A Mão de Deus (Parte I)

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Fiquei um dia curioso acerca dos picos nomeados como Dedo de Deus, que acho parecido com o nome Véu da Noiva atribuído com frequência às cachoeiras. Na minha memória eu me lembrei de alguns, e acabei conhecendo alguns outros. Segue aqui o relato, que acho um tanto peculiar e diferente. Por ser muito longo, eu o dividi em duas partes.

A Mão de Deus (Parte I)

I

Teresópolis era, por volta de 1910, um povoado acanhado que crescera no entorno da fazenda do português George March. Com talvez não mais de 6 mil habitantes, sequer dispunha de ligação direta por estrada com o Rio de Janeiro. A ferrovia, que trouxe forte crescimento, tinha sido inaugurada em 1908. Veja que a Rio-Petrópolis só foi pavimentada meio século depois. Teresópolis era de longe a menor das três principais cidades serranas do Estado.

O maciço do Dedo de Deus (1.692 m) na Serra dos Órgãos (Fonte – wikimedia commons).

Visualmente, o Dedo de Deus (1.692 m) é uma das mais conhecidas montanhas do país. Possui o formidável desenho de um dedo indicador apontado com arrojo para o céu.

Mas não é só sua forma que o fez famoso – foi também a estupenda e mesmo dramática vista que se tem dele, logo antes da entrada de Teresópolis. E, também, o fato de ter sido a primeira conquista notável do alpinismo brasileiro. Faz parte hoje dos limites do PN Serra dos Órgãos, um dos primeiros do país.

No ano de 1912, uma equipe de montanhistas alemães tentou escalar o Dedo de Deus. Porém suas paredes lisas e expostas fizeram com que desistissem. Com a humildade típica dos germânicos, julgaram que, se eles não conseguiram, ninguém mais poderia. O grupo fora guiado pelo caçador Raul Carneiro, que não era alemão e não se convenceu desta opinião.

Vista aérea do Dedo de Deus. Notar as presenças de apoio e de vegetação.

Ele achava que poderia vencê-la com a ajuda do ferreiro José Teixeira e dos três irmãos Oliveira, Acácio, Alexandre e Américo. Partiram munidos de grampos de argola feitos pelo ferreiro, grossas cordas de sisal e muito engenho, coragem e paciência. Levaram nesta aventura dois dias, às vezes sob garoa. Venceram sem dificuldade maior o trecho de mato, recorrendo depois às chaminés naturais e formando pirâmides humanas para superar as paredes verticais.

Os conquistadores do Dedo de Deus. (Fonte: Divulgação)

Até que encontraram uma plataforma, antes do cume, que é separado dele por uma ameaçadora parede negativa. O grupo engenhosamente içou um tronco de árvore, apoiou-o então no platô e escalou por ele, até chegar ao cume do impossível Dedo de Deus. Usaram 19 argolas de arganel, que hoje chamaríamos de grampos. Hastearam nossa bandeira, voltaram no mesmo dia e foram recebidos lá embaixo com banda de música e, depois, com taças de champanhe no hotel.

A rota por eles conquistada é hoje em dia chamada de Teixeira, em homenagem ao bravo ferreiro que fez os primeiros grampos de escalada do Brasil. É uma via pouco técnica para o nível atual, mas bastante exaustiva fisicamente, sendo hoje classificada como mero grau III.

Mas este marco do alpinismo foi palco do primeiro acidente fatal do esporte no país, quando em 1933 um guia caiu à noite de um penhasco. Uma placa foi colocada na chaminé Paredão Vilela, em memória ao membro falecido. Ele pertencia ao Centro Excursionista Brasileiro – ativo até hoje, depois de mais de um século.

Croquis da atual via ao Dedo de Deus (Fonte – escaladas clássicas).

Em 1944 foi conquistada a variante Maria Cebola, uma via de grau IV que se tornou o mais popular acesso ao Dedo de Deus. Os escaladores contam hoje com facilidades: um cabo de aço na parte inicial e uma escada metálica na final. Que eu saiba, a escalada mais exigente no maciço é a curta variante Aresta Hillo Santana, de grau VIII, conquistada em tempos atuais.

Na época da II Grande Guerra, o ponto culminante da Serra dos Órgãos foi conquistado, e através de uma chaminé, no Pico Maior de Friburgo (2.316 m). Foi por décadas a maior via do país. Até que em 1974 foi superada por outra, e na mesma montanha: desta vez, a exposta Via Leste, de grau VI⁺. Então, por 60 anos, o Pico Maior abrigou as maiores vias do país.

A partir do século atual foram abertas no Brasil as chamadas supervias, em particular na Pedra Riscada em Ataleia, no Escalavrado e nos Cabritos, estes dois últimos em Teresópolis. As extensões chegaram aos 800 m, depois passaram dos 1.200 m e hoje já existe via de 1.500 m em Minas, ou seja, equivalente a duas Vias Lestes.

Você deve estar curioso com essas classificações das vias. Deixe-me dar um exemplo:

4⁰  V(A2/VII)  A4  C  D4  E3

A graduação das vias considera que o escalador está guiando (ou seja, à frente) e sem conhecimento prévio (ou seja, à vista). Inclui obrigatoriamente três índices, que medem o grau geral (4⁰), o lance mais difícil (V ou VII) e o grau do artificial (A4).

O grau geral é de todos o mais importante, pois retrata uma média das dificuldades experimentadas, incluindo a exigência técnica, a distância e qualidade das proteções, a exposição percebida e a presença de paradas naturais para repouso.

O lance mais difícil ou crux (VII) pode ser uma passada ou uma sequência, refletindo naturalmente a maior dificuldade técnica encontrada. Supõe que o escalador a faça em livre, sem apoios artificiais. Porém, um esportista menos experiente pode subir em artificial, apoiando-se nas proteções (como grampos, degraus ou fitas).

Neste caso, o lance irá se tornar mais fácil, recuando no meu exemplo para V. É o que representa a notação A2, sendo o algarismo uma medida da dificuldade. Porém, se não recorrer a esta ajuda, então o crux seria mais árduo ou VII. O parêntese indica portanto as duas alternativas da via.

Assim é fácil escalar – aparelhos de apoio e segurança.

O grau do artificial, também obrigatório, reflete a dificuldade técnica geral da via, indicada pelo algarismo 4. C representa a existência de algum cabo de aço. Já D é a medida do tempo da escalada – no caso, o número 4 significa que os escaladores precisarão de dois dias, dormindo portanto uma agradável noite suspensos na parede. Costuma vir no começo da classificação, o que não fiz neste exemplo.

A notação E mede o grau de exposição, que é a percepção psicológica da altura ou do espaço – o algarismo 3 indica uma situação mediana. Esses três últimos graus são opcionais.

Talvez mais difícil do que completar uma via seja classificá-la. E note que não comentei sobre os subníveis com os usos de sinais como sup. e + ou letras como a, b ou c.

II

Se você entrar na Jureia pelo litoral sul, enxergará no horizonte um impressionante perfil que parece recortado de forma surreal. Corresponde à Serra de Itatins – junto com Paranapiacaba, compõe a progressão da Serra do Mar no sul do Estado de São Paulo. Excluindo a planície costeira, esta é uma região muito acidentada, com íngremes paredes graníticas e exuberantes coberturas de mata atlântica.

No passado remoto, foi habitada pelos homens dos sambaquis, que usavam essas estruturas de conchas endurecidas como depósitos de restos e, talvez, como sepulturas. Depois, pelos caçadores-coletores e pelos indígenas da nação tupi-guarani. Mas os colonizadores pouco se estabeleceram lá, devido a suas terras pobres e acidentadas. Permanece até hoje vazia e desconhecida.

O Pico Dedo de Deus Paulista herdou esse nome um tanto estranho do seu homônimo no Rio de Janeiro, devido ao desenho arrojado e vertical. A serrania se estende entre os municípios de Miracatu, Itatins e Pedro de Toledo, lugares modestos sem história notável.

A crista rochosa culminada pelo Dedo de Deus Paulista. Note a mata densa e os grandes abismos.

Nem sempre fácil de avistar, domina o Itatins como seu ponto culminante, com mais de 1.300 metros. Embora a altitude em si não impressione, é muito significativa para esta extensão da Serra do Mar. Mais ao norte, em especial no trecho da Serra dos Órgãos, uma altitude como essa será frequentemente superada. Bem como mais ao sul, nos maciços paranaenses.

Durante muitos anos no século passado, o Dedo de Deus de Itatins foi uma obsessão para os aventureiros, por seu isolamento e altitude. Eu já conhecia a região, mas meu primeiro contato com ele aconteceu de maneira surpreendente: foi pelo delicioso livro de Hamilton de Souza. Era 1950, a sociedade brasileira parecia saudosamente inofensiva e o grupo de jovens aventureiros, ingênuos e inocentes.

Saindo do vilarejo de Pedro de Toledo e depois de dois cruéis dias no mato denso, descobrem que apenas atingiram uma lasca rochosa separada da montanha por um abismo. A parede em frente continuava inacessível. O retorno é penoso, mas chegam ilesos.

Um quarto de século depois, já homem maduro, Hamilton retorna ao rio de onde partira. Comenta dos altos morros, da floresta fechada e da dureza da serra. Mas sinto no fim de seu livro a nostalgia da conquista fracassada e nunca mais retomada.

Até aquele momento, a pessoa que mais perto chegara do Pico fora o açougueiro do vilarejo Orésio Ramalho. Ele recebe pouco depois da expedição de Hamilton um filme de um sobrevoo da montanha, feito por um amigo do grupo.

Hamilton de Souza conta: Descobrimos que havia, do outro lado da montanha, uma fenda na rocha que subia desde a base até o pico.  Em 1953, o determinado Orésio, junto com dois companheiros, conquista finalmente por esta via, e sem uso de corda, o Dedo de Deus Paulista.

O Dedo de Deus Paulista (1.333m), emergindo no alto da mata atlântica.

Vale registrar que os companheiros eram os irmãos Pettená. O mais velho era o coronel Rodolfo Pettená, então com 30 anos. Foi uma figura querida e importante no Vale do Ribeira – ele conheceu várias de suas montanhas, redescobriu a Caverna do Diabo e batalhou pelo desenvolvimento da região. Faleceu com mais de 80 anos, já com a patente de general.

Em 1957, Orésio alcançou novamente o alto da montanha e, na década seguinte, grupos do Paraná e do Rio de Janeiro repetiram o feito, inclusive neste último caso com uma placa comemorativa da primeira ascensão, que hoje decora o cume.

Entretanto, um grande desmoronamento tornou inviável este caminho. Em 2005, o alpinista Vitor Negrete trocou a rota leste por uma nova a sudeste, escalando por um diedro, agora sim com corda, graduado como IV⁺ um tanto exposto.

Mesmo passado mais de meio século, o Dedo de Deus permanece uma aventura difícil. Inserido na enorme Estação Ecológica da Jureia, atravessada no seu bordo norte pelos mais de vinte km da Serra, seu acesso é proibido e vigiado. Os Itatins formam um conjunto confuso de serranias íngremes.

A trilha continua pouco conhecida, muito acidentada e de difícil orientação. A floresta é fechada e interferente, cheia de bambus, espinhos, taquaras e carrapatos. O clima é quente e úmido, só favorecendo travessias no período seco.

Foi nesta última condição que uma equipe de seis membros alcançou uma vez mais o cume. Como todos os demais, partiram do Rio Despraiado, a 17 km de Pedro de Toledo, só que tomaram o rumo do Morro Boa Vista (1.140 m). Antes deste, existem as ruínas de uma estação de  telefonia, que estava em construção quando Hamilton de Souza lá esteve pela última vez.

Agora o grupo avançou no rumo sudeste seguido por Negrete, chegando no segundo dia na base do diedro. Este vigia uma parede de 25 metros na face oeste da montanha, onde sobrevivem dois antigos grampos. Necessitaram de mais de 10 horas de caminhada durante dois dias até o cume. No mesmo dia à noite, retornaram ao veículo estacionado no fim da estradinha de acesso.

Outro dos pontões dos Itatins, o Nariz de Palhaço ou Pico Pogoçá.

Assim relata Jorge Soto, um dos membros da equipe: O topo dos 1.333 m do Dedo de Deus Paulista é marcado por (…) dois enormes rochedos que servem de mirante. (…) Num dos rochedos reluz ao sol a famosa placa de bronze chumbada pelos cariocas, homenageando a conquista pioneira. (…) A vista do topo privilegia todo quadrante norte da Juréia e além, com destaque para as escarpas abruptas da Serra de Itatins.

Seu companheiro Júlio Fiori completa: Mar e céu se fundiam no horizonte e só a linha sinuosa das brancas ondas quebrando na praia marcava a fronteira entre o líquido e o sólido.

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Sobre o autor

Nasci no Rio, vivo em São Paulo, mas meu lugar é em Minas. Fui casado algumas vezes e quase nunca fiquei solteiro. Meus três filhos vieram do primeiro casamento. Estudei engenharia e depois administração, e percebi que nenhuma delas seria o meu destino. Mas esta segunda carreira trouxe boa recompensa, então não a abandonei. Até que um dia, resultado do acaso e da curiosidade, encontrei na natureza a minha vocação. E, nela, de início principalmente as montanhas. Hoje, elas são acompanhadas por um grande interesse pelos ambientes naturais. Então, acho que me transformei naquela figura antiga e genérica do naturalista.

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