Novos Índios, Velhas Lutas

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A mais recente Bienal de São Paulo, promovida como sempre no grande pavilhão do Parque Ibirapuera, foi estranhamente chamada Faz escuro mas eu canto. Mais do que quaisquer das mostras anteriores, expôs uma variedade de obras indígenas, de uma dezena de autores. Quem coordenou a mostra de arte nativa foi um índio macuxi, chamado Jaider Esbell.

Esbell nasceu na Reserva Raposa Serra do Sol em Roraima (aquela que foi contestada pelos plantadores de arroz que a haviam invadido) e se formou algo tardiamente em Geografia. Organizou o primeiro e muitos outros Encontros de Todos os Povos, para a exibição da arte indígena contemporânea. Tornou-se artista, educador, escritor e ativista cultural.

Jaider Esbell (1979-2021) produziu essas obras logo antes de sua morte. Decorativas, misteriosas, assustadoras e atemporais, refletem a magia noturna do seu mundo.

Suas pinturas são para mim surpreendentes. Sob seu sinuoso traço fino e suas cores luminosas, refletem formas míticas e figurativas de pensamento, com elementos do passado e do presente, mostrando o tempo como a simultaneidade e a interação entre os campos subjetivo e social, mágico e político, em um trânsito entre mundos.

Embora eu pretendesse, não tive tempo de conhecê-lo. Do pouco que sabia dele, sentia ser uma pessoa séria e pensativa. Com pouco mais de 40 anos, Esbell suicidou-se em 2021 no apartamento em que morava em São Paulo.

Porque estou contando esta história? Por certo, porque aprecio a arte de Esbell, mas também para indicar que os indígenas estão finalmente obtendo atenção na cultura brasileira. Depois de mais de cinco séculos de desprezo, estão podendo estudar e, pela primeira vez, se expressar. Estão sendo percebidos em campos como a história, a arte, a literatura, a política.

Os indígenas foram historica e sistematicamente massacrados no Brasil. Desde o cultivo da cana no litoral nordestino no século XVI e a progressiva colonizaçação de nosso território do Sul ao Nordeste nos séculos XVII-XX, até a ocupação amazônica da seringueira, da mineração e da pecuária a partir do século XIX. Existiriam de 3 a 5 milhões de índios quando os portugueses aportaram aqui – um século depois, sobrevivia apenas um décimo.

Gravura de Debret de 1830 – soldados paulistas conduzem nativos na Província de Curitiba.

Diz Neistron (resumido): Entendendo o índio como um ser bruto, quase um animal, que deveria ser domesticado ou derrotado, os portugueses não viam mal no processo colonizador, acreditando que a colonização iria salvar o indígena de terríveis erros morais e de sua miséria cultural e material. Esta mentalidade autorizou o massacre que se seguiu, numa época em que a conquista de outros mundos e a subjugação a ferro e fogo de outros povos eram tanto fonte de glória e honra como de lucro e poder.

Vou apenas citar um fato impressionante – o chamado Relatório Figueiredo, que permaneceu desaparecido por meio século. Em 1967 o então Ministro do Interior solicitou ao procurador Jader de Figueiredo que investigasse a situação dos índios no Brasil.

Seu gigantesco relatório documentou assassinatos em massa, com erradicação de tribos inteiras, tortura de adultos e de crianças, deliberadas introduções de vírus da varíola, escravidões, abusos sexuais e roubos de terras desde a década de 1940.

A Lei da Anistia impediu que os 134 acusados pelo relatório fossem jamais julgados. Esses crimes tiveram a participação do SPI – Serviço de Proteção ao Índio, que foi extinto e substituído pela atual FUNAI. Mesmo assim, a chamada limpeza étnica continuou a ser comodamente praticada no país.

Mulher indígena preparada para ser esquartejada, região de MT-RO em 1963.

Massacres nas últimas décadas permaneceram comuns: o povo isolado dos warikamas e os yanomamis no AM, que tiveram a aldeia de Haximu arrasada; os waimiri-atroari de RR, que perderam 3/4 da população em quinze anos; os panarás no MT, dos quais restaram apenas 1/6, exilados para o Xingu; os parakanãs no PA, metade deles dizimados; os uru-eu-wau-waus em RO, quando quase toda a geração antiga foi exterminada, privando os jovens de sua cultura.

Durante nossa história, os índios foram afastados, combatidos ou destruídos sempre que ocupassem territórios cobiçados pelos brancos: no litoral brasileiro, no interior do Nordeste, nas áreas de mineração ou agricultura do Sudeste. Não havia uma política em relação a eles, até o governo militar. O objetivo do governo passou a ser integrá-los na sociedade, pois eram vistos como impecilho ao programa de desenvolvimento econômico – era necessário integrar a Amazônia ao Brasil.

Os Grandes Povos Indígenas do Brasil

Povo Localização Língua População
Guaranis Sul, Sudeste e Centro-Oeste Tupi-Guarani 60 mil
Tikunas Norte Tikuna 46 mil
Kaingangue Sul e Sudeste 37 mil
Macuxi Norte Karib 29 mil
Guajajara Norte Tupi-Guarani 28 mil
Yanomami Norte Yanomami 22 mil
Potiguara Nordeste Tupi-Guarani 21 mil
Terena Centro-Oeste Aruak 20 mil
Xavante Centro-Oeste 19 mil
Pataxó Nordeste 14 mil
Munduruku Norte Munduruku 14 mil
Caiapó Centro-Oeste e Norte 12 mil

Nota: A fonte de informação mais frequente foi o ISA – Instituto Socioambiental.

Começou nesta época um processo de mobilização política indígena, com apoio de intelectuais, universidades, lideranças, ONGs e Igreja. Inicialmente despreparados, os índios foram se tornando independentes – capazes de definir suas prioridades, suas demandas e suas ações.

A partir de ½ século atrás, os territórios indígenas foram legalmente estabelecidos como patrimônio da União e o Estatuto do Índio assegurou seu direito à cultura diferenciada e ao usufruto da terra. A Consituição de 1988 reconheceu direitos associados à autonomia, organização social, costumes e tradições.

Protesto indígena em Brasília – a luta pela demarcação de suas terras, contra os grandes empreendimentos como barragens, contra a violação dos seus direitos e a criminalização de suas ações.

Aos poucos, os indigenas foram se mobilizando numa série de assembleias, para unificar suas lutas e afirmar seus direitos. Tiveram pela primeira vez um índio, Mário Juruna, eleito para o Congresso. Fundaram várias organizações e declararam em 2000 na Conferência Indígena que já lançamos o nosso grito de guerra e fundamos o início de uma nova história. Conseguiram unificar em 2006 seu movimento através da APIB – Associação dos Povos Indígenas do Brasil: agora, passaram a ter uma voz nacional.

Quero comentar dois temas fundamentais para o futuro dos povos indígenas – a terra e a cultura.

A demarcação das terras Indígenas, consideradas inusucapíveis, inalienáveis e indisponíveis, sempre foi polêmica, desde a primeira delas, o Parque Indígena do  Xingu de 1961-93. O Alto Xingu abrigava dez tribos que falavam todos os quatro idiomas conhecidos no Brasil.

Além das residentes, foram pacientemente atraídas durante ¼ de século outras etnias que existiam à volta: os valentes kaiabi, os temíveis txicões, os distantes tupayunas e os quase extintos panará.

Elas vieram a se juntar entre outras aos kalapalo, kuikuro, waurá, juruna e suyá. Mas a mais notável iniciativa foi o reagrupamento e a recriação da nação yawalapiti – seu cacique tornou-se depois o mais influente da região. Agora reunidos num grande território contínuo, com solo adequado e água abundante, os povos antes guerreiros passaram a conviver pacificamente. Acabaram assim as Guerras Xinguanas.

A maior cerimônia no Xingu é chamada de Kuarup, em homenagem aos mortos.

Pela primeira vez no Brasil, um território demarcado foi exclusivamente atribuído a tribos indígenas. E criado suficientemente grande para que lá elas pudessem prosperar, sem ameaçar o meio ambiente. Elas puderam preservar sua cultura e exercer o autogoverno. E proteger-se para sempre do branco invasor. O Parque do Xingu serviu de exemplo (mas não de modelo) para as posteriores demarcações das Terras Indígenas.

Segundo Tetraktys: Para os indígenas, as reivindicações pela posse da terra se justificam porque a terra e sua natureza, mais do que serem uma garantia de sobrevivência física, são um dos fundamentos da sua cultura e têm um valor sagrado. Ali florescem plantas usadas em rituais, repousam os despojos e a memória de seus ancestrais, são o espaço de manifestação de divindades, seres mitológicos e espíritos protetores, são um santuário vivo e uma arca de valores simbólicos e religiosos, e um elo de ligação com o mundo espiritual.

A criação das TI´s é morosa e controvertida, contestada pelo lobby das mineradoras, empreiteiras, madeireiras e pecuaristas. As bancadas do agronegócio e dos evangélicos intervêm no Congresso com contestações jurídicas, assim como a polícia contra as marchas e acampamentos nativos.

Mesmo quando homologadas, são sujeitas à grilagem, à queimada e ao desmatamento. E seus habitantes, a ameaças, violências e assassinatos. Esta era a situação das TI´s em 2020:

Situação Quantidade Área (ha) Percentual
Homologadas 486 106.860 mil 91%
Declaradas 74 7.310 mil 6%
Identificadas 43 2.180 mil 2%
EmIdentificação 120 1.080 mil 1%
Total 723 117.430 mil 100%

Nota: O total equivale a 1,2 milhões km² ou 1/7 do Brasil.

O segundo tema é a cultura. Finalmente, houve uma valorização da identidade indígena. Este é um fato novo, resgatar esse rico universo de lendas e costumes, de arte e tradição, de mitos e saberes. Veja que, embora com uma origem ancestral comum, o relativo isolamento das etnias criou a fascinante realidade de diferentes histórias, idiomas, artes e sociedades.

Porém, existe uma questão difícil. O bonito texto de Tetrakys foi ligeiramente adaptado: O consenso ocidental costuma identificar os indígenas como membros de culturas selvagens, com indivíduos seminus cobertos de pinturas corporais e adereços plumários. Contudo, o contato com a civilização levou-os a absorver elementos culturais e hábitos ocidentais — roupa, língua, moradia, eletrônica, alimentação, universidade.

Índio aculturado ou legítimo?

Seria o segundo consciente e o primeiro, alienado?

O que entra em jogo aqui é a questão de até que ponto um índio permanece como indígena num contexto de rápida transformação social. Muitas vezes essa incorporação do progresso é usada como justificativa para desqualificar sua condição de indígena e negar seu direito à terra. A conceituação de indígena ainda é dependente de um estereótipo racista e histórico, e desconsidera o fato de que as culturas originais nunca foram estáticas, elas evoluíram.

Muitos indígenas, com base em sua ancestralidade e numa percepção dinâmica de cultura, já começam a reivindicar o direito à diversidade como parte do direito à autodeterminação, de não serem segregados ou discriminados seja qual for o caminho que resolvam seguir, e de permanecerem sendo indígenas mesmo que sua cultura e aparência se transformem.

Ele aborda a situação do índio no futuro. Se aculturado e irrelevante ou autêntico e criativo, idependente de seu aspecto modificado. Esse é um assunto infinito e talvez insolúvel. Só não queria terminá-lo sem reconhecer a incrível e desconhecida riqueza que estamos esquecendo com o gradual (e irreversível) apagamento das nossas nações indígenas.

No início, havia publicidade apenas para os grandes caciques, que podiam falar com a autoridade de representar todo o seu povo. O controvertido Paulinho Payakã dos caiapó; Sapaim e Tarumã Kamayurá do Alto Xingú; Messias Kokama, que liderou o Parque das Tribos de Manaus; o longevo Aritana Yawalapiti, que fez renascer seu povo e comandou as tribos do Parque Indígena do Xingu; Jacir Macuxi, que foi capaz de unir os povos de RR contra a violência do garimpo.

Raoni Metuktire (1932-2020), cacique caiapó, maior liderança indígena do país.

Só este último está hoje vivo. O maior de todos, Raoni Metuktire dos caiapós, não resistiu ao covid. Apesar de sua atuação espalhafatosa junto ao homem branco, suas amizades e contatos internacionais e sua participação na Rainforest Foundation, Raoni continuava vivendo em uma simples cabana na floresta, possuindo poucos bens materiais. Os presentes que recebia eram doados a toda a sua comunidade.

A busca pelo ensino universitário foi uma estratégia inteligente dos indígenas, possibilitando a formação de uma resistência também intelectual. Muitos atuam como escritores, documentaristas, músicos, artistas e historiadores, com o propósito de divulgar e preservar sua cultura. É deste outro tipo de indígena, urbano e instruído, e que nem sempre se mostra vestido em trajes típicos, que quero agora lhe falar.

Davi Kopenawa dos yanomamis amazônicos é para mim a maior figura nativa do Brasil. Sua vida passou do medo e ignorância na infância ao assombro e aculturação à medida que convivia com a crueldade dos brancos, da busca e do encontro de seus poderes xamânicos à descoberta de uma visão do mundo, ampla, forte e bela.

Ele mora ainda na aldeia amazônica de Watoriki, mas viaja pelo mundo, escreve e desenvolve ação política em defesa do seu povo. Seu livro A Queda do Céu, que levou décadas para ser completado, é para mim a nova Bíblia do nativismo.

Davi Kopenawa nasceu em 1956 na regão do Alto Amazonas, onde reside até hoje. Na imagem, ele se apresenta numa palestra em Paraty, RJ.

Ailton Krenak (1953), ativista, filósofo e professor, numa entrevista recente.

Ailton Krenak é um militante mais instruído, conhecido e influente do que Kopenawa – é filósofo e ambientalista. Talvez isto se deva à sua origem krenak, às margens do urbanizado Rio Doce mineiro, e à sua aproximação com a política e a universidade. Disse depois do desastre de Mariana que essa prontidão que as pessoas estão vivendo na margem do rio agora deixa elas no mesmo estado simbólico de coma em que o corpo do rio está. Ele participou da discussão sobre a nova constituição de 1988 e se tornou nacionalmente conhecido quando, em discurso na tribuna, pintou o rosto com a tinta preta, para protestar contra o retrocesso na luta pelos direitos dos índios.

Sônia Guajajara nasceu na Terra Indígena de Arariboia no Maranhão. Embora tenha cursado Letras e Enfermagem, não perseguiu uma carreira acadêmica como Krenak. Seu caminho foi o do ativismo político, tendo chegado à coordenação da influente APIB – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil.

Sônia filiou-se a um partido político formal, no caso o PSOL, tendo concorrido nas eleições presidenciais como vice na chapa de Guilherme Boulos. Sua perspectiva política é naturalmente mais ampla (e talvez torta)  do que a de Kopenawa e Krenak – ela se diz ecossocialista.

Daniel Munduruku nasceu em Belém, não na floresta. Sua etnia é uma das maiores da Amazônia. Entretanto, sua formação final deu-se em São Paulo, com Doutorado na USP e Pós-Doutorado na UFSCAR. Sua trajetória contrasta fortemente com a de Guajajara, pela ausência de envolvimento em organizações políticas. Munduruku atua através da cultura, da literatura e da educação. Escreveu dezenas de livros, muitos deles juvenis, e foi com frequência premiado.

Daniel Mundukuru (1964) veio também da Amazõnia, dedicando-se ao ensino e à literatura, se bem que com foco na cultura indígena.

Denilson Baniwa (1984) é um importante ativista, com uma pintura figurativa onde convivem o sagrado e o social.

Denílson Baniwa tem também uma origem amazônica, nasceu em Barcelos, à margem do Rio Negro. Sua atração pelo desenho veio das referências culturais de seu povo. Teve educação formal em arte na sua região, onde permaneceu até o fim da adolescência. Ele é pintor, designer e ilustrador, com exposições de impacto no país e exterior. Tem forte penetração no meio artístico, atuando com frequência como curador. É um importante ativista, organizando palestras, cursos e oficinas.

Veja que esses personagens vão do xamanismo à ciência, da política à literatura e às artes visuais. Refletem a colaboração ancestral, vigorosa e engajada, por vezes geométrica e figurativa, outras vezes biológica e formal, com que o imaginário dos indígenas enriquece a cultura de nosso país.

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Sobre o autor

Nasci no Rio, vivo em São Paulo, mas meu lugar é em Minas. Fui casado algumas vezes e quase nunca fiquei solteiro. Meus três filhos vieram do primeiro casamento. Estudei engenharia e depois administração, e percebi que nenhuma delas seria o meu destino. Mas esta segunda carreira trouxe boa recompensa, então não a abandonei. Até que um dia, resultado do acaso e da curiosidade, encontrei na natureza a minha vocação. E, nela, de início principalmente as montanhas. Hoje, elas são acompanhadas por um grande interesse pelos ambientes naturais. Então, acho que me transformei naquela figura antiga e genérica do naturalista.

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