Queria falar do ambientalismo gaúcho, que foi muito importante nessa época. Começo por Henrique Luís Roessler (1896-1963), um delegado florestal que procurava controlar a caça, o desmatamento e a poluição no Vale do Rio dos Sinos, próximo a Porto Alegre.
Criou uma consciência ambiental no Estado e fundou a UPN – União Protetora da Natureza, que não sobreviveu à sua morte, mas foi um exemplo para todo o Brasil.

Folheto contra a caça aos passarinhos, distribuído pela UPN de Henrique Roessler.
Mas a grande voz do Sul, e talvez do país, foi a de José Lutzenberger. Filho de imigrantes alemães radicados em Porto Alegre, formou-se como agrônomo especializado em adubos. Por longos anos trabalhou para empresas do setor, em especial a Basf, seja como técnico ou executivo.
Ele já havia viajado o mundo quando tive uma crise – não foi em Damasco, mas em Marrocos. Percebeu que não poderia mais continuar trabalhando para uma produtora de agrotóxicos que estragava a natureza.

É curioso que, nesta época, Lutz não mais pretendia voltar ao Brasil. E quando aqui retornou em 1970, sequer tinha um emprego. Fundou com amigos a pioneira Agapan – Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural que, desde o início, repercutiu na imprensa local.
E por uma boa razão: além do interesse no assunto ambiental, Lutzenberger era um excelente orador, com grande cultura e sólida argumentação.
Surge então a sua mais célebre causa: a Borregaard, uma empresa de celulose que poluía o ar e a água do Guaíba, o lago que banha a capital gaúcha. Lutzenberger comandou uma campanha pública que levou em 1973 à interdição da fábrica.
A Agapan combateu a perseguição aos morcegos na cidade, o desmatamento no Estado, a redução das áreas verdes urbanas, os perigos dos agrotóxicos e da energia nuclear, entre outros problemas ambientais – ela solidificou um dos mais combativos movimentos de resistência ecologista que o Brasil já conheceu e inaugurou um inédito processo de revisão de métodos produtivos.

José Lutzenberger (1926-2003) era agrônomo, e estudou também matemática, biologia, história e religião. Embora não fosse político, chefiou a SEMA.
Em 1976 Lutzenberger publicou Manifesto Ecológico Brasileiro: O Fim do Futuro?, considerado um marco no ambientalismo brasileiro e talvez o texto mais importante desse movimento.
Foi a primeira análise global e sistemática sobre a crise ecológica brasileira, que criticou o padrão seguido pela agricultura e influenciou nossa legislação. Era na época inviável discutir meio ambiente sem ouvir Lutzenberger.

Lutz participou da criação de várias unidades de conservação estaduais, entre elas o Parque da Guarita, como ele disse migalhas perdidas da Serra Geral, do qual executou o paisagismo, junto com Burle Marx.
Quando Ministro (ver depois), comandou a demarcação da gigantesca Reserva Yanomami, a nova legislação da Mata Atlântica e a definição do conceito de APA.
Curiosamente, fez também anos depois o paisagismo da planta da Borregaard. Durante certo tempo, ganhou a vida como paisagista e, depois, como empresário de reciclagem de resíduos industriais.

O Parque da Guarita abarca as duas torres que nomeiam o município costeiro de Torres, RS.
Mas a redemocratização do Brasil trouxe a politização do ativismo ambiental, o que começou a isolar Lutzenberger, que sempre teve uma posição apolítica.
Em 1987, ele se desligou da Agapan, dizendo: Eu não saí da Agapan. Aconteceu que surgiu um grupo de guris que não sabia nada de nada e que transformou a Agapan em política partidária. E aí eles perderam, inclusive, a penetração nos meios de comunicação. Eles não tinham nada a dizer.
Lutzenberger fundou logo a seguir a Fundação Gaia em Rio Pardo (RS), para promover a educação ambiental, o manejo sustentável, a medicina natural, a energia e o saneamento alternativos.
Ele via o problema ambiental como um conjunto de valores naturais, sociais e culturais que necessitava de uma abordagem integrada (ou holística). Sem deixar de atuar na prática, Lutzenberger adotou entretanto uma filosofia globalizante que, aos poucos, o foi alienando da ação política.

A Fundação Gaia em Rio Pardo (RS) recuperou a área de uma antiga pedreira de basalto. Lutzenberger pediu para ser enterrado lá.
Grande foi a surpresa quando foi chamado pelo Presidente Collor para a Secretaria de Meio Ambiente. Collor me ofereceu um espaço que eu, em sã consciência, não poderia recusar. Eu nunca quis ser governo. Eu sabia que ia ser uma coisa horrível para mim, e foi. Como é que eu podia dizer não? Ele me deu um espaço. Eu aproveitei esse espaço durante dois anos. Durante este tempo, inclusive, aconteceu que grande parte do movimento ambiental se virou contra mim.
Foi demitido quando ameaçou fazer uma devassa no Ibama – anos antes, já havia denunciado com muito impacto as políticas do Banco Mundial como social e ambientalmente nocivas. Dizia-se que sua demissão foi obra das madeireiras, dos ruralistas e dos militares, que o consideravam comunista.
Sem ele, a participação oficial brasileira na Rio 92 foi apagada, e dominada pelos diplomatas de carreira com pouco interesse real pelo meio ambiente.
Entretanto, sua palestra no evento foi memorável: Ele falou da destruição das florestas tropicais e da extinção de espécies. Ele falou dos povos indígenas que desapareceram e de linguagens que jamais serão ouvidas de novo no planeta. E ele falou com tanta honestidade que me admirei de que ele possa viver sob o peso de tão terrível conhecimento. No dia seguinte, tive a chance de falar com ele e descobri um homem cheio de esperança (depoimento de Kathryn Hochstetler e Margaret Keck).
Essas duas autoras comentam que ele não era um mediador – era um visionário. Ele jamais aprendeu, nem esteve interessado em aprender, as habilidades que lhe teriam permitido transitar com facilidade entre os diversos campos de ação… Seu papel parece ter sido mais inspirador e técnico, do que organizador ou estrategista.
Se Ruschi foi um pesquisador, um homem de conhecimento especializado, Lutz foi um filósofo, um pensador generalista, um homem de princípios.
Lutz continuou ativo até o fim da vida em causas ambientais: recuperação de áreas degradadas, crítica aos transgênicos e à privatização das águas, defesa dos povos e da natureza amazônica.
Morreu aos 75 anos de ataque cardíaco. Foi sepultado em um bosque na Fundação Gaia, e, como pediu: nu, envolto em um lençol de linho e sem caixão, ou seja, sem deixar marcas no ambiente, de forma coerente com sua filosofia.
O jornal O Sul assim noticiou a cerimônia: Uma belíssima e violenta manifestação das forças da natureza. Assim foi a homenagem de Gaia a um dos seus maiores defensores, José Lutzenberger. Quando a última pá de terra foi colocada à cova do ambientalista, a fina garoa que caía no final da manhã se transformou numa violenta chuva de vento. A intempérie que atingiu o pequeno bosque chegou a derrubar uma árvore e vários galhos. As dezenas de pessoas que acompanharam o funeral correram. Algumas não deixaram de mencionar que aquilo só poderia ser mais uma das brincadeiras de Lutz.
Lutz nunca pôde estudar formalmente as ciências da vida. Entretanto, suas filhas Lilly e Lara, que escaparam de se tornar marroquinas, são formadas em Biologia e continuaram o seu legado.















