Os dois personagens deste capítulo são ainda jovens. Este texto fala até certo ponto antes de suas ideias do que de suas realizações. Talvez você ache estas últimas um tanto modestas, mas as ideias que as sustentam são poderosas.
Novas Ideias
I
Uma das mais antigas árvores de São Paulo fica num local muito especial – era à sua sombra que as famílias se despediam daqueles que deixavam a cidade, em especial dos soldados da Guerra do Paraguai.
Esta é a Figueira das Lágrimas, mais uma das árvores da cidade ameaçada pela degradação que talvez a impeça de viver além de seus dois séculos de história.
Ainda que venha a morrer, a figueira não deixará de existir, pois ela foi clonada pelo biólogo Ricardo Cardim. Ele diz que ela é um monumento vivo, a única árvore paulistana que presenciou a Independência do Brasil. É curioso que ela esteja no bairro do Ipiranga, onde nossa independência foi proclamada.

Jequitibá que é capa do livro ‘Remanescentes da Mata Atlântica’ de Ricardo Cardim.
Mesmo sem saber, eu já conhecia algo da obra de arqueologia botânica de Ricardo Cardim. Existe em São Paulo uma casa preciosa, que pertenceu a uma das famílias da antiga elite cafeeira, e que hoje é um museu.
Eu havia assistido a fotos de árvores antigas da Mata Atlântica no Museu da Casa Brasileira. Este arquivo resultou de uma série de expedições conduzidas por ele e foi documentado no livro de 2018 Remanescentes da Mata Atlântica.
Ricardo conta que em Portugal poucas eram as espécies florestais. A selva brasileira causava temor aos portugueses, pois poderia abrigar perigos e inimigos – monstros, indígenas ou moléstias.
Nós teríamos herdado essa aversão ancestral á mata fechada. Quando fizeram o paisagismo de suas cidades, os brasileiros usaram quase sempre espécies exóticas, em São Paulo apenas 1/10 delas são nativas.
A cidade de São Paulo é composta por ilhas de mata no meio de cerrado. Essa vegetação de Mata Atlântica se regenera rapidamente. O desmatamento urbano foi relativamente recente e o solo ainda reteve por assim dizer a memória da mata.
Se forem plantadas árvores que pertenceram originalmente a determinado local, a floresta lá crescerá com mais facilidade. O terreno ficará rapidamente sombreado e as espécies danosas não prosperarão.

Este jardim de menos de 200 m2 floresceu numa pequena mata em menos de três anos. Ele mostra a força da regeração de nossa flora nativa.
Com o objetivo de resgatar os fragmentos de florestas nativas dentro da cidade, Ricardo criou uma técnica chamada Floresta de Bolso, aplicada por empresas ou por comunidades.
Áreas pequenas como 20 ou 30 m² (porém na média com 250 m²), sejam públicas ou privadas, são florestadas com dezenas de mudas nativas, num espaçamento muito próximo de oito árvores/m². Ricardo diz que este adensamento estimula a competição e faz a vegetação simplesmente irromper: as árvores chegam a 12 metros em apenas cinco anos.
A rebrota da floresta, é como ele descreve o processo. São Paulo é uma grande ilha de calor. A árvore economiza vida e traz saúde para a cidade. Nesses últimos dez anos, Ricardo desenvolveu métodos de análise e de plantio que recriaram a dinâmica de uma floresta nativa tropical.
Ele fez o projeto de paisagismo do Rio Pinheiros, restaurando a vegetação original e recriando o que é hoje uma pequena mata. Se pudesse, criaria corredores verdes para a população andar a pé.
Quando contempla o jequitibá que é capa de seu livro, Ricardo Cardim sabe que não mais existe a Mata Atlântica nativa.
Ela é uma sombra da original. Nossa geração talvez seja uma das últimas a conseguir enxergar essas árvores gigantes, porque elas estão desaparecendo. Tenho a sensação de que muitas árvores da Mata Atlântica são como os últimos moicanos.

Nascido em 1978, Ricardo Cardim é biólogo e paisagista. Tem procurado recriar fragmentos urbanos da Mata Atlântica na cidade de São Paulo.
Mas também sabe que o único jeito de salvá-la é fazer com que as pessoas conheçam este patrimônio. Ele pensa que nossas reservas naturais públicas não são realmente profissionais, acha que os seus caminhos na floresta ainda permanecem escondidos.
Ricardo Cardim comenta: Sou otimista quanto à Mata Atlântica, mas não quanto à Amazônia. Acho que não vai dar tempo. A Amazônia vai ser fragmentada antes que as gerações futuras consigam entender a importância dela. Existe lá um arco de aventureiros – políticos, grileiros – que são incontroláveis. Eles vão fragmentar a floresta antes que a gente consiga mudar a sociedade.
II
Uma das pragas na produção da soja chama-se buva, que pode infestar a lavoura e reduzir grandemente a sua produtividade. Entretanto, apresenta variadas qualidades curativas, sendo usada na medicina popular. O buriti tem o dobro de vitamina A do que a cenoura e a gabiroba, dez vezes mais vitamina C do que a laranja.
Ao analisarmos nosso cardápio, praticamente tudo o que comemos é exótico (ou seja, não nativo). Tomate, alface, pimentão (e acrescento batata, trigo e arroz, manga e maçã) são muito explorados, mas nenhum deles é daqui, diz o biólogo Valdely Kinupp.
A alface, por exemplo, era conhecida como planta medicinal. Só depois de muitos anos que passaram a utilizá-la na salada, como espécie comestível. Kinupp, que já viveu no Brasil de norte a sul, produziu um livro pioneiro sobre as PANC, com pranchas sobre 350 diferentes plantas.

O livro pioneiro de 2014 sobre as PANC. Seus autores são o biólogo Valdely Kinupp e o agrônomo Harri Lorenzi. Lorenzi do Instituto Plantarum é autor da nossa obra de referência sobre as árvores brasileiras.
Existe uma enorme quantidade de plantas alimentícias (bem como medicinais e artesanais) que surgem de forma espontânea em quintais, terrenos baldios, canteiros, cercas e cultivos, mas que não são consumidas ou utilizadas por falta de costume ou de conhecimento.
Elas são hoje chamadas de PANC ou plantas alimentícias não convencionais. A verdade é que tudo foi PANC um dia, conta Kinupp, antes que os hábitos de consumo as tornassem parte regular da produção e da dieta.
Vou lhe dar alguns exemplos. As folhas do ora-pro-nóbis compõem com proveito os pratos suínos, a taioba, a bertalha e a beldroega são ótimas verduras que podem ser consumidas cozidas, as folhas de peixinho tornam-se deliciosamente crocantes quando empanadas ou fritas, a capuchinha e a azedinha decoram e tornam saborosas as saladas, o fisalis produz delicadas geleias e o caruru é um poderoso suplemento alimentar.
Embora consideradas folclóricas e pitorescas, as PANC são mato que não chega ao prato, como dizem os biólogos que as conhecem.
Talvez seu maior símbolo seja a magnífica vitória régia, da qual podem ser aproveitadas a semente, a flor, a raiz, o tubérculo e o talo. Às vezes penso se elas não levarão a uma revolução gastronômica, aliás já ensaiada por alguns chefs da moda.

Seleção de plantas não convencionais – nutrição, tempero, remédio, aroma, textura e sabor.
Essas plantas são em geral rústicas, nutritivas e fáceis de plantar, distribuindo-se por todos os nossos biomas. Seu consumo é ainda restrito, de forma que sua produção é feita em pequenos volumes.
Ou seja, não integram a agricultura de escala, com uso da mecanização, dos pesticidas e da adubação que costumam acarretar impactos ambientais nocivos.
São plantios feitos ao alcance de pequenas comunidades ou de agricultores familiares, com distribuição em locais próximos. Podem ser vistos como tendo uma inserção popular, regional e cultural.
Patrícia Medeiros é doutora e pesquisadora em Etnobiologia, tendo se formado em Pernambuco e ensinado na Bahia e em Alagoas. Essa disciplina estuda a relação entre as pessoas e os recursos naturais. Por exemplo, sua tese de doutorado em 2010 versou sobre os usos da madeira numa pequena comunidade nordestina.
Dez anos depois, Patrícia foi premiada com uma bolsa internacional para pesquisar sobre as PANC com objetivos interessantes: popularizar seu consumo, indicar formas sustentáveis de extração, medir sua aceitação junto aos consumidores e definir seu público alvo.
Ela concentrou seu estudo numa comunidade litorânea de agricultores e extrativistas, produtora de frutas silvestres em Alagoas.
Patrícia explica: Buscamos entender por que algumas plantas ou animais são mais consumidos, conhecidos ou são alvo de atitudes mais positivas do que outros. Também nos interessamos por compreender por que nossa memória privilegia alguns elementos da natureza em detrimento de outros. E como a evolução biológica moldou a nossa forma de se relacionar com a natureza. Essas são algumas das questões que movem minha prática como etnobióloga.

Patrícia Muniz de Medeiros nasceu no Recife em 1983. Sua pesquisa procura aliar os aspectos sociais, psicológicos, botânicos e econômicos das PANC.
Ela acredita que o consumo das PANC pode levar a uma maior segurança e diversidade alimentar, à valorização dos ingredientes locais, à preservação das espécies nativas e ao aumento de renda das comunidades tradicionais ou da agricultura de subsistência. Ela espera que sua pesquisa diminua a distância entre o conhecimento ancestral sobre as plantas e o que a população em geral sabe sobre elas.
III
É a meu ver limitado o resultado da ação de Ricardo Cardim. Os pequenos retalhos florestados urbanos não têm nenhuma condição de resgatar a Mata Atlântica que os compõe. Um mosaico minimamente viável neste bioma deveria dispor de área meio milhão de vezes a de uma Floresta de Bolso.
Mas este não é o ponto. O que a meu ver importa – e isso é primoroso – é a sombra e o silêncio, os espaços e as espécies, a visão do exemplo dessas pequenas florestas.
Eu sei também que é humilde o esforço de Patrícia Medeiros, dedicado a uma mínima parcela de nossa produção agrícola, praticada em pequenas comunidades do interior, com resultados esperados somente a longo prazo.
Mas ele pode demonstrar – diferentemente da agricultura massiva de grãos, agressiva e triunfal – que é possível ao mesmo tempo alimentar e preservar.















