A Médica e os Loucos: Nise da Silveira e a Arte do Inconsciente

0

Sempre tive curiosidade pelos loucos, embora não me ache um deles. Pelos loucos tenho carinho, admiração e talvez inveja, ao conseguirem por milagre recriar a realidade, como se ela de fato existisse de forma única e unânime.

Loucura é uma situação limítrofe: pode incluir um gênio, um visionário, um excêntrico ou um demente. Para quem observa de fora, pode ser uma viagem iluminadora. Para quem vive dentro, um inferno sem perdão.

Como diz Rosangela Zizier, um louco pode ser um alvo fácil de abusos e violações, pois carece da lucidez, da lógica e até mesmo da linguagem. Ele pode perder na alienação as habilidades inerentes à sua humanidade.

Você sabe que com frequência eles se tornam pessoas degradadas. É neste estado despossuído que os loucos costumam abdicar de sua identidade, sua saúde, sua dignidade – e, muitas vezes, de sua vida.

Dizia-se que era quase impossível percorrer o Rio de Janeiro no início do século XIX sem se deparar com alienados vagando perdidos pelas ruas. Eram muitas vezes encarcerados nas prisões de onde não saíam senão mortos. Para tentar corrigir esta situação, foi construído em Botafogo por volta de 1850 o Hospício de Alienados Pedro II, nosso primeiro manicômio. E este foi o começo do inferno.

O hospital se baseava nos trabalhos dos médicos franceses Pinel e Esquirol, que propunham isolar e controlar os doentes. Ewerton Moura da Silva explica que a alienação era vista como a manifestação das afeições, sendo as paixões da alma consideradas a causa da loucura. Desta forma, os excessos relativos ao amor deveriam ser regulados pela razão.

O Bethlem Royal é o mais antigo manicômio do mundo, iniciado em 1247. No século XVIII os presos eram colocados em jaulas como atrações a serem visitadas.

O Hospício de Salpêtrière (uma antiga fábrica de salpêtre ou salitre) era muito importante, devido á pesquisa neurológica. Outro asilo importante foi o Bicêtre, o maior de Paris, onde trabalhou o alienista Philippe Pinel. Ele curiosamente nasceu numa prisão. Para ele, os alienados eram doentes e não deviam ser violentados.

Como então não faltava louco, o Pedro II foi ampliado, chegando a 400 pacientes. Serviu de modelo para todo o país, com hospícios sendo instalados em Olinda, Belém, Salvador, Porto Alegre e São Paulo.

Ao longo do tempo, o Pedro II foi se deteriorando e estava em ruínas quando os alienados foram transferidos para Jacarepaguá. Imagine as condições deles, se o local já estava naquele estado. Suas instalações foram doadas para a UFRJ e, restauradas, abrigam hoje o Instituto de Psiquiatria da Universidade.

Juliano Moreira (1872-1933) foi um médico baiano que estudou durante anos os asilos europeus e dirigiu o Pedro II até 1930, quando foi exonerado pelo governo Vargas. Foi um homem notável, que humanizou o tratamento dos pacientes, deixando de aprisioná-los, e que instalou laboratórios e renovou o corpo clínico do hospício. Combateu a noção muito difundida de que a miscigenação racial causava a degradação e defendeu a higiene e a educação para combater as doenças mentais.

Diferentemente dos demais hospícios, o de São Paulo era gerido pelo Estado, e não pela Santa Casa. Curiosamente, um alferes comandou o asilo até seu falecimento, tendo sido substituído por seu filho, até a morte deste – foram mais de quatro décadas sob a direção de Tomé e de Frederico de Alvarenga.

A administração passou para Francisco Franco da Rocha (1864-1933), contemporâneo de Juliano Moreira. Foi outro grande modernizador do tratamento aos alienados, estabelecendo pela primeira vez o uso de técnicas psiquiátricas. Liderou a campanha para a construção de um asilo moderno – a Colônia Agrícola de Alienados do Juquery. Acreditava-se que o trabalho agrícola tivesse uma ação terapêutica.

O Juqueri é uma instalação gigantesca que já teve uma reputação de excelência, mas foi se degradando no tempo. Com o tempo, passou a acolher presos políticos, aumentou terrivelmente sua lotação e teve seus pacientes e instalações degradados. Está há mais de uma década sendo desativado.

Inaugurado no fim do século nas proximidades de São Paulo, o Juqueri experimentou um enorme crescimento, passando de menos de uma centena para mais de dez mil internos, distribuídos em dez pavilhões.

Com o tempo, o asilo se degradou, os prédios foram sendo fechados e a colônia virou um parque estadual. Desativado oficialmente em 2005, continua, entretanto, abrigando pessoas que não tinham mais vínculos com a família ou a sociedade – fora o cemitério, não tinham mais aonde ir.

Em 1984 Marilena Chauí, polêmica professora da USP, visitou a ala feminina do Juqueri. Seu artigo no jornal é impressionante. Foi um dos estímulos para escrever este capítulo. No texto abaixo, omiti os muitos sinais de interrupção, para torná-lo mais legível:

Algumas estão nuas, corpos esquálidos ou obesos, olhar vago ou assustado; outras estão cobertas por encardido camisão ornado de carimbos oficiais e ilusões de flores. Cabelos quase raspados, descalças (sem calcinhas e sem calçados), algumas imóveis na mimese da morte, outras agitadas em dor invisível e sem fundo. Cheiro nauseante sobe do solo, desce do teto, vem das paredes, da pele, das bocas. Promiscuidade, imundície, miséria, desolação. Violadas no seu ser mais profundo, já não sabem há quanto tempo ali estão, mas sabem que ali não querem ficar, ainda que saibam que dali não poderão sair. Desejam falar e serem ouvidas. Sorriem entre lágrimas. Temem a noite e maldizem o dia.

Infelizmente, o Juqueri foi mais a regra do que a exceção. Não vou cansá-lo com histórias semelhantes, apenas relatar alguns casos importantes.

O Hospital Colônia Barbacena na cidade de mesmo nome em Minas, aliás chamada de Cidade dos Loucos por existirem sete hospícios lá, é uma história horripilante. A começar pelo início: foi estabelecida na Fazenda Caveira, de Joaquim Silvério dos Reis, aquele mesmo delator da Inconfidência Mineira. Ao seu lado, foi convenientemente criado um cemitério, mesmo porque durante sua horrenda operação morreram 60 mil pessoas.

Ele recebia as chamadas pessoas não agradáveis – mendigos, prostitutas, homossexuais, opositores políticos e, atenção, andarilhos. Assim como homens tímidos e mulheres mandonas ou que não queriam se casar. Talvez apenas 30% fossem de loucos. Foi descrito como uma sucursal do inferno. Desativado em 1996, existe hoje no que sobrou do local um Museu da Loucura.

O Hospital Colônia de Barbacena, chamado de ‘Cidade dos Loucos’, operava como um campo de concentração – sua história gerou 60 mil mortos.

A Casa de Saúde Doutor Eiras em Paracambi no interior do Rio foi o maior hospício privado da rede pública de saúde da América Latina. Dele já se disse: De fora, parecia uma prisão. De dentro, também (…) Pacientes batiam uns nos outros, e quem batia, apanhava dos funcionários. Atrocidades que causaram denúncias e fechamento em 2012. Existe hoje na cidade a Associação Maluco Sonhador.

O Hospital Juliano Moreira de Salvador, triste homenagem a um grande médico, foi mais uma história de aberrações, onde gente apodrecia, no dizer de um de seus diretores. Decaído e incendiado, foi afinal substituído, mais de cem anos depois de fundado, por um prédio moderno. O acervo de seus internos foi restaurado e sua memória foi resgatada – o arquivo morto tornou-se um arquivo de vidas do passado.

O Hospital da Tamarineira fica em bairro de mesmo nome no Recife, seu nome oficial sendo Ulysses Pernambucano, o médico que o reformou. Foi fundado ainda no século XIX, quando surgiu a primeira geração de hospícios no país. Hoje ele é palco no seu jardim externo de um festival anual de rock. Os artistas são tradicionalmente saudados com muita euforia por seus internos.

Os hospícios praticavam tratamentos inacreditáveis como infecções por malária para sanar a sífilis, choques de insulina para curar a esquizofrenia, perfurações de buracos cranianos para aliviar a pressão, lobotomias cerebrais para desligar as emoções e choques elétricos para recuperar a mente. Enquanto isso, internos eram violentados, torturados e estuprados – corpos eram carbonizados e cadáveres, vendidos.

E na Itália surgiu Franco Basaglia (1924-1980). Ele liderou um movimento chamado de Psiquiatria Doméstica, com o tratamento focado na pessoa, ao invés da doença. Iniciou em 1970 uma nova prática ao dirigir o Hospital de Trieste.

A família e a comunidade passaram a substituir a internação, com a criação de centros de apoio e de cooperativas de trabalho. Em 1977 o manicômio de Trieste foi surpreendentemente fechado.

Franco Basaglia promoveu a reforma do sistema manicomial italiano. Seu trabalho teve enorme influência na Europa.

Basaglia mobilizou uma impressionante rede de apoio, com a participação de médicos, estudantes, políticos, artistas, mídia e opinião pública. As intervenções hospitalares compulsórias foram extintas e os tratamentos psicológicos tornam-se obrigatórios, nos dois casos por Lei. Os pacientes passaram a poder consentir com a terapia, inclusive com a escolha dos médicos e dos locais de atendimento.

Ele instigou um movimento de reforma das políticas de saúde mental, com adesões na Europa e nos Estados Unidos.

No fim da década de 1970, Basaglia veio ao Brasil e visitou o Colônia de Barbacena, da qual saiu horrorizado – comparou-o a um campo de concentração nazista. Então, a partir de 1980 surgiu um movimento no país de fechar os hospícios e tratar os pacientes sem confinamento.

No manicômio você usa uniforme, come no horário, acorda de madrugada. Não existe respeito à singularidade. Isso anula a autonomia e a subjetividade do usuário. A privação de liberdade não ajuda ninguém. A liberdade, sim, é terapêutica, diz a psiquiatra Miriam Abouyd.

A jornalista Daniela Arbex, que pesquisou a barbárie no Colônia de Barbacena, comenta que não existe manicômio bonzinho (…) porque é impossível manter um espaço humanizado se você desumaniza o sujeito, quando você segrega, isola. Esta reação foi aqui nomeada como Movimento Antimanicomial.

A chamada Reforma Psiquiátrica entrou em vigor em 2001, depois de mais de dez anos de espera no Congresso. Os hospícios foram sendo desativados e criados os CAPS, pequenos centros de acolhimento. São complementados por residências e repúblicas terapêuticas, bem como enfermarias hospitalares de curta permanência e manicômios judiciários, neste caso para criminosos.

Esquema de funcionamento dos CAPS – Centros de Atenção Psicossocial, que procuram integrar as organizações de saúde com a comunidade.

Os 120 mil leitos que havia no país, em mais de uma centena e meia de hospícios, foram reduzidos para 20 mil e o número de CAPS cresceu para 2.500, sob orientação basicamente municipal. A gestão centralizada baseada no leito cedeu lugar a uma rede territorial descentralizada de atendimento, numa estrutura próxima e menor.

Porém esta rede é considerada incompleta, com pacientes dispersos e ausência de médicos – centros de reabilitação e não de tratamento. Teria sido como atomizar e esconder o problema.

E uma nova política, definida pelo Executivo, reforçou em 2017 o papel dos hospícios, que voltaram a integrar a rede de atendimento, no que muitos consideram um lamentável retrocesso.

Quero agora lhe contar sobre a notável trajetória da médica Nise da Silveira (1905-1999). Adepta e aluna do psiquiatra Carl Jung, ela revolucionou o tratamento mental no Brasil, opondo-se aos procedimentos médicos brutais e aos confinamentos em asilos psiquiátricos. Apesar de franzina e tímida, foi uma mulher de enorme vontade e coragem, movida pela força da sua indignação.

Foi uma aluna pioneira na Bahia e mesmo casada decidiu nunca ter filhos, para poder dedicar-se exclusivamente á medicina. Denunciada como comunista por uma enfermeira do Hospital da Praia Vermelha no Rio, foi presa e viveu na clandestinidade por quase dez anos. Só em 1944 foi reintegrada ao serviço público, começando seu trabalho no Centro Psiquiátrico Nacional no Engenho de Dentro, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro.

Nise da Silveira se opôs aos tratamentos agressivos e promoveu a humanização da terapia mental. Ela enxergou a relação entre arte e loucura.

Ao se opor aos tratamentos de eletrochoque e lobotomia, Nise foi punida com sua transferência para a área de Terapia Ocupacional, então considerada inofensiva. Ao invés de serviços de limpeza, ela estimulou os internos a pintar e modelar.

E Nise descobriu que o mundo do louco, inacessível pela palavra, poderia ser alcançado pela imagem. O resultado foi incrível: internos saudáveis e um acervo de obras de arte. O que cura é a alegria. O que cura é a falta de preconceito, ela escreveu.

O belo estudo das médicas Eliane Dias de Castro e Elizabeth de Araújo Lima descreveu o trabalho de muita delicadeza de Nise, voltada para a escuta atenta daquelas vidas vazias e sem sentido. Quando mudou o foco da terapia para além da psiquiatria convencional, ela abriu um novo campo de relação entre arte e loucura. Nele ela foi capaz de captar nos seus pacientes a experiência estarem vivos. A terapia num certo sentido passou a superar o diagnóstico.

Durante quase trinta anos até 1974, Nise foi capaz de melhorar a condição dos internos, pela experimentação, criatividade e afeto, construindo pontes para a autonomia deles. Como ela disse, fez uma aposta de que lá, onde eram jogados os rebotalhos da sociedade utilitarista, havia sujeitos. Foi através da arte que ela observava os tumultos internos adquirirem forma.

Como havia um alto índice de reinternação, Nise fundou a Casa das Palmeiras para ajudar a integração dos pacientes com a comunidade e o trabalho. Suportada desde o início por doações, a Casa passa por dificuldades e pode ser forçada a fechar.

Em 1952, foi fundado no mesmo local no Engenho de Dentro o Museu de Imagens do Inconsciente, que se tornou a mais preciosa coleção deste tipo de arte no mundo. Seu acervo cresce continuamente, pois não há vendas. Os antigos internos têm enorme apreço por suas obras – sabem o que são, quando as fizeram e, mesmo em liberdade, voltam décadas depois para revê-las. Elas ainda são suas vidas.

Nise também estimulou a terapia com uso de cães e gatos e fundou em Botafogo a Casa das Palmeiras, para reabilitação dos antigos pacientes que não estivessem entrosados na sociedade. Entre os anos 1950-60 fez dois cursos no instituto de Jung na Suíça. Continuou envolvida com seus projetos, suas obras e seu ensino, até falecer bem idosa.

Nise um dia disse: Não se cura além da conta. Gente curada demais é gente chata. Todo mundo tem um pouco de loucura. Vou lhes fazer um pedido: vivam a imaginação, pois ela é a nossa realidade mais profunda.

Compartilhar

Sobre o autor

Nasci no Rio, vivo em São Paulo, mas meu lugar é em Minas. Fui casado algumas vezes e quase nunca fiquei solteiro. Meus três filhos vieram do primeiro casamento. Estudei engenharia e depois administração, e percebi que nenhuma delas seria o meu destino. Mas esta segunda carreira trouxe boa recompensa, então não a abandonei. Até que um dia, resultado do acaso e da curiosidade, encontrei na natureza a minha vocação. E, nela, de início principalmente as montanhas. Hoje, elas são acompanhadas por um grande interesse pelos ambientes naturais. Então, acho que me transformei naquela figura antiga e genérica do naturalista.

Deixe seu comentário