Tributo à Ricardo Baltazar

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Neste mês de agosto de 2014, fomos todos surpreendidos com o trágico falecimento do amigo Ricardo Baltazar de Oliveira, o grande Rato. Foi uma notícia muito triste para os que o conheciam e para o montanhismo brasileiro também.

Texto: Eduardo Prestes Nácul (Naca)

As informações dão conta que ele foi encontrado, já sem vida, no Cânion Malacara, sem ferimentos graves aparentes, numa área relativamente próxima da Pousada Pedra Afiada, onde trabalhava como guia autônomo. No local, existem umas piscinas naturais e a trilha é tranquila, ainda longe das áreas mais expostas dentro do cânion. Ele havia rumado para lá sozinho, na quarta-feira (dia 6), e foi encontrado por uma equipe de resgate mobilizada especialmente para isso. No entanto, não é meu objetivo abordar este triste acontecimento. Escrevo para registrar aqui uma modesta homenagem ao amigo e ao grande escalador que foi o Ricardo, no site em que foram contadas algumas de suas histórias mais “cabeludas”, na Patagônia e no Peru. O Ricardo será sempre um membro honorário da equipe do Alta Montanha e um grande amigo no coração de todos os que o conheceram.

Antes de continuarmos, um esclarecimento. Apesar dos amigos, desde sempre, o tratarem por “Rato”, nos últimos tempos ele preferia assinar seus textos apenas como “Ricardo Baltazar“, sem o famoso apelido. Escolhi respeitar a vontade do homenageado, dando preferência ao nome em detrimento do apelido. Mas, de vez em quando, é inevitável que eu o trate por “Rato” no texto. Afinal, era assim que a maioria dos amigos o chamava e acho que isso nunca iria mudar.

Eu certamente não sou a pessoa mais indicada para discorrer sobre a biografia do Ricardo. Como tenho morado longe do Rio Grande do Sul, conversamos pouco pessoalmente nos últimos anos, com muitos contatos por mail, necessariamente breves e sobre assuntos específicos. Ele circulava em diferentes ambientes e deixou incontáveis histórias para serem relembradas por amigos e familiares. Desde já, desculpou-me com os muitos amigos que foram esquecidos aqui, especialmente aqueles que conviveram com ele em Praia Grande/SC, onde o Ricardo passava uma boa parte do ano. Eu conheço apenas uma pequena parte de suas peripécias. De qualquer forma, tomo a liberdade de contar um pouco do que sei aqui no Alta Montanha, como uma homenagem. É meu sentimento de que o Ricardo merece mais do que uma simples nota de falecimento.

Conheci o Ricardo em Torres/RS, no final dos anos 90, entre o pessoal que escalava nas belas falésias de basalto à beira-mar. Esta época já rendeu boas histórias, com o Luciano (grande parceiro), Frederico, Kalu, Jason, Fabinho e outros tantos. Eu havia construído um muro com agarras na garagem de casa e foram incontáveis noites de treino e cervejas. Vivemos um período de descobertas, boa parte das fendas e diedros em Torres nunca haviam sido escalados, então a gente focava em diferentes linhas, até dominar os movimentos (ou quase isso, na maioria dos casos).

Ricardo Baltazar – Solando nas falésias em Torres, uma extensão de sua casa. – Fonte: Arquivo pessoal

O Ricardo cresceu na comunidade de Campo Bonito, distante do centro de Torres, um ambiente tranquilo e com vista para a serra. Mesmo sendo ainda um moleque, com uns 16 ou 17 anos, ele já possuia uma grande experiência nos cânions da região, na divisa entre o RS e SC. Esta foi a sua escola de montanhismo, que marcou o seu estilo e da qual nunca se afastou. Um aprendizado feito com equipamentos escassos, paredes úmidas, muita lama, cachoeiras, rapéis sucessivos em paredes monumentais, paradas precárias em arbustos, pouca comida, longas caminhadas e enxurradas ameaçadoras. Como ele me disse algumas vezes, nos cânions, depois de puxar a primeira corda, não tem mais volta, a única saída é por baixo. É um ambiente em que o risco está sempre presente e precisa ser administrado. Foi essa experiência nos cânions que facilitou posteriormente sua adaptação a outros ambientes também exigentes, como o Marumbi ou a Patagônia.

Ele nunca deixou de considerar os cânions a sua casa, a sua maior referência. Podia discorrer horas sobre o Josafaz, Índios, Churriado, Fortaleza, Malacara, Itaimbezinho, Monte Negro e outros. O acervo de histórias era inesgotável. São cerca de 64 cânions na região e ele tinha intenção de cruzar todos eles. Deve ter chegado perto disso. Também explicou-me um dia que existem as gargantas, formações curtas, com linhas de rapéis mais altas e diretas, algumas delas grampeadas. Um dos grandes parceiros dele neste início nos cânions foi o Kalu, amigo de Torres e um escalador talentoso. Ele viria a falecer também no Malacara, num acidente ainda na década de 90, uma queda durante um rapel em uma das muitas cachoeiras do cânion.

Nesta época, eu morava em Florianópolis, trabalhando com os amigos, sem horários fixos. O Ricardo passou umas temporadas por lá, onde escalamos no granito da ilha e arredores. Ele evoluiu rapidamente na escalada livre, enquanto eu prestava o apoio “acadêmico”, discorrendo sobre sistemas de segurança, material móvel, etc. Em 1998, convidei-o para um projeto meio maluco, a conquista de uma torre de arenito na Serra do Corvo Branco, em Santa Catarina. Foram várias investidas até chegarmos ao cume. Mesmo com a baixa qualidade da rocha, lisa e quebradiça, o aprendizado em uma parede de maiores dimensões foi intenso. Dormimos algumas noites pendurados em redes, o que teve efeitos inesperados no cara, que costumava acordar berrando, saindo de algum pesadelo. A via revelou-se um longo artificial fixo, com alguns trechos de peças móveis, até a sexta e última cordada, quando o Ricardo assumiu a ponta. O resultado foi um esticão de 40 metros em livre, sem qualquer grampo intermediário, apenas umas 2 costuras precárias em arbustos. Quando me juntei a ele no cume, perguntei: “Você tá doido, Rato ? Nem um grampinho, um friend ?” E ele meio displicente: “Ué, foi mole, isso aí a gente faz direto nos cânions”.

Ricardo Baltazar – Uma foto conhecida, em seu primeiro cume patagõnico, a Guillaumet, com o Fitz Roy ao fundo. – Fonte: Arquivo pessoal

Nosso próximo projeto foi um imponente headwall de basalto quebradiço, visível a partir da base da aeronáutica no Morro da Igreja, em Urubici/SC. O acesso seria feito por cima da serra, descendo dali até a base da parede de uns 250 metros. Quando combinamos a primeira investida, o Ricardo falou que não iria conosco no carro, pois iria passar antes na casa de uns parentes em Orleans, e depois subiria a encosta com a mochila. Os únicos probleminhas seriam os 20 km de Orleans até a serra e mais uns 1400 metros de desnível do vale até planalto serrano, numa área remota e sem uma trilha evidente. Para completar, choveu muitos nos dias anteriores à data combinada. Quando estávamos a ponto de desistir, o tempo abriu. Sem contar com o Ricardo, seguimos eu e o Luciano para Urubuci. Chegando ao final da estrada, junto ao portão da aeronáutica, percebemos que onde deveria haver um vale verde, existia um lago. Estava tudo inundado na base da serra e Orleans estava em estado de calamidade. No planalto, entretanto, estava tudo mais ou menos seco, e nossa investida prosseguiu. No segundo dia, voltando para o campo-base, eis que chega o cara, preto de lama. Ele atravessou a enchente, subiu a garganta do Morro da Igreja para o lado errado, venceu diversos escalões de rocha ao lado de cascatas, até ser barrado por uma parede intransponível. Desceu pelo mesmo caminho e atacou uma outra crista, que o acabou conduzindo até a Pedra Furada e a base da aeronáutica, de onde saiu escoltado pelos guardas. Foram 3 dias perdido na lama e no mato. Nem consigo imaginar os horrores que o cara enfrentou, sozinho, como se fosse uma trilha de aproximação … Ainda teve fôlego para encontrar um acesso até a base da nossa parede e em seguida conquistar uma agulha de basalto nas imediações, acessível por uma crista afiada e cercada por abismos intimidadores. Esta última escalada ele fez solando, por puro tédio, enquanto eu batia uns grampos na primeira cordada da via. Perto destas odisséias do “pirambeirismo”, feitas no mais puro “estilo livre”, nosso projeto original, cheio de grampos e friends, ficou parecendo uma “escadinha” …

Progressivamente, fui me ocupando com trabalhos em escritório, o que me afastou um pouco das montanhas. Passei a acompanhar as escaladas do Ricardo pelas conversas, nos raros encontros. Quem conheceu o figura sabe o quanto era difícil tirar dele uma história completa. Ele definitivamente não gostava de alardear seus feitos. Confessava uma coisa ali, outra acolá, e a gente ia montando o quebra-cabeças, entendendo o que havia acontecido. E quando encontrávamos uma outra testemunha, via de regra descobríamos que a coisa toda era bem pior do que ele havia sugerido.

Ricardo Baltazar – Rato voando no headwall do Cerro Torre, na última cordada da Via do Compressor. – Fonte: Arquivo pessoal

Em torno de 2001, o Ricardo passou a trabalhar como guia na região dos cânions, de forma autônoma e também em parceria com o Neyton Reis, dono da Montanha Equipamentos. Foram várias travessias de cânions com o “Neytão”, conduzindo clientes. Anos depois, Ricardo chegaria ao cume do Cerro Torre dentro de um anorak amarelo da Montanha Equipamentos, já bastante gasto, mas certamente envergado com orgulho e gratidão. A empresa foi o seu primeiro e mais constante apoiador e patrocinador. Nas conversas, qualquer menção ao Neyton sempre vinha acompanhada de um sorriso. Outro incentivador e parceiro de várias escaladas e trabalhos foi o Orlei Jr., um montanhista com uma extensa lista de serviços prestados para o esporte gaúcho e brasileiro.

Ricardo morou por um longo período no famigerado  “garajão”, um anexo no fundo de uma casa na Praia da Cal, em Torres, a cerca de 50 metros do mar e a 300 m das falésias do Parque da Guarita. A casa pertence a um amigo, o Telo, que costumava aparecer nos finais de semana. Entre um trabalho e outro como guia nos cânions, o Ricardo estacionava no “garajão”, treinando muito na rocha ali perto. Não demorou para ele conseguir mandar sétimo grau a vista e oitavo após algumas tentativas. Entretanto, ele nunca foi um escalador de graduação elevada, esportivo, seu foco sempre esteve na escalada tradicional. Sendo preciso um pé no grampo ou agarrar uma macega, era pra já, sem remorsos. Foi um período em que ele escalou muito bolder em Torres e mandou alguns solos de respeito, em paredes de até 40 metros.

Ao longo da década de 2000, Ricardo empreendeu três tentativas no Aconcágua, no final do verão, para escapar do pagamento da licença do parque. Na primeira delas, foi com seu amigo e parceiro de Praia Grande/SC, o Kaloca. A aproximação até Plaza de Mulas foi feita com um tênis All Star e, dali em diante, o Rato contava com uma bota Snake muito surrada, sem crampons, para alcançar o topo. Até onde sei, não foram muito alto na via normal, mas tentaram. Na segunda temporada, o Ricardo foi sozinho, alcançando o Refúgio Berlin, para muitos a última parada antes do cume (mais ao alto, existe ainda o Refúgio Independencia). Todavia, durante a noite, um parceiro que o acompanhava na rota passou mal, e Ricardo desistiu do cume para assisti-lo no retorno. Outras tentativas foram frustradas pelo mau tempo. O Aconcágua ficou como uma história mal resolvida e ele sempre falava em retornar. Sobre isso, comentou uma vez que “a espinha da tainha só desce da garganta com farinha, mas um dia sai”. Com a sua evolução técnica, no entanto, o objetivo havia se deslocado da rota normal para o Glaciar dos Polacos (mais especificamente, uma via chamada Falsa Polacos) e, mais recentemente, para a Face Sul. Ao final, no entanto, o Aconcágua ficou como um cume que ele não conseguiu alcançar.

Além do Aconcágua, Chaltén e Cordilheira Branca, Ricardo escalou também em outros locais na América do Sul, como Los Gigantes (Córdoba, em 2007) e Mendoza (Arenales, Vallecitos). Em Córdoba, foi brindado com muita chuva e poucas escaladas. Em Mendoza, Ricardo tinha incontáveis amigos e sentia-se em casa. No Cajon de Los Arenales, sempre lembrava da via “Mejor no Hablar de Ciertas Cosas”, uma linha tradicional com cerca de 500 m na Aguja El Cohete.

Ricardo Baltazar – Rato no cume da Innominata, sem camisa e sem juízo. – Fonte: Arquivo pessoal

Junto com amigos, Ricardo ajudou a desenvolver um setor de escalada na região dos cânions, em uma imponente testa de rocha no topo da serra, conhecida como Pedra Branca, na área rural de Praia Grande/SC. São vias em basalto, com até 140 metros e estilo tradicional. O acesso à parede é feito por uma trilha, que exige umas 2h30m de caminhada pesada. A atuação do Ricardo nas montanhas foi mais voltada para a repetição de vias já existentes. Na Pedra Branca, foi uma das raras oportunidades em que participou da consolidação de vias equipadas, sendo um local pelo qual ele tinha um apreço especial.

Trabalhando como guia, conduziu um casal de espanhóis até a Pedra Branca, para escalar. Eles sentiram a pressão, mas encararam as vias e curtiram muito a visita. Isso rendeu um convite vago ao Ricardo, algo como “se for para a Madrid, procura a gente, fica lá em casa”. Aproveitando o momento, não demorou muito para o Ricardo aparecer por lá, do jeito que deu, com muita vontade e quase nenhum dinheiro no bolso. Depois de umas 2 semanas acampado no apartamento do casal, para não abusar da hospitalidade, o Ricardo despencou para os diferentes setores de escalada esportiva, nas imediações de Madrid. Morando na barraca e em cavernas, o cara foi esticando a estadia, treinando muito e fazendo amigos. Foram 90 dias escalando e sobrevivendo, até ele dar a missão por encerrada. Na retirada, um desencontro com os amigos em Madrid acabou resultando numa festa doida à noite e um avião pela manhã, depois de muitos dias sem banho … Imagina a cena quando o homem das cavernas ocupou o seu assento no avião …

Em 2007, eu estava morando no Rio de Janeiro e, aproveitando minhas férias, convoquei o Ricardo e o Luciano para algumas investidas nas montanhas cariocas. Infelizmente, foram semanas de clima instável, alternando sol e chuva diariamente, mesmo sendo inverno. Em Salinas, acordamos com neblina fechada, mas em torno das 10h um céu azul apareceu e nós entramos na Leste. Nesta época, o Ricardo estava em um outro nível técnico, e acho que poderia ter feito os 700 metros da via neste mesmo dia, se não fosse pelas duas “malas” que se arrastavam parede acima: eu e o Luciano. Escalamos sem cair, mas numa velocidade modesta. Na 12ª cordada, anoiteceu e o tempo fechou. Descemos até um platô, antes da primeira chaminé e nos instalamos. Eu, o “teórico” da equipe, estava com lanterna, agasalho e anorak em uma mochila de ataque. Já os parceiros, maloqueiros de elite, vestiam só calção, camiseta e moleton. Começou a chover, fraco mas constante, molhando tudo. E esfriou muito, ficar parado ali era promessa de hipotermia. Eu já estava pensando como iríamos fazer uns 10 rapéis à noite com uma lanterna apenas, quando o Ratinho acendeu uma fogueirinha num buraco na pedra, começou a secar uns gravetos e a jogar conversa fora. Aos poucos, superei o “modo emergência” e a noite foi passando, enquanto catávamos gravetos e galhos no platô, para manter o fogo aceso. Pela manhã, o tempo estava fechado, mas havia parado de garoar. O Ricardo levantou, esticou os ossos e mandou: “Então, segue o baile ?” Eu olhei em volta: todos pretos de fuligem, umas olheiras medonhas, grogues de sono, molhados, uma ameaça de chuva iminente … Amarelei. “Olha Ratinho, acho que não vai dar não.” O cara só riu e disse: “São duas moças mesmo…” Descemos e, depois do meio-dia, voltou a chover.

Ricardo Baltazar – Selfie a caminho da Brecha dos Italianos, no Fitz Roy. – Fonte: Arquivo pessoal

O Ricardo era assim, tudo estava sempre tranquilo, sob controle. Na montanha, nada parecia impressioná-lo. Ele gostava de escalar com os amigos, sem distinção de capacidade técnica. A diversão valia muito mais do que o “troféu”. Passamos 15 dias na serra do RJ, sem alcançar qualquer cume, um vexame ! Mas demos muitas risadas … Outra particularidade é que ele era um exímio jogador de xadrez, dava até dor de cabeça jogar com o cara. Na escalada, ele nunca foi atraído pela competição. Mas, no xadrez, ele não gostava de perder e mantinha concentração total durante o jogo.

Um ano depois, estivemos no Ibitirati em um trio, na Mar de Caratuvas. Ele guiou até o Platô Jean Claude, mas acabamos descendo. Dali ele rumou para uma temporada no Marumbi, onde ficou pouco mais de um mês. Escalou uma dúzia de vias com o pessoal local (Chiquinho, Niclevicz, entre outros) e manifestou muita consideração pelas rotas históricas, como a Fenda Principal e a Passagem Oeste. Esta última, ele escalou 2 vezes, uma em dupla e outra sozinho, com a corda na mochila.

Ricardo Baltazar – Descansando no Ibirati, durante tentativa na via Mar de Caratuvas. – Fonte: Arquivo pessoal

Ricardo sempre fez questão de se declarar gaúcho, mantendo hábitos típicos de seu estado natal. Às vezes, nos acampamentos, disparava longas trovas gaudérias, em versos decorados e também improvisados no momento. Valorizava os locais de escalada no Rio Grande do Sul e esteve na maioria deles (Caxias, Salto Ventoso, Caçapava do Sul, etc). No Pico da Canastra, em Canela/RS, escalou sem corda uma via de uns 120 metros, chamada Bugio Solando, graduada em 6a (o vídeo está no youtube, é espetacular, muito bem editado). Depois de assistir uns videos do Dan Osman fazendo “rope jump”, montou com amigos um sistema de cordas na ferradura das falésias em Torres e se jogou, numa queda de uns 25 ou 30 metros, outro vídeo disponível no youtube.

Em abril de 2010, em mais um período de férias, convidei o Ricardo para dar uma espiada na Patagônia, sem equipamentos, apenas com o propósito de conhecer o visual e caminhar nas trilhas. Ele havia voltado há pouco de Arenales, mas topou na hora. Chamou outro amigo, o Cassiano, e rumamos os três para o extremo sul do continente. No segundo trecho aéreo, de Buenos Aires a Calafate, o avião estava um tanto vazio e o Ricardo levantou-se para sentar no fundo da cabine. Uns 5 minutos depois, dou uma espiada e vejo o figura esparramado em 3 bancos, sem camisa e tomando um Jack Daniels, recém comprado no free-shop, no gargalo, lendo umas revistas de escalada. É mole ? Nos dias em que ficamos em Calafate, o Ricardo ficava bebendo e conversando com outros boêmios no albergue, até de manhã, invariavelmente. Virou figura conhecida na cidade. Em Chaltén, fomos brindados com uma janela de 4 dias ensolarados, sem nuvens, algo raro no outono. Enxergamos o Fitz Roy, Poincenot e Cerro Torre em toda a sua glória. Encarando aquelas paredes imensas, só pude pensar que santo algum ou reza braba conseguiria me levar ao topo de uma daquelas montanhas. Já o Ricardo encarou em silêncio os paredões, pensativo, tocado pelo desafio e certamente preparando seus planos de batalha.

Ricardo Baltazar – Cavando uma cova no gelo, antes da escalada no Poincenot. – Fonte: Arquivo pessoal

Já no final do mesmo ano, voltou para Chaltén, com poucos equipamentos e quase sem dinheiro. Para se manter, trabalhou como carregador (porteador) e auxiliar na condução de grupos de turistas aos glaciares e trilhas. Aos poucos, foi criando intimidade com o ambiente e o tipo de escalada. Subiu a Aguja Guillaumet, El Mocho e Aguja de Media Luna. Fez uma tentativa na Innominata com o amigo Mike, de Mendoça, mas encontraram as paredes cobertas de verglass. No final da temporada, arriscou o prêmio maior, o Fitz Roy. Em companhia de Júlio Campanella, atingiu o cume pela Via dos Franceses. No caminho, convidaram o espanhol Ino a se juntar à equipe, uma vez que seu parceiro estava abandonando a tentativa. Chegaram ao topo na alvorada, depois de um bivaque improvisado nas alturas. Foi uma temporada de aprendizado técnico e também psicológico. No início de janeiro, havia ocorrido o acidente com o carioca Bernardo Collares no Fitz Roy, um triste fato que sensibilizou a todos em Chaltén, especialmente os brasileiros. Em locais como a Patagônia, os dramas têm outra dimensão. Essa é uma realidade implacável no montanhismo, os riscos crescem na mesma medida dos desafios.

Em julho de 2011, durante uma forte frente fria que atingiu o sul do Brasil, foi com amigos de carro até o Serra do Rio do Rastro, onde escalaram uma delicada cascata congelada, ao lado da estrada, talvez a primeira escalada em gelo feita no Brasil. Também estabeleceu com o amigo Érico Winkler uma via tradicional no Cânion Malacara, numa sequência de ribanceiras e contrafortes, até o topo da serra. Nesta escalada, Ricardo acabou tomando uma de suas piores quedas, ao despencar de um escalão de rocha por uns 10 metros, até aterrisar no platô. Machucou-se, mas conseguiram sair por cima na rota. Até onde sei, é uma linha sem grampos, feita apenas com material móvel e costura em árvores e arbustos. Outra linha do mesmo tipo foi estabelecida com o Cassiano, saindo do fundo do Cânion Fortaleza até o planalto serrano. Ricardo tinha intenção de repetir a via “Convite aos Heróis”, uma linha de 400 m em rocha dentro do Cânion Malacara, conquistada no ano de 2000 por Rodrigo Matzembacher e Sérgio Rocha, com a ajuda de Cristian Maciel dos Santos. Sempre que ele cruzava a parede onde está a via, ficava analisando suas peculiaridades. Infelizmente, este acabou sendo um projeto que ele não realizou.

Ricardo Baltazar – Selfie a caminho da Brecha dos Italianos, no Fitz Roy. – Fonte: Arquivo pessoal

Após a escalada do Fitz Roy, o Ricardo enviou um relato para os amigos, por mail. Este relato acabou publicado em alguns sites, ampliando um pouco a repercussão da escalada. Ricardo revelou-se um cativante contador de histórias, com um estilo peculiar, temperado por sua sinceridade e bom humor. Para a temporada seguinte, insisti com o Ricardo para que ele enviasse relatos da Patagônia. Ele foi resistente, pois tinha aversão a qualquer tipo de auto-promoção. Argumentei que as histórias eram divertidas e que, desta forma, os amigos poderiam acompanhar os acontecimentos. Meio a contragosto, ele topou a experiência. A parceria seria com o Alta Montanha, que apoiou a ideia e abriu espaço no site. Nas primeiras semanas, o Ricardo enviou mensagens curtas, a cada 2 ou 3 dias. Eu acumulava algum conteudo, para então organizar o material em um texto coerente e  encaminhá-lo ao site. Com o desenrolar da temporada, no entanto, os textos do Ricardo ficaram mais longos e elaborados. Acho que ele passou a gostar de escrever. Eu brincava com o Rato, dizendo que o ajudaria a escrever um livro de suas histórias, desde que não fosse somente sobre escaladas e montanhas, mas também sobre os acampamentos, noitadas e viagens. As suas aventuras nos vales e cidades se igualavam em risco com as vividas nas montanhas, eram “causos” sempre engraçados e alguns beirando o inacreditável.

Ricardo Baltazar – Batendo papo com Lui, dentro do glaciar abaixo do Poincenot. – Fonte: Arquivo pessoal

O verão de 2011/2012 marcou o auge técnico do Ricardo na Patagônia. A temporada começou cedo, em novembro, com a ascensão do Poincenot, junto com dois experientes montanhistas austríacos, Tony Ponholzer e Lui Krenn. A via escolhida foi a Whillans-Cochrane, feita em um dia, partindo de uma cova de gelo na base da parede. O segundo cume veio em dezembro, com seu amigo Gaston Riollo (de Mendoza), uma difícil escalada na via Kearney / Harrington, na Agulha Saint-Exupéry. Chegando ao cume, no final da tarde, o tempo virou e a descida varou a madrugada, acossados por uma infernal tempestade patagônica. Cerca de 10 dias depois, Ricardo chegou ao cume do Agulha Innominata (também conhecida como Rafael Juarez), pela via Anglo-Americana, desta vez com céu limpo e sem ventos, mais uma vez com o amigo Gaston e acompanhados também por Gustavo Mago. Ricardo acabou guiando a maior parte da via, bastante técnica e com longos trechos de 6º grau brasileiro. Mesmo depois de 20h de esforço contínuo, Ricardo considerou esta uma escalada tranquila, em que esteve longe de seus limites técnicos e físicos. Ele começava a ficar mais à vontade no ambiente da Patagônia, o que abriu seu apetite para objetivos maiores.

O próximo desafio, como não poderia deixar de ser, foi o mítico Cerro Torre, em janeiro de 2012. Na primeira tentativa, com o parceiro Gaston, estavam um pouco acima do ombro do Torre, quando uma imprevista frente fria entrou, obrigando-os a descer. Uma semana depois, Ricardo retornou ao Torre, desta vez com o argentino Victorio Godoy (de Bariloche). Depois de um dia longo, das 4h às 22h, chegaram às torres de gelo, onde foram forçados a parar pelo cansaço. Posteriormente, relembrando a escalada, Ricardo humildemente reconheceu que ali, naquele bivaque no abismo do Torre, sentiu medo. Reanimados pelo sol da manhã, seguiram pelos artificiais de Maestri, passaram pelo lendário compressor e atingiram o topo do cogumelo de gelo (o mutante cume da montanha) perto meio-dia. Na escalada do headwall do Torre, foram acompanhados pelo americano Hayden Kennedy e o canadense Jason Kruk, que subiam por uma linha paralela, em natural e artificial fixo. As duplas bateram fotos uma da outra, aproveitando os ângulos privilegiados. Na descida, Ricardo e Victorio não encontraram mais os grampos de Maestri, que estavam sendo retirados por Hayden e Jason. Tiveram que fazer umas paradas com móveis para rapelar o headwall e continuar seu caminho de volta.

A reação de Ricardo em relação a este polêmico acontecimento diz muito sobre sua maneira de pensar. Na montanha, aconselhou Hayden e Jason a não mexer nos grampos, mas pensando principalmente no bem estar deles ante a comunidade local. Mesmo desaprovando a retirada dos grampos, procurou Hayden e Jason em Chaltén, para trocarem as fotos e contatos de e-mail. Dias depois, fez questão de visitar o experiente montanhista Rolo Garibotti, para conhecê-lo e escutar suas histórias. O argentino Garibotti foi um dos mais enfáticos defensores da atitude de Jason e Hayden, tendo inclusive recebido a dupla em sua casa, no auge dos desentendimentos. De certo modo, Ricardo passou ao largo desta polêmica, pois seu interesse esteve sempre voltado para as pessoas e as montanhas. Questionado diretamente sobre o caso, usou como metáfora um jogo de xadrez: tratava-se de um assunto “entre reis e rainhas” e ele era apenas um peão, preocupado somente em seguir no tabuleiro. Ao invés de julgar a obra de Maestri, preferiu simplesmente escalar a Via do Compressor, a qual ele definiu como “espetacular”.

Sua última escalada nesta temporada foi na Mermoz, junto com o paranaense Alessandro Haiduke. No relato desta ascensão, publicado no Alta Montanha, Ricardo aproveitou para fazer um breve balanço daqueles meses de intensa atividade em Chaltén. Em vez de exaltar seus feitos, preferiu destacar as escaladas dos demais brasileiros e refletir sobre sua rotina como escalador. A Patagônia teve um efeito evidente em sua espiritualidade, o que transpareceu nos textos. Mencionou com tristeza o acidente com a amiga canadense Carlyle Norman (na Agulha Saint-Exupéry) e dedicou aquela temporada ao amigo Vladimir Henkel, companheiro de trabalho e de canionismo, falecido algums meses antes.

Ricardo Baltazar – O guerreiro ainda na ativa, vendo o mundo das alturas do Alpamayo. – Fonte: Arquivo pessoal

A temporada rendeu algumas entrevistas e uma matéria na Revista Go Outside, mas logo o Ricardo retomou suas atividades habituais. O dinheiro sempre foi curto. No outono deste ano (2012), entretanto, foi convidado a participar de uma viagem de carro até a Cordilheira Branca, no Peru, com os amigos Érico Winkler e Gaston Riollo. Simpatizou imediatamente com a cidade de Huaráz, ponto de partida para um boa parte dos vales da região. Era uma cidade barata, bagunçada e habitada por pessoas humildes. Ele definiu Huaráz como “um El Dorado na Terra para quem tem o couro curtido”. Ricardo evitava ambientes requintados, fossem festas, restaurantes, bares ou hotéis. Sempre valorizou a simplicidade, nos meios materiais e nas pessoas. Nesta primeira visita ao Peru, escalou o Ishinca, Urus e Tocllaraju, com uma tentativa no Ranrapalca acompanhado de Gaston, onde chegaram na aresta de cume. Os ventos fortes e a completa falta de visibilidade obrigaram a dupla a descer. Em seguida, foram para a região de Caraz, onde visitaram a Quebrada Parón e subiram a face norte da Esfinge (Cerro Parón), pela via “1985” (17 cordadas em rocha).

Aproveitando a boa repercussão da escalada no Cerro Torre, para a temporada 2012/2013 montamos um projeto para a obtenção de apoios e patrocínios. O objetivo era escalar 3 cumes importantes no Parque Torres del Paine, na Patagônia Chilena, escolhidos entre as três torres (Torre Sul, Central, Norte), o Cuerno Principal e o Paine Grande. São montanhas de grande beleza e, comparadas com Chaltén, pouco frequentadas. A intenção também era variar um pouco o ambiente, o que sempre tem um reflexo positivo na motivação. O projeto previa uma estadia de 90 dias e um orçamento modesto (basicamente, o custo em passagens e comida para 2 pessoas ao longo do verão). Seu parceiro seria mais uma vez o mendocino Gaston Riollo. Entretanto, após 3 meses de tentativas, não conseguimos vender qualquer cota de patrocínio. Foi a única vez em que Ricardo tentou uma proposta estruturada de patrocínio. Sem os recursos, a alternativa foi retornar a Chaltén, para mais um “round” com as montanhas da região. Em Chaltén, Ricardo poderia trabalhar como porteador e assim custear a alimentação.

Quase na data de partida, no final de outubro, Ricardo recebeu um importante apoio em equipamentos da empresa Conquista Montanhismo. O dono da empresa, Edmilson Padilha, tem um longo currículo na Patagônia e manifestou reconhecimento pelo desempenho do Ricardo na temporada anterior. Os casacos, calças, anoraks, meias, gorros, mochilas e outros itens foram uma reposição importante no enxoval já desgastado, pelo uso intenso em anos anteriores. Desta vez, o Ricardo estava mais focado nas vias alpinas, com gelo. Ele não gostava de antecipar seus planos, mas o sonho era realizar a travessia do Cordão do Torre, escalando primeiro o Standhardt, e dali atravessar pela crista de cume o cordão inteiro, passando pela Punta Hérron, Torre Egger e, se a janela de tempo permitisse, o Cerro Torre. É uma linha para 3 ou 4 dias, completada apenas uma vez por Rolando Garibotti e Colin Haley. O sonho é livre e a realidade costuma ser dura, especialmente na Patagônia. De qualquer forma, uma simples ascensão no Cerro Standhardt já seria um belo troféu para a temporada. Neste ambiente de escalada mista, dispor de um bom kit de roupas e material de bivaque é fundamental.

Em novembro de 2012, ele fez sua primeira escalada, a Agulha de la S, uma investida que ele fez sozinho e em boa parte do tempo desencordado. Mas alguma coisa não andava bem com o Ricardo, de longe foi difícil precisar exatamente o quê. O fato é que passaram-se as semanas sem notícias de Chaltén. Ele ainda escalou a Agulha Guillaumet com amigos, em janeiro de 2013, mas não fez um relato a respeito. Depois fiquei sabendo que ele enfrentou problemas pessoais e uma lesão mais séria no tornozelo. A temporada acabou sem outras escaladas.

Ricardo Baltazar – No topo do Urus em 2013, com a chilena Natalia Muñoz. – Fonte: Arquivo pessoal

De Chaltén, Ricardo foi para Santiago do Chile. Junto com a namorada Natalia Muñoz,  retornou para Huaráz no inverno de 2013. Escalaram, principalmente para aclimatação, o Ishinca (pela face oeste) e Urus (nesta montanha, acompanhados de Edson Vandeira), com uma tentativa no Tocllaraju, onde acabaram repelidos pela mau tempo. O objetivo principal da viagem, entretanto, era o Alpamayo. De Huaráz, Ricardo e Natalia partiram para a vila de Cashapampa, numa kombi alugada com mais 6 escaladores mendocinos. Dali iniciava a longa trilha para a Quebrada Arhuaycocha, onde fica o Alpamayo. Foi uma semana de esforço na aproximação e na escalada desta bela montanha. Como sempre, foi preciso pagar um pequeno pedágio em sofrimento, desta vez devido ao pouco comprimento das cordas (já cortadas), que exigiram pontos de ancoragem adicionais aos que existiam. O problema era encontrar apoio em uma rampa de neve instável … Quando a coisa estava meio cabeluda, a providência mandou duas estacas de neve no colo do Ricardo, caídas da mochila de escaladores que estavam no alto da montanha. Parece que rezando com fé, recebe-se.

No relato desta viagem, Ricardo discorreu um pouco sobre a rotina dos guia de montanha e carregadores, aos quais dedicava muito respeito. Afinal, era a sua profissão também. Por outro lado, via com preocupação a crescente comercialização das montanhas e foi um crítico das empresas que vendem pacotes com grandes estruturas de apoio. Entendia que os clientes tinham que fazer a sua parte também, carregando mochilas, montando barracas, cozinhando e colaborando, na maior medida possível, com as atividades da expedição. Tratava os clientes como amigos e parceiros, e não como patrões ou cargas incômodas.

O trabalho na montanha é difícil e arriscado. A idade e as lesões são obstáculos implacáveis na carreira dos guias e carregadores, ao limitar progressivamente a capacidade física. Ricardo tinha problemas crônicos nos dois joelhos, fruto de suas incontáveis caminhadas no terreno irregular dos cânions, muitas vezes com mochilas pesadas. Por vezes, usava analgésicos para seguir trabalhando. Possuía várias cicratizes e um dedo mínimo torto, devido a uma fratura mal consolidada, após uma queda num slackline. Apesar dos riscos inerentes de suas atividades, Ricardo nunca contou com um plano de saúde ou seguro de viagem. Mesmo recompensado pelas aventuras, a vida como montanhista em tempo integral era dura. O Ricardo não cansava de repetir que a parte mais fácil era escalar montanhas; o difícil era trabalhar e seguir vivendo, juntando ainda algum dinheiro para as viagens.

No final de 2013, Ricardo retornou para a Patagônia, desta vez desligado de qualquer obrigação com patrocínios ou o envio de relatos. Não soube o que ele fez por lá, apenas sei que foram mais alguns meses vivendo em Chaltén. O Ricardo tinha um lado muito reservado e nem sempre era fácil saber o que ele andava fazendo ou pensando. Em 2014, voltou para Mendoza no meio do ano, mas não escalou, apenas acompanhou alguns amigos que foram conhecer Vallecitos.

Neste ponto, arrisco acrescentar nesta breve biografia uma nota dissonante, que pode ser entendida como um desabafo meu, pessoal. O Ricardo certamente bebia mais do que o recomendável. Vivendo cercado de amigos, surgiam muitos e variados motivos para confraternizações. É difícil perceber quando se ultrapassa esta linha nebulosa entre a celebração e o hábito. Depois dos 30 anos, a preparação de um atleta exige cada vez mais atenção e método. Era inevitável desconfiar de que, naquele ritmo, um dia a conta seria apresentada. Não sei se isso chegou a ocorrer. O fato é que o Ricardo estava um tanto afastado das escaladas nos últimos meses e com menos entusiasmo pelas montanhas. Certamente não faltaram “toques” dos amigos mais próximos, para que ele se cuidasse mais. Entretanto, o Ricardo era um espírito livre e independente, uma espécie de bucaneiro anarquista, sempre voluntário para uma festa e boas risadas. Se houve algum erro nisso, acho que fomos todos um pouco cúmplices.

No fundo, considerávamos o Rato invencível. Foram tantas roubadas em tantos lugares diferentes que nós fomos levados a pensar que o cara tinha o “corpo fechado”, que de um jeito ou de outro ele encontraria uma maneira de se safar de qualquer dificuldade. Ele parecia destinado a envelhecer num sítio, com vista para os cânions, desfiando seu inesgotável estoque de histórias. Infelizmente, não foi assim.

O Ricardo partiu cedo, muito cedo. Faltou tempo para aquela travessia de cânion, para colocar a conversa em dia. Faltou tempo para manifestar o orgulho que sentíamos pelo o que ele fez. Entre os escaladores de Torres, em nosso pequeno mundo, o Ricardo foi o melhor. Ele mostrou que os sonhos podem se realizar, havendo disposição e se nos apresentarmos para a batalha. Precisamos tratar melhor os nossos atletas, honrar e lembrar nossos guerreiros caídos.

De vez em quando, como forma de incentivo, o Ricardo costumava dizer:

“Hay que darlo todo !”

Nosso amigo fez isso. Viveu com coragem e iluminou o caminho de muita gente. Dizem que tudo o que brilha muito acaba consumido mais rapidamente pelo fogo. Eu prefiro pensar que Deus escolhe alguns mais cedo, por serem bons, para estar com Ele.

Em Campo Bonito, em Torres, em Praia Grande, em Porto Alegre, em Chaltén, em Mendoza, em Santiago do Chile, em Huaraz, em tantos outros lugares, tenho certeza de que muitos estão unidos nesta pequena oração:

“Fica com Deus, Ricardo ! Obrigado por tudo, valeu !”

Para encerrar, escolho algumas palavras do nosso querido “Rato”:

“Minha relação com as montanhas não se limita à escalada. Isso é somente um esporte. Na realidade, parece que quanto mais montanhas eu escalo, mais afastado eu me sinto do conceito de escalador. Quando volto para os meus, dou-me conta de que busco, antes de tudo, ser uma pessoa simples. A maior conquista é manter-se puro, como uma criança, capaz de rir das pequenas coisas.”

Notas:

– Todas as fotos desta matéria são do arquivo pessoal do Ricardo Baltazar e foram tiradas por ele e por amigos, durante as escaladas ou momentos de convívio.
– Pode haver imprecisões pontuais neste resumo de feitos esportivos do Ricardo. Escrevi com base nos dados que tinha disponível, a maioria deles relatados a mim pelo Ricardo, alguns de forma um tanto incompleta. Seus parceiros de escalada certamente conhecem muitos outros detalhes relacionados com os  fatos aqui abordados e outros, dos quais não tive conhecimento.
– Expressamos, mais uma vez, nossos votos de força à família, à namorada e aos amigos mais próximos.

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Sobre o autor

Texto publicado pela própria redação do Portal.

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