O Sonho – Curt Nimuendajú entre a Memória e a Agonia do Índio Brasileiro

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Você já viveu em sua vida um sonho de infância? Pergunto por que não posso contar, nunca tive um. Vivê-lo eu suponho seja, tudo junto, reviver a infância e realizar a missão da vida. Houve uma pessoa que sonhou quando criança sobre índios e mapas – e cuja vida foi um sonho realizado.

Kurt Unckel (1883-1945) nasceu na Alemanha, ficou órfão cedo, trabalhou como mecânico ótico numa fábrica de lentes, depois emigrou com a ajuda da irmã para o Brasil aos 20 anos.

Morou em São Paulo e depois Belém, onde se casou. Viajou durante 40 anos por todo o país, realizou a maior pesquisa jamais feita sobre nossos povos nativos e morreu na floresta aos 60 anos. Esse foi o homem que viveu seu sonho.

O jovem Kurt Unckel exercitando-se em 1902 na arte de atirar. Fotografado numa floresta em Jena, na Alemanha, onde nasceu.

Vou contar como esse sonho começou. Já em 1905 ele se aproximou dos guarani nhandeva do oeste paulista. Residiu lá por dois anos e foi adotado como filho pelo cacique. Numa noite de lua foi batizado como Nimuendajú, que significa aquele que faz moradia.

Curt conta que quando o sol nasceu atrás da floresta, iluminava um novo companheiro da tribo dos guaranis que, apesar de sua pele clara, compartilhou com eles (…) a miséria de um povo agonizante.

Mais tarde durante a vida, outros índios lhe deram nome de estrela e de imperador. Porque ele sempre foi um visitante bem recebido nas tribos que conheceu.

Depois de se mudar em 1913 para Belém, Nimuendajú passou a visitar as tribos do Norte e do Centro-Oeste, seja para pesquisá-las ou comprar-lhes os artefatos. Durante sua vida ativa, ele visitou 1.400 tribos de mais de 40 etnias (segundo minha contagem), e percorreu mais de 500 rios, que identificou.

Nimuendajú por volta de 1935 entre indios canela, da nação timbira do Maranhão.

Ele trabalhou para o SPI, o Museu Nacional do Rio, o Museu Paulista e o Emílio Goeldi do Pará, se bem que de forma descontínua. Mas viveu a rigor da venda dos artefatos para museus da Suécia, Alemanha, Brasil e Estados Unidos.

A sua trajetória é impressionante: visita pelo SPI as tribos do litoral paulista e depois as do Paraná e Mato Grosso; conhece os povos do Gurupi no atual Tocantins; percorre várias vezes o Xingu, o Tapajós, o Tocantins e o Trombetas; pacifica os parintintins do baixo Madeira; coleta material arqueológico nas Ilhas de Marajó e Caviana, ao norte desta; atravessa o Oiapoque e o Amapá, o Solimões e o Negro; retorna longamente ao Maranhão, e ainda viaja pelo Sudeste e o Nordeste.

Mas acho que devo acrescentar três comentários. O primeiro é sobre a maneira como Nimuendajú trabalhava, em longas residências junto aos índios. João Pacheco de Oliveira diz assim: Não é um pesquisador que vem e observa as coisas da varanda para o centro da aldeia, mas alguém que cria uma relação muito densa e forte com essas populações. Curt realizou uma etnografia radical, solidária, comprometida com os índios e a defesa de seus interesses.

Marta Rosa Amoroso da USP comenta que Nimuendajú usava um método que só mais tarde foi adotado no país, que conjugava o controle da língua nativa, longa permanência com os índios e imersão no modo de vida das comunidades. Não se engane, há muito pesquisador que posa para aquelas fotos enfeitado com roupas caqui de bolsões e que nem consegue balbuciar a fala dos índios.

Numuendajú junto à sua esposa Jovelina em Belém do Pará.

Nesta época ainda havia espaços vazios tanto no mapa do território brasileiro como nas coleções dos museus etnográficos. Pesquisadores estrangeiros percorrem vorazmente o país para completar seus acervos e Nimuendajú é um precioso fornecedor, ainda mais por falar várias línguas.

Ele dialoga com conhecidos etnólogos, como Erland Nordenskiöld na Suécia (talvez seu principal cliente), o alemão Herbert Baldus (radicado no Brasil), Robert Lowie nos Estados Unidos (com quem manteve uma longa parceria), Alfred Métraux na Suíça, Paul Rivet na França, e ainda muitos outros.

O Governo estava mais uma vez mudando sua relação com os indígenas. Havia naquele momento a ideia de que, segundo o ISA – Instituto Socio Ambiental, o índio era um ser em estado transitório – seu destino seria tornar-se trabalhador rural ou proletário urbano. Observo que não haviam sido criados ainda os Territórios Indígenas e que o Parque Indígena do Xingu só viria a existir quase meio século depois.

E como Nimuendajú se posicionava em relação a isso? Esse é o meu segundo comentário. De acordo com as duas estudiosas Charlotte Emmerich e Yonne Leite, ele foi alemão por nascimento, brasileiro por opção, índio por identidade.

Este é o retrato por assim dizer oficial de Curt Nimuendajú. Há poucas fotos suas, onde sempre aparece com uma expressão séria.

Ele considerava os caboclos sertanistas como neo brasileiros, aqueles que vieram depois dos verdadeiros brasileiros, os índios – porém degenerados e incompletos culturalmente. Se porventura Nimuendajú foi racista, ele discriminou o branco colonizador que desprezava, por oposição ao indígena nativo que admirava.

Durante toda a permanência de Nimuendajú no Brasil, ele testemunhará uma Amazônia com populações indígenas em acelerado processo de desaculturação, com forte penetração de seringalistas, castanheiros e, principalmente, missionários, no dizer de João Meirelles Filho.

Os relatos de Nimuendajú são dolorosos, pois ele assiste por dezenas de anos à desintegração da cultura indígena, à expulsão de suas terras históricas, à proibição dos seus costumes tradicionais, ao contágio das doenças e ao endividamento no comércio trazidos pelos colonos, à ruína de suas aldeias e roças.

Veja o seu impressionante comentário na região do Rio Negro:  Encontrei os índios no início de uma festa em estilo antigo: humildemente os chefes (…) se desculparam por ainda assim procederem, pois esta dança seria a última, a despedida dos costumes antigos, e após a festa cumpririam imediatamente  as ordens do Governo, aniquilando os seus enfeires antigos e tratando de construir casinhas em alinhamento, em lugar da sua imponente maloca.

No fim da vida, sem mais condições físicas para suas viagens sempre solitárias, Nimuendajú debruça-se sobre o Mapa Etno-Histórico, que é considerado a súmula de seu conhecimento.

O Mapa Etno-Histórico de Nimuendajú identificou dezenas de famílias linguísticas do Brasil.

Repito aqui (com adaptações) a descrição de George Zarur: O mapa de Nimuendajú é um gigantesco banco de dados sobre a distribuição no espaço e no tempo das tribos indígenas brasileiras. Foi artesanalmente elaborado com os recursos da época, o desenho a nanquim. Reúne toda a literatura disponível para a identificação das tribos indígenas, atuais e extintas, sua classificação linguística, suas localizações atuais e históricas, e o sentido de suas migrações.

Como diz Luís de Castro Faria, dentre todos os seus trabalhos, este é o mais exclusivamente seu, o mais original, o que não tem antecedente, o que não tem par tem terá sucedâneo. Este o seu grande manuscrito, pronto e acabado. Foi um formidável e único trabalho conjunto de pesquisa e de artesanato.

Impossível não compará-lo com a Naturgemälde (ou pintura da natureza), o genial mapa de Humboldt do século anterior. Ambos foram descrições ilustradas, de forma sintética e colorida, fartamente anotadas e visualmente expressivas de um grande campo de conhecimento – o Chimborazo peruano de Humboldt e a Amazônia brasileira de Nimuendajú.

Há muitos outros estudos etnográficos de Nimuendajú publicados, alguns sendo póstumos, talvez os principais sendo sobre os guaranis de São Paulo, os kukura do Mato Grosso, os apinajé do Maranhão e os xerente do Tocantins. Quem os conheceu, comenta sobre a sua integridade, precisão, qualidade e concisão.

O estudo pioneiro de Nimuendajú sobre a cultura dos apinajé só foi publicado postumamente em 1956.

Vale também lembrar o legado do seu acervo de objetos que sobreviveram a ele,  comprado pelo Museu Nacional. Infelizmente este pequeno tesouro não resistiu à negligência e incompetência de nosso Governo, e ardeu em 2018 junto com o incêndio horroroso que devorou todo o Museu.

Mas afinal o que é essa prática de etnografia na qual aprendemos de Darcy Ribeiro que Nimuendajú é o pai fundador da etnologia brasileira, com obra mais alentada e relevante que a de todos nós que o sucedemos? Herbert Baldus, um importante etnólogo com longa atuação no Brasil, avaliou-o como talvez o maior indianista de todos os tempos, e veja que teve a concorrência do Marechal Rondon.

Não é simples a tarefa de um etnógrafo, pois cabe a ele descrever todo um povo. No caso de nossos indígenas, ele deve identificar as diferentes nações de que se compõe um mesmo povo, sua língua, localização, população e, se for o caso, seus territórios indígenas legalizados.

São importantes os históricos de contatos, de guerras e de migrações, há povos que se deslocaram por milhares de km. Algumas vezes, estas migrações causaram ou resultaram de cisões internas, gerando manifestações diferentes de um mesmo povo, por exemplo, passando da caça e pesca à agricultura.

Mas acredito que os conteúdos mais interessantes sejam os culturais: a organização social e política, a estrutura familiar, os mitos de criação, as práticas de nominação dos indivíduos, os rituais e as artes.

Peças de antropologia do Museu Nacional, consumidas pelo fogo que destruiu o prédio. ‘É como se fôssemos extintos novamente’, disse o índio Daniel Tutushamum.

Você se surpreenderá como a organização, as lendas, a sexualidade, a religião ou o artesanato podem ser tão variados. Embora compartilhando uma cultura comum, as tribos são como arquipélagos, separadas ás vezes por línguas, territórios, hábitos e histórias diferentes.

Vou contar uma história de como Nimuendajú operava. Um dia, ele encontrou uma anciã, com uma frágil memória de sua língua nativa. Ele improvisou um teatro de bonecos com rolos de filmes e garrafas vazias. Levou um mês, mas ele conseguiu resgatar a língua, a lenda e o parentesco de Dona Jacynta. Ele foi um homem capaz de recriar a história. Isto é etnografia.

Marta Rosa Amoroso conta que Nimuendajú considerava que a simples presença de uma pessoa interessada nas tradições indígenas era capaz de reverter a atitude geral de abandono e resgatar a memória de processos esquecidos pela tribo.

Nimuendajú registrou um dia o comentário dos apinajé:  Quando você vai embora fica tudo triste: ninguém se pinta mais, ninguém dança mais! A perda da cultura era também um reflexo da opinião depreciativa praticada pelo homem branco.

Mas agora quero fazer meu terceiro comentário, uma avaliação de Nimuendajú. No começo, ele se sentia próximo de Cândido Rondon, nosso maior indigenista, mas dele foi aos poucos se afastando.

Acho que sei a razão: Rondon nunca conseguiu se desvencilhar de um modelo utilitário, de colonização progressista de nosso sertão. Nimuendajú corretamente via nisto a aniquilação de nossos índios.

Esta foto dos indígenas parintintim do Amazonas foi enviada por Curt Nimuendajú para uma correspondente na Alemanha.

Mas você não acha estranho de que ele vivesse da venda do artesanato indígena que coletava? Como se Nimuendajú fosse um predador remunerado da cultura material da Amazônia? Acho que não foi nada assim – ele sabia que esses acervos representavam, e talvez glorificassem, essas culturas em extinção.

Por fim, você pode achar até pobre a obra descritiva de Nimuendajú. O mestre Florestan Fernandes lhe cobrou um maior esforço de interpretação, mas isso é um comentário inevitável de um intelectual diante de um explorador. Pois esse é exatamente o legado de Nimuendajú, o vivo e honesto relato de uma experiência única e radical.

Espero que você tenha notado que a cultura material dos índios, vale dizer seus belos artefatos, eram objeto de desejo de museus e instituições até antes da II Grande Guerra. Então, foram coletados e todos ficaram felizes, lindas coleções completas, as nossas e as deles.

Enquanto isso, nossos indígenas continuaram espoliados e depreciados no século seguinte até hoje. Você percebeu a contradição? Um século atrás, eram vistos como preciosidades, e agora são tratados como refugos ou rebotalhos.

Índia tikuna do Alto Solimões, Essa foi a última etnia visitada por Nimuendajú.

Onde todavia persistem povos primitivos, com culturas ainda vivas e valiosas? Talvez na África – no Congo, em Quênia ou Gana – talvez na Nova Zelândia ou Austrália,  na Malásia ou no Ártico.

Joias em extinção, vidas fugazes, pobres espantalhos, que sonham com os fantasmas de seu passado morto. Tristes sonhos que não puderam ser regatados por esses outros sonhos sonhados por Nimuendajú.

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Sobre o autor

Nasci no Rio, vivo em São Paulo, mas meu lugar é em Minas. Fui casado algumas vezes e quase nunca fiquei solteiro. Meus três filhos vieram do primeiro casamento. Estudei engenharia e depois administração, e percebi que nenhuma delas seria o meu destino. Mas esta segunda carreira trouxe boa recompensa, então não a abandonei. Até que um dia, resultado do acaso e da curiosidade, encontrei na natureza a minha vocação. E, nela, de início principalmente as montanhas. Hoje, elas são acompanhadas por um grande interesse pelos ambientes naturais. Então, acho que me transformei naquela figura antiga e genérica do naturalista.

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