Esta é a primeira coluna sobre o impacto ambiental e social da mineração em Minas Gerais. Aviso desde já que acho a mineração uma estúpida agressão à integridade do ambiente, ao usurpar o seu interior ancestral.
O Destino de uma Cidade
O minério de ferro é um sucesso no Brasil – jazidas de alto teor são extraídas a céu aberto e exportadas com lucro. E nossas províncias minerais contam com enormes reservas. Então, continuaremos a ser um dos felizes produtores por todo o futuro, criando riquezas e gerando divisas.
Afirmações erradas. Um buraco profundo de centenas de metros, decorado por patamares transitáveis por monstros metálicos parede adentro, é a mais semelhante imagem ao inferno que conheço. É até abstrato e impossível conceber toda essa massa de vida que desapareceu para que a enorme cava do minério pudesse nascer.
Mas nem pense que a agressão é simplesmente local. Foi preciso devastar a floresta para chegar até aqui. Nem escolher entre as árvores que agasalhavam ninhos. Aterrar os brejos, as lagoas e os ribeirões. Nem pensar naqueles movimentos desconexos de peixes e girinos na porta da vida. Arrasar os poucos e tímidos campos férteis. Nem enxergar pelo retrovisor os irmãos mamíferos agora pastando a sua inanição.
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Repare no desenho delicado das linhas, no seu gentil paralelismo, no atlético mergulho até o fundo, na mansa convivência com a mata e o rio logo atrás.
A mineração é um triunfo, antes de ser um sucesso. Aquela excitação visionária enquanto a planta industrial é construída. As explicações sóbrias e técnicas quando algo dá errado, mortes e perdas. O aplauso midiático quando enfim surge a onda parda, vertendo minério da entranha da terra. Então aparece o mercado, para explicar a volatilidade dos preços, que causa euforia e depressão, desemprego e desesperança.
E a finitude, o crepúsculo da mina, a sua exaustão. Ou a sua incapacidade em ser competitiva, falha dela. Talvez devido a esse lunático xerife do meio ambiente, que criou custos e dificuldades. E ainda esse fantasma disforme da obsolescência, uma pena, a mina agora não serve mais.
Mas você pensou nas pessoas? Ignorantes, disponíveis, esperançosas, baratas. Venderam sua terra, adotaram o novo emprego, mudaram sua vida – terminaram sem casa, sem emprego, sem vida. Quanta gente ganhou: os empresários, seus técnicos e funcionários, os políticos, os diplomáticos e os eclesiásticos, os fornecedores, investidores e governadores.
E você tem dúvida de que um dia tudo acaba? Enchem seu buraco agora estéril com um lago, sua superfície lisa e inocente, mas ele é tão fundo que até a morte ele destrói.
Minas Gerais é o mais mineral dos Estados brasileiros. A origem dos seus tantos minérios é orogênica, ou seja, resultante dos movimentos tectônicos da crosta terrestre. Eles criam dobras, falhas, fossas e serras, comumente acompanhadas por vulcões e terremotos – o que felizmente não foi o caso em Minas.
O tectonismo mineiro fez colidirem quatro blocos extremamente antigos, com idades de 3 a 4 bilhões de anos, durante o Proterozoico. Foi na longa duração deste período, de quase metade da existência da Terra, que os continentes se juntaram, o oxigênio se tornou abundante e surgiram as primeiras formas de vida – com capacidade de criar a fotossíntese e de legar o código genético.
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Estes são os quatro blocos arqueanos que colidiram 2 bilhões de anos atrás para formar o Quadrilátero Ferrífero.
A orogênese formou um grande bloco quartzítico que sobreviveu à erosão, tornando-se mais elevado do que a região à sua volta: o Quadrilátero Ferrífero de Minas. Compreende 7 mil km² distribuídos por cerca de 25 municípios, entre as bacias dos rios Doce e das Velhas. Foi fonte de enorme riqueza mineral – principalmente ouro e ferro, mas também manganês, estanho, bauxita e gemas preciosas.
Diz-se que o coração de ouro das Minas Gerais deve ser considerado bem maior do que o peito de ferro, pois suas ocorrências são regionalmente mais distribuídas do que o ferro. E também de maior importância histórica, pois foi a descoberta do ouro que trouxe a colonização portuguesa para o interior do país e tornou a região do Quadrilátero a mais populosa do Estado.
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Esboço geológico do Quadrilátero, com suas quatro províncias minerais. Seus limites vão N-S de Sabará a Ouro Branco e E-W de Mariana a Brumadinho.
Porém o ferro apresenta hoje maior importância econômica, pois o minério local do itabirito possui uma grande concentração de 50% em hematita, só inferior á de 60% do jaspilito de Carajás no Pará. Minerado com economia a céu aberto, abastece toda a siderurgia mundial. Este texto vai agora se debruçar sobre a mineração do ferro.
O nome local para o minério do Quadrilátero é itabirito, mundialmente chamado de formações de ferro bandadas (BIF – banded iron formations). Como é comum na geologia, o itabirito teve uma origem complexa, pois ele é ao mesmo tempo metamórfico e sedimentar.
Nesta região, depositou-se de forma estratificada em ambientes marinhos rasos há 2 bilhões de anos, sob a ação vulcano-química. Esses estratos é que são as bandas, facilmente reconhecíveis a olho nu, com camadas alternadas de oxido de ferro e, conforme o caso, sílica, quartzo ou xisto.
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Exemplo de bandas ferrosas de idade neo-arqueana. O ferro aparece na cor cinza. Note como são deformáveis.
O itabirito é uma rocha do quartzito, que compõe (às vezes associado ao calcário) a enorme Cordilheira do Espinhaço, que aliás nasce exatamente no Quadrilátero. É uma rocha única, sem a continuidade do granito, a expressão do arenito ou a deformação do calcário. Talvez eu esteja simplificando se disser que todas essas rochas têm uma origem predominante – o metamorfismo e o vulcanismo, a compactação e a erosão, a deposição e a dissolução.
Mas não o quartzito, que resulta por assim dizer da atuação de quase todos esses agentes. Pode-se dizer que carrega uma história longa e sofrida, mais a meu ver do que quaquer outra rocha do Brasil. Talvez isto se reflita no seu aspecto áspero e irregular, exposto e deformado. Embora pareça rebelde à beleza, abriga como nenhuma outra rocha a riqueza da diversidade mineral.
Queria fazer uma observação. O termo itabirito representa tanto uma rocha como um lugar, no caso a cidade e o pico de mesmo nome. Entretanto, Itabirito é distante 90 km em linha reta de Itabira, o primeiro a leste e a segunda a oeste. Curiosamente, o Pico do Itabirito (que você conhecerá num outro texto) era originalmente chamado de Itabira. Esses nomes vêm do tupi, significando simplificadamente pedra alta e pedra vermelha.
O Pico do Cauê (originalmente com 1.385 metros) apresentava um formato pontudo e um brilho azul que serviam de referência aos viajantes no período colonial. No seu sopé nasceu e cresceu a cidade de Itabira.
Seu mais notável nativo foi o poeta Carlos Drummond de Andrade, que entretanto se negava a visitá-la. De sua janela ele via o Pico do Cauê, até que a mineração o destruiu. Seu minério começou a ser extraído quase exatos 200 anos depois que os irmãos Albernaz chegaram ao local, no começo do século XVIII.
Hoje seus desgastados 1.235 metros envolvem o buraco que resultou de sua exploração e que, quando ela se exaurir, servirá para abrigar seus rejeitos.
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Esta é a história do Cauê, uma montanha que virou buraco.
Mas, antes de abandonar o Cauê, queria refletir sobre sua perda. Conta-se que, quando não tinha ainda sido consumido, sua sombra impedia que a população de Itabira amanhecesse antes das 11 da manhã.
Há um bonito litoral na Península de Joatinga no Rio de Janeiro que se chama Praia do Sono. Os altos braços serranos que a definem de cada lado limitam o trajeto do sol: ele surje tarde e desce cedo – a longa penumbra assim causada remete os caiçaras que a habitam a um longo sono.
Então, penso nessa geografia que se impõe no espaço e condiciona o sentimento dos humanos que vivem sob sua influência. Lembro o Pico do Ibituruna, a ameaçadora formação que se debruça sobre a população de Governador Valadares – parece impossível viver sem o vislumbre do seu corpo elevado.
E imagino o poderoso perfil do Itambé, a mais emblemática das montanhas mineiras, para sempre marcando o visual da vila do Serro e, mais além, de Diamantina. Mesmo Belo Horizonte não se enxergaria sem o abraço das serranias que a envolvem.
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Você consegue imaginar o discreto perfil de uma montanha ao fundo ou apenas a gigantesca escavação de suas entranhas?
Esse assunto da paisagem é grande, pois inclui não apenas o relevo, mas nossa relação com ele – histórica, artística, pessoal (você voltará a encontrar este assunto). Impossível deixar de referir o Corcovado e o Pão de Açúcar no Rio – o primeiro um penhasco interno e urbano, o outro um pontão distante e oceânico. Paro aqui, não quero que você me acompanhe numa viagem interminável.
O Pico do Cauê é o mais notável acidente geográfico no horizonte de Itabira – uma cidade de 120 mil pessoas, a meu ver uma população pequena para acomodar uma grande empresa como a Vale. Esta foi uma vila que sucumbiu, a partir da década de 1940, ao enorme poder desta mineradora, que aliás começou exatamente lá, com a nacionalização dos ativos minerários já antes existentes.
A segregação dos empregados da Vale e a hierarquização das moradias conforme o nível funcional (repetidas, por sinal, em Carajás); a ocorrência da desagregação e mesmo desencanto social das pessoas, que as levou a altas taxas de suicídio; a dependência econômica até certo ponto comodista da população; a falta de dinamismo econômico interno e de mobilidade social; a sujeição da cidade aos voláteis ciclos do minério, que trouxeram euforia e depressão; a limitação do traçado urbano para respeitar as atividades da mineração – esta é uma breve relação das consequências da ação na comunidade dessa grande empresa.
Para a qual ela também não deixou de contribuir, com os empregos gerados, a educação e o treinamento dos funcionários, a relativa distribuição da riqueza, o avanço nas condições de vida, as benfeitorias urbanas e as ações sociais. E reconheço que quase sempre o progresso é mesmo socialmente disruptivo.
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A mina que até hoje ameaça a cidade de Itabira. Os altos da Vila Paciência tiveram que ser relocados pois a mineração abalou e danificou as casas.
E Itabira nos traz uma constatação: a finitude do minério. A flotação pode aumentar o teor, a pelotização pode beneficiar os seus finos, a tecnologia pode acessar a massa mais compacta do interior – mas um dia ele acaba. O fim do aproveitamento da jazida era previsto para quase agora, mas foi adiado por dez anos mais. Itabira não foi até o momento capaz de criar uma diversificação à mineração, e talvez nunca seja.
Outra reflexão é porque Itabira não foi capaz de reagir à Vale. Tenho uma suspeita: suas lideranças eram fechadas, conservadoras e elitistas, se alienaram ao recente progresso trazido pela mineração, não souberam dialogar com a sociedade ao redor e liderar ou articular uma coesão política.
Aliás, acho que isto transparece no estilo do seu maior poeta – elegante, abstrato, distante e mental. Terminará como uma cidade fantasma, como o Pico sob o qual viveu?