A proposta era trilhar por caminhos antigos, em um dos berços do excursionismo carioca: cruzar terras de quatro distritos da região noroeste de Petrópolis, começando por Cascatinha e trilhando pelas cristas e colos até Secretário. Os cumes pretendidos, Pedra da Cuca, Pedra Comprida de Araras (CEP70), Serra das Antas Sudoeste (ataque), Palmares, Pedra Azul (ataque), Serra das Araras (acampamento), Maria Comprida (ataque) e Monte de Milho, antes de descermos para a Cachoeira da Rocinha, no Córrego do Barro Preto, onde a van nos resgataria para o retorno a São Paulo. Nosso caminho se daria pelas terras da unidade de conservação MONA Maria Cumprida – Monumento Natural da Serra da Maria Comprida, criada em 1/7/2022 e que pretende preservar a flora e flora presentes no local, bem como as paisagens através de múltiplos usos sustentáveis.
Na semana precedente, acompanhamos atentamente a evolução das previsões do tempo, buscando identificar com a precisão possível o que nos aguardava nas montanhas no final de semana da caminhada. Monitoramos focos de incêndios relatados, condições de seca, a evolução das massas de ar e progressão da linha de instabilidade causada pela passagem de uma frente fria.
Apreensivo com o grau de severidade da seca que assolava a região, comemorei as chuvas reportadas pelas imagens de satélites nas vésperas, pois prometiam que os pontos de captação d’agua não estariam estéreis. Nos restava lidar c om as condições a d versas do fr io enregelante, chuvas i ntermitentes e baixa visibilidade, para o que t r a t ei de revisar o equipamento, com duas capas de chuva descartáveis, um poncho de emergência e proteger as tralhas de dormir com 3 camadas plásticas sucessivas.
Reforcei os lanches de trilha, viabilizando uma ingesta de calorias bastante farta, quase que constante. Escolhi camisetas claras, para usar em camadas durante a caminhada, de forma a facilitar a regulação térmica, reduzindo o consumo d’agua para essa finalidade. Antes das chuvas da véspera, planejara entrar com 7 litros d’agua. Com as chuvas, fui reduzindo para 5 litros, depois 4 e finalmente, já na viagem, acompanhando as últimas informações de deslocamento das nuvens para 3 litros.
As previsões numéricas (GFS, ECMWF, ICON e METEOBLUE) não convergiam, de forma que cotejei a avaliação das imagens de radar com os prognósticos dos modelos numéricos nos três dias precedentes, tentando identificar qual modelo estava projetando com mais acurácia o que as imagens de satélite documentavam como tempo real, tanto em precipitação quanto em nuvens (altura da base e do teto e porcentagem cobertura do céu). Ao final, na minha interpretação, o ECMWF apresentava maior acurácia e passei a basear a revisão final dos equipamentos no prognostico do modelo europeu.
Discutiu-se também o alerta quanto à possíveis tempestades que contemplava a área pela qual trilharíamos. Como sei que esse alerta cobre grandes extensões, fiz mais algumas verificações no próprio dia da partida e ainda umas vezes durante a viagem, antes de iniciarmos a trilha. Não me agrada a ideia de ser surpreendido por uma tempestade numa travessia por cristas, principalmente pelo risco das descargas elétricas.
Com a desistência de 25˚ hora do Rafael que levaria até o Tatuapé a barraca que eu usaria, a Amanda me emprestou outra barraca dela, novinha de tudo e super leve para concluir a arrumação da minha cargueira. Com a tranquilidade de dispor de uma barraca na mochila, deixei o saco de bivaque que havia colocado como segurança. Partimos do Tatuapé dentro da tolerância prevista de 15 minutos, fazendo duas paradas para lanches e banheiro e chegamos 6h20 no ponto de inicio da travessia. Fiz os últimos ajustes, vesti a cargueira e 6h28 toquei estrada acima, cometendo o primeiro erro de navegação dessa travessia, enquanto seguia o passo rápido de dois atletas do grupo. Alertado pela Fernanda, retornamos sobre nossos passos e tomamos a trilha sinalizada por uma placa de madeira, que partia à esquerda em suave aclive. Um fraco chuvisco nos acompanhava nesse momento e houve, acredito, quem pensou mais uma vez em deixar para lá essa historia de subir montanha com tempo instável.
Subindo em passo moderado, em alguns minutos o aquecer dos músculos nos fez parar para reduzir a quantidade de camadas de roupas.. No meu caso, retirei a primeira camada, mais quente e espessa, ficando com a camada principal e acessória. O chuvisco parara, mas a vegetação nos encharcada as roupas ao roçarmos. Mantivemos esse ritmo moderado, fazendo curtas pausas para recuperar dos fôlegos, apreciar a paisagem, registrar em fotografias imagens esmaecidas das belezas nosso olhar descortinava, conforme o vento varria as nuvens e, paulatinamente, o cinza pálido cedia lugar ao azul celeste de um dia tipicamente primaveril. Ao passarmos pelo Mirante da Cuca, aproveitamos para um rápido petiscar, às 8h. Ao retomarmos o caminhar, aproveitei para tomar a frente e percorrer as próximas centenas de metros atento a eventuais zumbidos, pois lera sobre uma colmeia em um dos cupinzeiros próximos.
No mesmo passo, alcançei os 1701 metros de altitude do cume do Morro da Cuca às 8h15, deixei singela homenagem ao meu irmão no livro de cume, juntamente com os dados pertinentes (data e hora, nome, de onde veio e para onde vai/objetivo, com quem está). A proteção mecânica desse livro era fornecida pelo totem de pedras erigido sobre a marmita plástica, revestida por fita Silver Tape. Foi construído um “berço” para que o livro não ficasse em contato com agua de eventual condensação. Cinco sucessivas camadas plásticas forneciam a proteção contra a entrada d’água pro chuvas. Soluções engenhosas, para problemas que nós, no Malucos da Amantikir (MDA), já nos detivemos no passado, quando das instalações dos livros das montanhas de acesso “extras”, durante a conquista da Travessia Serra Fina Full há uns bons anos.
Feitos os registros, retomei a caminhada com a Fernanda e a Leticia à frente e, quando cheguei novamente na bifurcação de acesso ao cume da Cuca, me alertaram que haviam achado. Sem entender, tratei de apertar o passo, movido pela curiosidade sobre o que teriam encontrado até alcançá-las uma trintena de metros a frente, registrando a estrela da flora local: o primeiro espécime da Flor da Imperatriz (Worsleya – Amarílis azul) da nossa travessia.
Continuamos a subir alternando trechos de lajes rochosas com campos de altitude em direção ao segundo cume da travessia, com a dupla denominação de Pedra Grande de Araras e de CEP 70, que alcançamos às 9h14. Nesse cume, não encontramos totem lítico para guarda da urna, de forma que não fizemos registro da passagem. Durante a caminhada, a laje rochosa apresentava f iletes de água que se acumulavam por vezes em ranhuras e reentrâncias. Aproveitei o canudo que portava e me hidratei em diversos pontos, poupando goles preciosos, uma vez que pretendia permanecer na crista da serra durante quase todo o trajeto. Desse cume, passamos a perder altura de forma suave, contornando o trecho mais escarpado da montanha.
Trilhava despreocupado, com a dupla dos Cabrais, Capitão e Carol, à frente baseando-se no tracklog de referência postado no grupo, quando o pessoal que vinha alguns metros atrás questionou o que representava as linhas divergentes no track que seguiam, pois havíamos acabado de passar uma bifurcação. Lembrei que, quando analisara o track “base” proposto, identificara uma outra crista, que pouparia umas duas centenas de metros de subida, mas que não apresentava registros de passagens posteriores a 2019, de forma que a trilha poderia ter-se fechado pelo reduzido uso. Para contornar isso, quando montei meu track coloquei uma ida e volta por essa crista, antes de continuar pelo trajeto “de base”. Pretendia testar esse caminho “por cima”, poupando tempo e energia, abrindo mão de acessar um ponto d’agua que esse caminho “de baixo” registrava e deixando para fazer a primeira coleta no “Rio Pequeno” entre o Palmares e o Serra das Antas Sudoeste. Acordamos testar o caminho “por cima” por alguns metros, se estivesse com a passagem obstruída pela vegetação, seria apenas questão de voltar e prosseguir pelo caminho mais longo, “original”.
Na descida do CEP 70, o Manoel e o Humberto tomaram a frente e desceram rapidamente até o colo, onde uma caixa d’agua de concreto (10h21) marca o entroncamento das duas trilhas. Nao encontramos nenhuma indicação de que estivesse sendo abastecida. Ali, os rastros batidos, à esquerda e à direita foram desconsiderados, pois nosso trajeto era em frente, crista acima, buscando o cume do Palmares. Nesse entroncamento, a trilha à direita seria nosso “caminho por baixo” e ainda mais, uma ligação com a própria área urbana. A trilha que seguia para esquerda, leva ao Poço do Braz, na parte baixa do Rio Pequeno. Nessa subida, a dupla Manoel e Humberto tomou a frente, em passos céleres. Na sequência, o trio feminino Fernanda, Leticia e Carol seguia trocando impressões sobre o processo de mapeamento das árvores de São Paulo. Procurávamos identificar o ponto em que deixaríamos a trilha principal para o ataque ao Serra das Antas Sudoeste. O primeiro rastro que encontramos nesse sentido era bastante tênue, levando a crer que o progresso seria bastante moroso, tanto nos aproximado 60 metros de descida, que por leitura incorreta minha do relevo observado, pareceram muito mais, quanto nos quase 400 metros subida. Nossa estimativa foi de que aquele ataque nos custaria pelo menos 5 horas entre ida e volta. O Manoel que, a exemplo de Hermes tem asas nos pés, levou 1h30min no ataque. O Humberto o acompanhou até metade da subida e ao voltarem, informam de que o rio Pequeno ao ser cruzado, no talvegue do vale, ali corria subterrâneo, inacessível sob as rochas, ainda que claramente audível. Descer apenas para coletar água, como chegamos a cogitar, teria sido um grande erro.
Não vimos as cargueiras da dupla Manoel e Humberto que seguiam à frente. Desci uma trintena de metros, observando os tênues rastros de passagem pregressa e avaliando o quanto seria delicada a navegação no retorno, caso uma das muitas nuvens que tomavam parcialmente o céu fosse arrastada a região do vale ou mesmo da crista. Ponderados os prós e contras do ataque, optamos por seguir em frente, poupando água e energia. Pouco à frente, em um rastro bem batido à esquerda, encontramos as cargueiras da dupla Manoel e Humberto, tornando claro que ambos partiram em ataque ao primeiro cume opcional dessa travessia. Como já havíamos ponderado a respeito e decidido por abrir mão desse ataque, prossegui pela trilha principal, subindo mais alguns metros antes de enfrentar o lance mais arriscado dessa travessia: ligando o falso cume do Palmares ao seu cume propriamente dito, uma espéciede ravina, criada pela erosão. Para descer a base da ravina, utilizei dois pequenos degraus na terra, ao lado direito. O solo seco, bastante fragmentado se desfazia sobre o peso. Também não encontrei ponto confiável para as mãos, pois o pequeno arbusto à direita tinha suas raízes expostas. Optei por descer de costas para o precipício com a máxima atenção ao terreno, soltando o peso sobre o solo, com extrema gentileza, tão próximo da encosta quanto possível. Mesmo assim, senti que parte do montículo de terra se desfez sob meus pés, escorregando para o vazio, uma vintena de metros abaixo. Na base da ravina, testei as passagens à esquerda e a direita, para refutar ambas como inviáveis, fosse pela exposição, fosse pela necessidade de equipamentos de que não dispúnhamos.
Restou uma passagem costeando a face esquerda, com razoável exposição, mas que apresentava bons pontos de apoio. Com cautela, superei a sucessão de passagens técnicas e logo estava no platô do cume. Ao partir do falso cume, eu pretendia fazer o ataque à Pedra Azul, mas a exposição dos lances que acabara de vencer me fez alternar de propósito e, deixando a cargueira no platôzinho de cume, retornei sobre meus passos para apoiar os colegas. Por uma dezena de vezes refiz a descida do cume para a ravina, auxiliando nas passagens mais delicadas, fosse descendo primeiro as cargueiras, fosse ancorando a própria pessoa, utilizando uma agarra que existe em nível mais baixo, à direita.
Repeti o lance de “canaleta” tantas vezes que a acabei por pegar “a manha” dele, superando a passagem como se fosse algo bem mais trivial que realmente era. Conforme o corpo principal do grupo se deparava com a ravina, montamos sucessivas equipes para transpor os obstáculos com segurança, em pares, duplas ou trios. Consideramos a estatura e desenvoltura dos colegas que ainda não havia nos alcançado, concluído que seria mais conveniente e seguro aguardarmos que todos superassem esse trecho antes de avançarmos. Dessa forma, fiquei com a Fernanda, a Leticia, o Humberto e o Davi na tarefa de receber, orientar e apoiar os que chegavam. Fizemos alguns registros do Manoel na encosta do Serra das Antas Sudoeste, para depois aguardá-lo pelo que nos pareceu uma eternidade até que nos alcançasse. Fechando o grupo, o Caio Kenji e o Denis Gois.
Com todo o grupo do “lado de cá” da ravina, vesti novamente a cargueira e subi os últimos metros até o cume do Palmares, onde fiz o registro de passagem do nosso grupo de fechamento (eu, Fernanda, Humberto, Manoel, Paulo e Letícia) no livro de cume às 13h30 e passei a descer em direção ao colo entre o Palmares e o Serra das Antas. Na descida desse trecho, deixamos passar uma pequena declinação para a esquerda, de forma que precisamos subir uma dezena de metros em vara mato, pra recuperar o rastro mais aberto, já nas proximidades da derivação para a gruta e saída pela Estrada do Grotão, na parte baixa da serra.
Após o colo, iniciamos a longa ascensão do Serra das Antas, pela sua face sudeste, ao longo da subida, observei a presença de água em muitas bromélias à beira do caminho, até que decidi testar o consumo, enquanto ainda dispunha de pouco mais de um litro d’agua. Surpreso com o frescor da água assim coletada, ainda mais palatável que supunha, dividi a experiência com a Fernanda e o Paulo Capote, que fariam escola no dia seguinte. Ao longo da subida, foram muitas os acessos às rosáceas para me hidratar. Acredito que ali, tenha sorvido pouco mais de meio litro.
O sol agora incidia sem nenhuma barreira e a sensação de calor cresceu consideravelmente. Procurávamos fazer as paradas para recuperar o fôlego sempre sob a sombra dos arbustos. Numa das paradas, a Letícia sacou de sua mochila suculenta mexerica ou bergamota e a Fernanda reportou o encontro de um grande carrapato passeando tranquilamente em sua mochila. Ao alcançarmos o falso cume, seguimos o rastro bastante pronunciado por uma trintena de metros até que, ao perdê-lo após um trecho de campo, verificamos que havíamos dobrado à direita sem que fosse necessário. Rapidamente retomamos sobre nossos passos e corrigimos a direção.
Agora, tínhamos visual da dupla Manoel – Humberto que faziam a subida da primeira laje rochosa após o ponto d’água na base da última encosta do Serra das Antas. Encontramos duas grandes poças com fartura d’água, transparente e fresca, que tratei de aproveitar para retornar meu inventário à sua máxima capacidade. Cedi pouco menos de meio litro de H2O! limão para a Fernanda, bebi o que sobrara de água e mais uns 500 ml de um preparado para recuperar a cartilagem dos joelhos. O Caio ofertou, e aceitei, dois pedaços de maçã, submetidos a diferentes processos de desidratação.
Com o inventário completo, a cargueira retornou ao seu peso máximo e a retomada do caminhar, encosta acima, foi em passo lento, conforme os músculos aos poucos tornavam a se aquecer. Poucos metros à frente, uma longa rampa rochosa testou n ossas panturri lhas e determinação exigindo cautela nas passadas e confiança no “grip” das solas na rocha. Ao final desse lance, o desenho do caminho realçado pelo contraste de coloração amarelo/marrom do musgo nos surpreendeu com sua beleza singular.
Retomamos a caminha encosta acima, aos poucos nos aproximando do cume, alcançado às 16h. No cume, tratamos de organizar o acampamento, com as barracas lançadas sobre os trechos planos do cume. Apesar de amplo, a área de acampamento do cume não comporta muitas barracas próximas, de forma que nos espalhamos nos locais mais adequados. O Danilo montou um sistema de tenda, sem piso e o Davi um bivaque abrigado pela vegetação. As demais barracas eram de configuração mais usual, autoportantes. Por precaução, espequei meu abrigo em todos os pontos possíveis, considerando possíveis rajadas de vento durante a noite.
Ao chegarmos no cume da Serra das Antas, a Maria Comprida estava envolta em brumas, de forma que não tivemos, naquele momento, visual para a pernada da manhã de domingo. Fiz os registros no livro de cume, apreciei um pouco a paisagem conforme as nuvens eram arrastadas pelos ventos, descortinando montanhas e vales ao redor. Preparei um jantar quente, com sopa cremosa de mandioquinha, purê de batatas acompanhado de legumes desidratados na manteiga e chá quente. Dei um gole no excelente vinho que o Humberto, precavido levava. Pouco após o pôr do sol, me recolhi para dormir, supondo que acordaria na madrugada, pelo fato de deitar tão cedo o que, felizmente, não aconteceu.
Dia 2
Acordei pouco após as 5h, vesti o tênis, lanterna e uma capa de chuva para proteger a jaqueta de pluma da condensação nos arbustos que cresciam para a trilha pequei pazinha e papel e tratei de buscar um ponto adequado meu buraco matinal, encontrado num mirante para a Maria Comprida que começava a se destacar contra o arrebol do dia que nascia. Ali, o solo fofo e profundo, ainda que com bastante raízes permitiu uma bela e eficiente escavação.
Retornei à barraca, tratei de proteger o saco de dormir, a jaqueta de pluma e as roupas de dormir com os sacos plásticos, antes de preparar o café da manhã, com chocolate quente, torradas com manteiga e mais purê de batatas. Escolhi cuidadosamente o que levaria para o ataque matinal, deixando o que julguei menos essencial na barraca. Nos bolsos, levei 500 ml d’agua, uma barra de proteína, canivete e apito, comunicador / rastreador satelital e 3 doses de cloridrato de ciclobenzaprina. Com receio de que o celular caísse do bolso, pedi que a Leticia o levasse em sua mochila de ataque.
Parti do acampamento às 6h35, descendo pelo rastro batido a partir da região da caixa do livro de cume, para logo perceber que a trilha se fechava ali, e o caminho percorria a crista à esquerda. Enquanto retornava, alguns metros acima, o Davi passou a puxar o grupo de assalto, identificando os rastros de passagens anteriores. No afã de andarmos rápido, deixamos escapar um rastro mais limpo à direita e fizemos cerca de 50 metros em vara-mato de campos de altitude e bromélias até encontrar o rastro batido que chegava pela direita e passarmos a perder altitude de forma mais consistente até a região dos cabos de aço, instalados como corrimão e direcionadores de direção para os lances de grampos na face leste do colo Serra das Antas x Maria Comprida.

Como seguia à frente, após o vara-mato, buscando o trilho que conduziria para o único ponto de passagem possível, em trekking, na encosta vertical da face leste da Serra das Antas. Ali, uma sucessão de lances verticais de grampos engastados na rocha, conectados por lances horizontais de grampos e cabos de aços permitia o acesso ao colo entre a Serra das Antas e a Maria Comprida. Todos, à excessão do último degrau na descida, estavam perfeitamente engastados e firme sem ambas as extremidades. No último grampo, já com a encosta menos íngreme e fazendo fronteira com o começo do trecho vegetado, a extremidade direita do grampo desprendera a rocha, talvez pelo diferencial de dilatação térmica entre a parte protegida pelo solo e a parte exposta ao sol. De qualquer modo, não prejudica em nada o acesso. Confesso que só notei esse detalhe na volta, enquanto retomava o fôlego para o primeiro lance de grampos verticais da subida. Um detalhe que convém ter em mente é que os cabos de aço dos lances verticais e horizontais são solidários, de forma que ao puxar um deles, o outro “responde”. Basta permanecer atento, para que o eventual movimento do cabo por outro montanhista não cause surpresa ou desequilíbrio.
Superado o lance dos grampos, registrado em alguns relatos como “Via Ferrata das Antas”, a descida continua pela encosta vegetada, em grau menos íngreme até alcançarmos o trecho de florestinha de colo, passando a subir as duas corcovas que dominam o colo entre os dois gigantes de pedra. Nesse trecho, conhecido como Camelo da Maria Comprida, alguns lances de escalaminhadas exigem alguma desenvoltura, mas em escala muito menor que o trecho já na encosta da Maria Comprida.
Ao aproximarmos da rocha, passamos a contorná-la para a esquerda, descendo um pouco até alcançarmos a entrada da Passagem Leander, conquistada em 1934, apenas dois anos após a primeira ascensão ao cume da Maria Comprida pelo Emérico Hungar, 1932. Essa passagem, descoberta por um montanhista na face oeste do imenso monólito segue uma canaleta com vegetação, com cerca de 6 lances de escalaminhadas mais delicadas, onde a presença de cordas fixas auxilia a transposição. Por precaução não utilizei as cordas, mas todas denotavam estarem em boas condições, pelo menos numa avaliação visual e leiga.

Superados os lances de maior exposição, continuei a ganhar altitude, agora pelo extenso platô da parte alta da pedra até que, às 8h26 alcancei o cume. Aos poucos os outros atacantes foram chegando: Paulo, Manoel, Humberto, Letícia, Denis, Fernanda, Caio, Cleicimara, Juliano, Ricardo e Davi. A Fernanda, ao chegar, tomou um longo gole da água que deixara com o Manoel. Por erro, deixara um insumo crítico fora de alcance na ida. Por insistência nele, faria o mesmo na volta. O Paulo me questionou se eu trazia comigo o canudinho para coleta d’água. Entendi que estava sem e lhe cedi alguns goles. O Humberto, que já surpreendera com o vinho na véspera sacou outra preciosidade de suas tralhas: uma garrafinha de Coca-Cola! Seria falsear a verdade afirmar que estava gelada, mas garanto que estava primorosa, fresca e doce, pois certamente são poucos os que tem o prazer de degustar uma coquinha com a paisagem que nos envolvia. Registramos cuidadosamente nossa passagem nos livros de cume, protegidos por 5 camadas de sacola plástica, às quais adicionamos mais uma. O Humberto deixou na urna, para troca, uma moeda de 1 real, recuperada no Vale da Morte, em Paranapiacaba. Levamos conosco uma pulseira, em macramê. Cogitei deixar o apito, pois dispunha de outro na mochila, mas como não havia outro apito com o grupo, não quis tentar a Lei de Murphy. Ficamos quase uma hora apreciando a exuberância da paisagem descortinada a partir do cume, antes de iniciarmos o retorno, às 9h11.
O retorno não foi muito mais célere, pois apesar de já conhecermos o trajeto, os lances mais delicados e expostos foram percorridos “para baixo”, o que adicionou certa dificuldade para superá-los. No retorno ao acampamento, a Cleicimara e o Juliano partiram um pouco antes, logo alcançados pelo Manoel e pelo Humberto.
Eu desci dando
segurança à Fernanda nos lances mais expostos. A pós alcançarmos a florestinha de colo, o Davi tocou em frente e eu prossegui poupando folego e água junto com os demais até o início do lance dos grampos, quando após fazer uma pausa para retirar a camiseta azul, para ajudar na refrigeração e sugerir que fizessem similar, amarrando a blusas às cinturas, ouvi um “fala e anda”. Um pouco chateado, segui o pedido encosta acima. Ainda dispunha de uns 100 ml de agua, para o trecho onde o desgaste seria menor, por ser menos íngreme. Do lado de cima, logo após o trecho dos cabos de aço de direcionamento encontrei o Davi, a quem cedi um gole d’agua, antes de continuar a caminhada até o acampamento, alcançado às 10h57.
No retorno, a Fernanda acabaria por se servir da água das bromélias, pois o Manoel seguira à frente, novamente com toda a água que restara na garrafa de ataque dela. Certamente, o repetir do erro da ida secou-lhe os lábios e apertou-lhe a garganta. Como na vida não há aleatoriedades, mas relações causais por nós ignoradas, o teste descompromissado da véspera trouxe segurança para o saciar a sede na rosácea da bromeliácea, sem tolos pudores, como o singelo registro da Leticia documentou para a posteridade.
Novamente reunidos no acampamento, desmontei e arrumei as tralhas e tratei de identificar o rastro que nos levaria ao colo Serra das Antas x Monte de Milho, enquanto os menos ágeis no arrumar das cargueiras f inalizavam os preparativos de partida. Esse procedimento rendia ao grupo abreviar em alguns minutos a caminhada, pois é frequente que o pessoal menos célere numa etapa compense em noutra. Logo alcançamos uma laje rochosa, por onde prosseguimos com cautela, respeitando a forte inclinação que obrigava alguns a fazerem o descenso em 5 apoios. Ao longo da descida, o Davi tomou a frente e pedi que conferisse se não havia uma saída à direita, que nos tirasse da rampa antes de alcançarmos a matinha. Com o positivo dele, todos tocamos para a saída, onde a descida pelo trecho de campos de altitude, ainda que íngreme, nos poupou bastante tempo e esforços.

Concluída a descida até o colo, restava apenas a última subida expressiva do dia, cerca de 100 m de ganho até o cume do Morro do Milho. Próximos do cume, fizemos uma pausa para registrar a beleza do vale à nossa direita. Sentei-me uma dezena de metros adiante para aguardá-los e apreciar a paisagem e notei dois conjuntos de pequenos pontinhos em movimento. Um trio, saindo do trecho de mata do colo: Caio, Denis e Rodrigo. Na sequência uma surpresa: a dupla Cleicimara e Juliano, que eu descobriria mais tarde, terem “deixado escapar” a tal saída à direita da laje rochosa do Serra das Antas, descendo pela matinha e não pelo campo. Apesar do infortúnio deles, fiquei feliz por alguém ter testado o erro que eu havia suposto existir ali.
A descida da face nordeste do Monte de Milho inicia com uma longa e íngreme rampa rochosa pela qual fomos perdendo altitude cuidadosamente. À nossa volta, um extenso campo de Flores da Imperatriz e orquídeas insistia em nos desviar o olhar do passo seguinte. Alguns optaram por repetir o uso da frenagem com 5 apoios. Após perder altitude de forma vertiginosa, quase 630 m em pouco mais de 1 km, alcançamos uma região de campos, desenvolvendo uma velocidade maior. Um atalho à esquerda nos passou desapercebido e, ao constatar o engano, retornamos uma vintena de metros para corrigir, afinal não bastava cruzar a serra: precisávamos que todos chegassem ao mesmo 5 km ponto, para resgate.
Deixamos a mata e alcançamos uma discreta estrada de terra, pela qual caminharíamos cerca de 7 km ainda. Mantivemos o passo apertado, visando minimizar, no possível, o atraso para iniciarmos o retorno a São Paulo. Faltando cerca de 2 km para o ponto de encontro e com exíguos 10 minutos para vencer o prazo fomos alcançados pela van. Esta, sob o comando do grupo que não fizera o ataque do dia, partindo mais cedo do acampamento, subia em nossa direção.
Como a van precisaria manobrar e havia alguns colegas mais acima, na estrada, acordou-se que ela subiria para buscar os retardatários, enquanto nos aguardaríamos para embarcar na volta. Aproveitamos o tempo de espera para um banho de gato com lenços umedecidos e agua das garrafas.
No retorno da van, percebemos que faltava o Manoel e o Humberto que desciam à nossa frente. Estavam com uma boa vantagem em relação ao nosso grupo, o que não permita supor que estivessem às nossas costas, a região não era propícia para erros de navegação mais custosos de desenrolar. Como a van chegara alguns minutos antes das 15h, necessariamente deixara o ponto de encontro antes de esgotado totalmente o prazo, de forma que o mais provável era que houvesse ocorrido um desencontro. Com isso em mente, embarcamos todos e seguimos para o ponto de encontro, onde a dupla, tomava banho de cachoeira, juntamente com o Davi.
O desencontro ocorrera quando o trio, sabendo que dispunham de boa vantagem, optara por uma curta exploração num trecho do Maria Comprida, até um pequeno poço. Fizemos uma rapidíssima incursão de banho nas águas da Cachoeira da Rocinha, trocamos de roupas e tocamos para SP, com apenas uma parada para jantar e banheiro. Chegamos no Tatuapé às 23h30. Às 2h estava em Santos, de banho tomado e pronto para aproveitar a maciez dos lençóis.
Alguns pontos que me são importantes:
1. nome da montanha de maior destaque e portanto do própria MONA parece provir de uma messalina de origem portuguesa, de longas pernas e negra cabeleira, em contraste com as “polacas” e “francesas” de então. Uma discussão mais acalorada com uma nega “crioula” resulta em voz de prisão por um guarda. Na tentativa de escapar deste, é colhida por um expresso, com o limpa-trilho do trem lhe amputando uma das pernas, falecendo após alguns dias. Daí o tal “Saci da Maria Comprida”. Fonte Instituto Histórico de Petrópolis – tosca síntese minha (há outras hipóteses, escolhi essa… que a posteridade, perpetue a oprimida e relegue à obscuridade o opressor);
2. agradecer, em nome dos Arcanjos e de muitos outros montanhistas anônimos que privam dos caminhos mantidos pelo Centro Excursionista Petropolitano na pessoa de seu sócio Marcelo de Figueiredo (instalação dos sacos de ráfia para conter a erosão na passagem Leander) – certamente é um trabalho de muitos outros, ao longo de anos;
3. reconhecer a importância do Monumento Natural Estadual da Serra da Maria Cumprida (MoNa Maria Cumprida) para a preservação do patrimônio cênico, da f lora e fauna singulares dessa região. A gestão atual (a lei que instituiu é recente, de 2022) tem certamente imensos desafios. Foi muito legal ler, nos livros de cume, o somar de esforços de montanhistas e voluntários em algumas iniciativas, como a própria troca dos livros. Todos os livros que encontramos estavam abrigados sob totens líticos, protegendo as urnas plásticas da sol. Pelo menos 5 camadas de sacos ou sacolas plásticas envolviam as urnas, protegendo da umidade os livros. Deixamos uma adicional na urna da Maria Comprida, pois a primeira camada apresentava alguns rasgos.
4. Registrar o crédito das fotos e imagens aqui inseridas: Ana Nascimento, Caio, Cleicimara, Denis, Fernanda (Sparta!), Humberto, Leticia, Manoel Matheus, Paulo Capote, Ricardo Bianchetti, Rogério Alexandre. é isso. Forte abraço e nos vemos nesse mundão libertário que irmana a todos nas montanhas.


























1 comentário
Boa noite! Meu nome e Anderson Fidelis e eu fui o responsável pela montagem da ” Via Ferrata Terra Vertical” na serra das antas. Teria como colocar o nome correto da Via na matéria?
Muito obrigado, caso queira qualquer outra informação estou a disposição
(24)999574466