizeram a travessia pretendida sem intercorrências, navegando com os rastros e com a memória. Pouco antes de alcançar o Caminho do Conceição, perderam a bandana laranja. Ao encontrarem a bifurcado para o Guaricana, sinalizada com placas e com fitas amarelas em boa parte, decidiram acrescer mais um cume e no processo, se perderam. À dupla de sargentos Ricardo Siqueira Pereira e Atila Rocha Leite da Silva, minhas sinceras desculpas por subestimá-los e meu imenso agradecer do altruísmo que denotaram ao nos proporcionar perdidos desse escol.

Percorremos cerca de 4 km de aproximação, com ganho de 290 metros de altimetria em 1 hora e, às 15h26 entramos na trilha de acesso ao Guaricana, procurando rastros de passagens: pegadas, galhos e folhas quebradas, deslizadas nas lamas do caminho, cascas de frutas ou mesmo lixo que estivesse visível. Dedicamos alguns minutos mais concentrados nos metros iniciais da trilha, pois quem pretende fazer o cume de ataque tem por hábito esconder o equipamento desnecessário no começo da trilha, para poupar o desgaste físico, subindo mais leve. Não era algo que esperávamos dos nossos buscados, pois estariam testando equipamentos e treinando para uma travessia exigente. De qualquer modo, nos detivemos por uns bons minutos verificando os primeiros metros. Havia mato amassado, mas nenhum equipamento muquiado que pudéssemos notar. O mato amassado é algo muito complexo, que demandaria uma competência que estávamos longe de possuir. Para mim, mato amassado de 1 dia ou de 3 tem praticamente a mesma “cara”.

Alternamos trechos de passo mais apertado, com paradas para analisar rastros e documentar alguns deles, por estarem mais nítidos ou em desvios da trilha principal, verificamos os metros iniciais de saídas da trilha principal, procurando não causar novos rastros nessa tarefa. A intenção era mapear as possibilidades para um estudo mais acurado, após contarmos com as informações do livro de cume. A subida do Guaricana é exigente e havíamos optado por subirmos com 3 litros d’agua no total, de forma que pudéssemos acampar longe do ponto d’agua, caso fosse necessário. Desde a partida do PC de comando, já havíamos consumido cerca de 1 litro cada, procurando manter a hidratação. A tarde se apresentava quente e úmida, condição em que o corpo para refrigerar os órgãos precisa transpirar com maior intensidade, com o enfoco físico intenso forma condição ideal para a desidratação e, se não cuidada, uma intermação. Zelando para não nos tornarmos vítimas, fizemos paradas para recuperar o fôlego, onde por vezes uma pequena busca de evidências à direita e à esquerda da trilha servia mais para distrair a mente e esfriar os motores que realmente descartar um ponto oportuno de “fuga” da trilha. Próximo do falso cume, onde a trilha apresenta uma boa arrefecida na inclinação, ouvimos vozes e, após chamarmos os buscados sem resposta, interpelamos os colegas de montanha, ainda à distância, se tinham percebido algo anômalo na trilha ou conversas, gritos, apitos. Ante as negativas, logo fomos alcançados pela dupla Natan e Luíza que retornavam do cume. Explicamos do simulado, do intuito e das verificações já efetuadas no Ibitiraquire até o momento. Eles reiteraram não ter visto ou ouvido algo anômalo, mas que, no livro de cume, havia uma referência ao simulado, mas não lembravam bem o que constava. Agradecemos e reportamos as novas alvíssaras para o PC, informando que prosseguiríamos ao cume, buscando rastros que apontassem alguma deriva da trilha que seguíamos. Ao longo da subida, em atendimento às solicitações da base, por diversas vezes tentamos contato via rádio com a equipe Golf que descera o Caminho do Conceição para verificar a margem nordeste da nossa área de buscas. O domingo talvez exigisse buscas na face leste do Ferraria, pelas avaliações até o começo da tarde, quando as novas informações levantadas nos registros do IAT apontaram, em composição com o reporte das demais equipes na serra, a prioridade para a área do Guaricana.

Por descuido, deixamos de registrar imagem dos calcados dos dois, bem como de questioná-los sobre algum descaminho ou erro na subida, pequenos galhos e folhas no meio da trilha eventualmente quebrados, cascas de frutas. É muito mais fácil identificar a falha no coleguinha que proceder com a disciplina adequada o tempo todo. Oportunidades de melhoria, eu as amo. Nos despedimos da dupla e tocamos até a crista, onde a vista desimpedida para a imponente face leste do Ferraria e o vales abaixo talhados pelos tributários dos rios Cachoeira e Cotia, fazia supor que conseguíssemos fazer a ponte entre a equipe Golf e o PC. As tentativas foram respondidas apenas pelo silêncio e pelos ruídos de outras comunicações, frustrando nossos intentos. Cada momento, seu tormento. Ansiosos para alcançar o cume, lançamo-nos céleres pela crista até que uma janela na mata entre o falso cume em que estávamos e o cume verdadeiro nos permitiu uma vista breve da imponente subida que ainda nos aguardava. Respiramos fundo e tocamos pirambeira abaixo, em busca do colo, sempre atentos à eventuais rastros de saídas para os lados. Na subida final, dois pontos me chamaram atenção e considerei que mereciam verificar a presença de algum rastro: um grande encaixado de enormes lajes à esquerda onde seria possível um bom bivaque, abrigado do vento, parcialmente da chuva e certamente mais psicológico que real do perigo com raios (para esses, a opção mais próxima era o colo em que passamos pouco antes) e na sequência, já quase no cume, um rastro de trilha em nível que contornava o cume pela direita, talvez remanescente de algum acesso ou mirante em tempos idos. Em ambos fiz uma breve verificação antes de retomar a trilha principal e alcançar, às 17h, o Daniel que cumeara o Guaricana e já identificara, com fotos, as cascas de laranja ali presentes. Notei que era casca de meia laranja, sinal de que nossos “buscados” haviam deixado elas ali, apenas como parte do exercício e não como descuido real de um montanhista pouco zeloso com a preservação das montanhas. Depois de documentada, recolhi as cascas no bolso da calça para descarte no PC.

Faríamos uma parada mais longa ali, de forma que retiramos as cargueiras e dividimos as tarefas, com o Daniel reportando, pausadamente, para o PC o registrado e eu fazendo uma busca pela área do cume, procurando identificar algum indício do caminho tomado pela dupla, após o registro. Na região do livro, há uma área pequena que, aceitaria uma barraca para duas pessoas, meio que apertado. Talvez em algum platô próximo houvesse área mais abrigada de vento e chuva. Tinha o desvio à direita, em nível que corroborava com essa tese. Caçando alguma passagem nesse sentido, pois sabia haver uma trilha, ou pelo menos o esboço disso ligando com a região dos Capivaris, fui testando a vegetação até notar alguns ramos “crescendo” em angulo estranho… eram galhos, colocados para impedir, dificultar ou disfarçar uma passagem. Com cuidado, pois já encontrei pequenas jararacas dormitando (ou caçando pássaros, talvez) em ramos mais altos, afastei os galhos e trilhei o rastro livre por uma dezena de metros até encontrar um platôzinho descampado, e nele, uma inesperada barraca laranja. Engraçado como, mesmo estando a buscá-los, supus que fosse apenas coincidência. Chamei pelos nomes, e entreabri a porta da barraca para confirmar. Encontramos a ambos, em boas condições de saúde, responsivos e colaborativos. Pedi ao Daniel que reportasse ao PC as boas novas: às 17h04, em menos de 9 horas de extensas buscas, as vítimas haviam sido encontradas. Restava o retorno das equipes e a equipe Índia acompanharia as vitimas em todo o trajeto, permitindo que andassem em ritmo seguro e atenta à eventual necessidade de apoio adicional.

Cumprimentamos os companheiros de montanha pelo suadouro que nos propiciaram e enquanto desmontavam acampamento e arranjavam as cargueiras para descida, fiz o registro no livro de cume, com o horário de chegada ao cume, o feliz encontro, o agradecimento ao GOST e ao CPM pela preciosa vivência proporcionada. O horário de partida e o destino, concluíam as informações mínimas para o momento. Registrei também a falta do meu irmão, que trilhava montanhas e serras lá nos anos 80, quando equipamentos e informações de que dispomos hoje eram algo impensável. Trilhei muito, na casa dos meus pais, escutando as aventuras em que empenhavam aos finais de semana. Muito da minha inclinação pelo trilhar tem gênese nessas histórias. Meu pai incentivava à aventura, mas eu sempre fui mais medroso e tendia a ficar na cidade mesmo.

Refleti sobre o que ouvia ele avisar meus pais: “se precisarem nos buscar, acionem o Comando de Operações Especiais (COE), pois onde a gente se mete, os bombeiros não têm treinamento ou equipamento para as buscas”. Eram anos 80, muita coisa mudou, evoluiu. Mesmo assim, fico com a impressão de que o Paraná permanece à frente de São Paulo nessa área, com o GOST. Também desconheço ações sólidas como as promovidas pelo CPM, nos cursos de Busca em Áreas Remotas, de formação de montanhistas etc., em terras paulistas. O Clube Alpino Brasileiro (CAB) visa suprir essa lacuna e tem trabalhado intensamente nesse sentido, mas ainda há um imenso descompasso entre a cultura de montanha em SP. Faço votos que consigamos reverter esse quadro.

O trabalho em equipe que o CPM, na figura do Máfia, coordenava era algo grandioso. A enormidade da área coberta pelos coelhos, e pelas equipes de rastreio é até difícil de mensurar. Os quilômetros quadrados, ou mesmo a extensão somada das trilhas percorridas oculta o quanto o quilômetro de trilha em ambientes de montanha excede um quilômetro em áreas urbanas, planas e de avanço desimpedido. Apenas o trabalho colaborativo, abnegado e exaustivo de tantos propiciou o excepcional resultado. Ali, em silêncio e de forma talvez, tola, agradeci mentalmente à cada um que estava participando e propiciando de todas as formas possíveis aquela experiência.

Nossos encontrados, os sargentos do GOST Ricardo e Atila, estavam prontos para a descida e era hora de prestar atenção ao passo adiante, no colocar preciso do pé nas infinitas raízes e pedras da descida. Devaneios e reflexões eram inimigos agora e procurei focar na descida. O ritmo de descida intenso nos fez suar montanha abaixo, e aproveitei o fácil acesso da garrafa na peitoral para aliviar o peso da minha cargueira a cada intervalo na marcha de retorno. Descemos até o ponto d’agua conversando sobre os encontros e desencontros que tivemos. Soubemos que haviam sido notados, ainda antes do início do simulado, e que cogitaram alternar o ponto de acampamento, em função desse entrevero. Reportaram a situação ao comando GOST que os informou que todos os participantes do simulado permaneciam no aguardo para iniciar a atividade apenas após o acionamento. A convicção que a dupla que os encontrou empregou na negativa de tê-los visto, talvez tenha sido um grande aliado no complicar do caso. Não sei se essa dupla, que subira o Guaricana, informou isso nas entrevistas. Mas, se o fez, ao declarar que não vira nada anômalo nem ninguém na subida e descida, pode ter trazido uma informação incorreta e que, tomada por certa, funcionou como medida diversionista. Algo ao qual as buscas reais estão sujeitas, não por se tentar prejudicar alguém perdido, mas por não perceber mesmo a presença de alguém próximo. O ambiente de montanha, a vegetação mais intricada, espinescente, o ruído do vento, facilmente tornam invisíveis pessoas a dois, três metros da trilha principal.

Na passagem pelo ponto d’agua, comentamos a facilidade de sair da trilha nesse trecho, no que usualmente chamamos de “errada”, que percebida de forma célere pode ser facilmente corrigida. Esse acesso para a água é curto, não chega a uma dezena de metros. Por vezes ocorre outras, mais longas e, quando a pessoa já se encontra abalada, as decisões que toma podem fazer sentido para ela, apenas. As ações de busca são de grande complexidade pois demandam o emprego coetâneo de pensamentos conflitantes: os lógicos/estratégicos e os de lógica particular. Desse segundo tipo, temos “subi a montanha, agora, o caminho é sempre pra baixo”, “vou seguir a água”, se eu consigo vê-los ou ouvi-los, certamente eles também podem me ver/ouvir”. Já soube de quem rezasse e entregasse à Deus.

Chegamos no Caminho do Conceição às18h40 com um descenso seguro, por 2.6 km com perda de altimetria de 487 metros em 1h07. Considerando que fizemos grande parte da descida já sob a luz das lanternas, foi uma excelente média de descida, ainda mais de cargueiras. Respiramos uns minutos, nos hidratamos e retomamos a caminhada, em passo constante até às 19h21, onde a cota 917 marcou nosso ponto de menor altitude. Seguimos recuperando altitude pela Picada do Cristóvão, chegando ao PC às 20h, após 5h30 de extenuante atividade.

As alvíssaras e congratulações ao alcançarmos o PC foram um bálsamo para as pernas cansadas. Com o sucesso da operação do simulado, nossos bravos bombeiros participaram apenas do encerramento do exercício, antes de retornar às guarnições, permanecendo de prontidão para qualquer ocorrência que surgisse. O trabalho desses bravos guerreiros não cessa, nunca.

Soldados Depetris e Sandri, na base, de prontidão para eventual necessidade, observam os mapas elaborados como material de apoio e estudo.

Equipe Hotel:  Frederico e Juliana, nos preparativos para o pernoite no cume do Ferraria. Subiram pesados, com material para suporte médico remoto às vítimas ou equipes, em caso de necessidade.

Pouco depois, com todas as equipes que retornariam para a base reunidas, o Máfia comandou o encerramento do simulado, franqueando a palavra para que todos pudessem expressar suas impressões, fosse de experiências e ou percepções de pontos fortes, a melhorar, agradecer. Minha fala se resumiu a três agradecimentos: aos amigos do CPM, que se desdobraram em todos os trâmites e ajustes necessários para viabilizar o simulado e que se somaram em uma comunidade forte, coesa e determinada nas buscas, lutando por horas contra a vegetação agreste, verificando os muitos desvios e perdidos que essa serra apresenta. Entrevistaram praticamente todos e palmilharam muitas dezenas de quilômetros pelas trilhas; ao GOST que, representando os bombeiros do Estado do Paraná, prepararam um quadro complexo, dosando distancias e dificuldades pelas informações incompletas e grande grau de incerteza no que as vítimas estavam buscando fazer, sua qualificação e conhecimentos… em suma, o dia a dia das operações em que são chamados como “bala de prata” e apoio das guarnições de ações menos especializadas; e por fim, ao Daniel Oikawa, que de escriba no PC se converteu em companheiro para uma missão complexa, pelo horário de partida e objetivos. Ao compor a equipe Índia, subindo montanha desconhecida em companhia de um desconhecido, para procurar perdidos desconhecidos, se fez epítome do espírito do montanhismo de ajudar ao próximo, sempre.

A grande trupe desse evento, da esquerda para a direita: Sargento Atila, Felipe, Marcelo Crispim, Sintia, Daniel, Liliane, Cláudio, Gustavo, Roberto, Fábio, Noemi, Paulo Máfia, Luísa, Fernando, Capitão Maurício Dubas, Sargento Ricardo, Rodrigo, Marcelo, Suelen, Dirlei, Júlio, Anderson, Elizeu Batatinha, Leandro Turco, e Rogério Alexandre.

 

 

Ausências sentidas, mas totalmente compreensíveis pelas demandas à que atendiam no momento: acampados no cume do Ferraria, a equipe Hotel, Frederico e Juliana; e, concluindo os preparativos de partida para retorno, os companheiros do GOST, soldado Depetris e soldado Sandri.

Na maior e mais densa operação de busca que a Serra do Ibitiraquire já presenciou, transcorreram 12 horas de intensa atividade, entre o Pedido de Ajuda e a chegada das vítimas na Base de Operações, em segurança. Foram apenas 9 horas de levantamento de dados, entrevistas, análises, planejamento e incursões de buscas até o encontro dos buscados. Ao todo, foram palmilhados mais de 157 km de trilhas com elevação acumulada de 11.400 m, com o retorno da última equipe à Base de Operações 27 horas após o Pedido de Ajuda. Tais números só se fizeram possíveis pelo trabalho em equipe, com 18 voluntários em campo, nas atividades de buscas e rastreio de indícios, escudados por 6 voluntários nas atividades de base. A formação de novos voluntários, trabalho incessante do CPM é fulcro desse avanço e a parceria com o GOST agrega importante valor ao montanhismo Paranaense, e, por que não dizer, Brasileiro.

Alpha Bravo Charlie Delta Echo Fox Golf Hotel Índia
20,35km 19,8km 14,04km 17km 16,3km 11km 25km 17,7km 16km
1418m 1867m 1086m 1530m 1374m 850m 757m 1841m 970m

Iniciei o retorno para São Paulo próximo ao meio-dia, após aguardar a chegada da equipe Hotel, Frederico e Juliana, que haviam pernoitado no cume do Ferraria, aptos a prestar apoio médico caso se fizesse necessário para as vítimas ou para as equipes de campo. Fiz a volta tranquilo, pela Regis Bittencourt, ainda processando as emoções da atividade, com uma parada estratégica no restaurante Dionisio 88 de Registro, onde ataquei uma portentosa chuleta com fritas, antes de seguir viagem pra Santos/SP, pela SP-55 que liga Juquiá à Peruíbe e, após mais alguns quilômetros, dá acesso à Ilha de São Vicente que abriga a parte insular de ambas as cidades. Às 19h reportei no grupo a chegada em casa e parti para um ansiado banho quente antes de desmontar mochilas. A sensação de contribuir para a segurança nas montanhas me embalou o sono.

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