Cidades Mortas

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A mim parece que os brasileiros não dão importância a seu passado, a ponto de destruir suas evidências físicas e apagá-lo de sua memória coletiva. Na Europa o passado é sempre presente, na moldura dos prédios, da história e dos costumes. No Brasil, parece ausente e ignorado. Escrevia esta coluna, quando encontrei o seguinte comentário de Mia Couto, o escritor de Moçambique que alguns dizem o maior de nossa língua: Dentro de nós, subsiste vivo um passado que ainda não passou.

Quando visito a natureza passo com frequência por vilas muitas vezes esquecidas. Mas nem sempre foram assim: muitas tiveram um passado importante, modificado por fatos imprevistos. Vou falar de algumas delas.

Quando fui ao PN da Chapada das Mesas no Maranhão, senti algo estranho no espaço e no silêncio de Carolina. Esta cidade de 20 mil habitantes tem um certo aspecto depressivo, talvez explicado por sua história curiosa. Naquelas vastidões, era antigamente um importante elo fluvial e aéreo, devido à proximidade com o Tocantins e à existência do aeroporto.

Casario de Carolina, MA (Fonte – Divulgação).

A cidade tornou-se rica e culta, sua elite ligava-se antes ao Rio do que a São Luiz. Até que nos anos 1960 a Belém-Brasília passou por Estreito, distante apenas 100 km, onde a largura do Tocantins permitiu a construção de uma ponte.

Isto desviou definitivamente de lá o fluxo do comércio. Carolina não soube compensar a mudança da rota comercial e entrou em decadência, tendo hoje apenas 2/3 da população de meio século atrás. É uma vila estranha, com avenidas muito largas, grandes praças vazias, casario pobre e pouca ocupação, que lhe dão um ar desanimado.

Já a vizinha Imperatriz, antigamente um lugarejo, conta hoje com mais de 300 mil habitantes, suplantando Carolina como a capital do sul do Estado.

Quando conheci no Rio o recente PE de Cunhambebe, descobri a triste história de São João Marcos. Ela foi a primeira vila da região, onde se estabeleceu o maior cafeicultor da época, o Comendador Breves. Era dono da Fazenda da Grama e suas propriedades iam de Mangaratiba no litoral a Piraí no vale. Mesmo com a migração do café, São João Marcos continuou como uma vila de porte médio, até seu fim catastrófico.

Como a cidade do Rio sofria de um mau abastecimento de água, foi projetado o represamento do Ribeirão das Lajes, de águas mais limpas que o Rio Paraíba. Elas haveriam de subir 4 metros, mas o Governo estabeleceu uma cota 12 metros acima.

Com este novo nível, São João viria a ser inundada, pois ficava num vale fundo e próximo. Pressionada, a população começou a abandonar a vila e as casas, a serem demolidas. Porém, quando o lago se formou, as águas chegaram apenas a metros da cidade: ela foi destruída desnecessariamente, por um estúpido erro de cálculo.

Maquete de São João Marcos, a vila inutilmente inundada. Veja seu precioso traçado radial. Sua população se mudou principalmente para Mangaratiba (Fonte – Divulgação).

São João Marcos era uma cidadezinha preciosa, que chamei de uma Paraty rural – tinha um elegante desenho radial a partir da igreja e da praça, com os demais prédios públicos à volta, como pode ser verificado pelas fotos e escavações.

Ao longo dos anos, cresceu no seu solo um surpreendente bosque de suenãs. Suas altas copas de flores vermelhas hoje sombreiam de forma mágica as ruínas dessa vila inutilmente desaparecida.

Numa de minhas viagens ao Vale do Jequitinhonha, quis conhecer Minas Novas, foi uma viagem trabalhosa no meio da lama. A cidade, hoje com 30 mil pessoas, é curiosamente atravessada de alto a baixo por pequenas igrejas barrocas, testemunho de seu apogeu.

Lá existe o Casarão, primeiro prédio mineiro em quatro andares. Foi o maior município de Minas, dele tendo se desmembrado nada menos do que 65 outros.

Era por lá a ligação com a Bahia, então o mais populoso Estado brasileiro. E, também, a região passou por importantes ciclos econômicos do algodão e do bicho da seda. Porém, foi irremediavelmente exaurida pelo surgimento da Rodovia Rio-Bahia a leste.

Começou a ser construída por Getúlio Vargas e tornou Vitória da Conquista o centro regional, hoje com 350 mil habitantes. Restaram a Minas Novas suas humildes igrejas vazias, todas elas com suas paredes brancas e suas janelas azuis.

Goiás Velho deve sua origem à busca do ouro, que levou Bartolomeu Bueno (o Anhanguera) a fundá-la. Todo ano por dois dias o governo do Estado de Goiás é instalado lá – a cidade volta a ser, simbolicamente, a capital, como antes foi por dois séculos.

Conheci esta vila muito tempo atrás, quando minha profissão, minha esposa e minha vida eram outras. Goiás era uma vila acanhada de 25 mil pessoas, que havia sido abandonada no tempo, pouco participando do progresso do agronegócio no Estado.

Ela foi o berço do coronelismo goiano e, exatamente para isolá-lo, articulou-se a construção da nova capital Goiânia. Mais tarde, o norte goiano sofreu outro golpe com a separação, já no fim do século, do novo estado de Tocantins.

O Rio Vermelho. Goiás Velho, GO (Fonte – Divulgação).

Ela foi quem sabe resgatada pela terrível inundação do Rio Vermelho, no último dia de 2001. Além de muitas casas, o rio destruiu a igreja onde hoje está a Cruz do Anhanguera. A catástrofe levou à reconstrução da cidade e dizem que a um novo orgulho e união entre seus moradores. Porém, continua uma vila modesta, com um povo humilde.

Mas as cidades nem sempre permanecem mortas, às vezes ressuscitam. Vou falar de dois casos – o primeiro é o de Rio de Contas na Bahia, que conheci nas minhas idas à Chapada Diamantina. Esta é uma cidade colonial de 15 mil habitantes, maravilhosamente preservada com seu casario colorido, suas amplas praças floridas e seus graciosos prédios públicos. Acredito que seu nome tenha a ver com as pepitas de ouro então extraídas da região.

Ela é a mais antiga vila em toda a chapada. Das cidades ao norte, no PN da Chapada Diamantina, contam-se outras histórias. Tiveram sua origem no século seguinte, quando houve a descoberta dos diamantes, não do ouro.

No início do século XVIII a cidade de Livramento, situada (como hoje) numa região fértil e plana, contraiu febre amarela. Para debelá-la, sua população foi relocada para um platô na vizinha Serra das Almas, onde foi construída uma nova vila com ruas largas e grandes praças.

A Praça de Rio de Contas, BA (Fonte – Divulgação).

Esta é a atual Rio de Contas, porém logo esvaziada, pois a peste passou. Devido à rápida decadência do ciclo do ouro, permaneceu até agora conservada. Só o ecoturismo a tirou do esquecimento e valorizou seu cenário único.

E, pasmem, Paraty também foi uma vila ressuscitada. Ativo porto de exportação de ouro e importação de escravos no período colonial, ficou despovoada e esquecida, seja por causa do Caminho Novo para as minas, seja pelo posterior êxodo rural.

Com o tempo, o progresso passou para o Vale do Paraíba, com o qual não tinha conexão. Sua ligação com o planalto só foi estabelecida pela até hoje precária estradinha de Cunha, em 1954. Nesta ocasião, Paraty não teria mais de 4 mil habitantes.

Paraty vista do Mar (Foto – Divulgação).

Já a conhecia e passei por ela nas tantas vezes em que visitei as grandes áreas verdes da Bocaina e da Joatinga. Com a Rio-Santos de 1974, seu casario colonial á beira mar passou a ser reconhecido e a cidade cresceu de forma surpreendente para 40 mil pessoas. Felizmente, todo este progresso aconteceu fora do protegido Centro Histórico, que restou maravilhosamente intacto.

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Sobre o autor

Nasci no Rio, vivo em São Paulo, mas meu lugar é em Minas. Fui casado algumas vezes e quase nunca fiquei solteiro. Meus três filhos vieram do primeiro casamento. Estudei engenharia e depois administração, e percebi que nenhuma delas seria o meu destino. Mas esta segunda carreira trouxe boa recompensa, então não a abandonei. Até que um dia, resultado do acaso e da curiosidade, encontrei na natureza a minha vocação. E, nela, de início principalmente as montanhas. Hoje, elas são acompanhadas por um grande interesse pelos ambientes naturais. Então, acho que me transformei naquela figura antiga e genérica do naturalista.

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