A ideia de realizar subindo a Face Leste do Pico Paraná via Ibitirati, a qual já havia percorrido duas vezes descendo em 2003 e 2004, hibernou por mais de uma década na mente. Em 2013 até ensaiamos a realização, mas eu e Leandro Nascimento chegamos de arrasto no Jacutinga, num daqueles dias em que não se está bem. Pobre do Jurandir que só pode se observar os dois vadios repousando por horas na clareira do cume, só levantando para voltar pra casa.
Depois desse trauma, foi milagre ele aceitar o convite justamente no seu aniversário, ainda mais tendo ciência de uma festa surpresa que lhe preparavam. Mas o que é uma festa perto duma roubada destas? E assim, por fim acabou aceitando.
Já Rafael Gallapagos, o grande parceiro dos mais variados perrengues de 2015 (Travessia 7C, Interagudos, entre outras travessuras bem interessantes), de imediato aceitou o convite, e finalmente tínhamos um time determinado a enfrentar a encrenca.
Após inúmeras mensagens via celular, ficou definido que às 5 da manhã de sábado 01 de agosto de 2015, eu passaria na casa de Raffael, e meia hora depois no Hotel Lisboa, onde Jurandir preferiu ficar hospedado após chegar de Paranaguá.
Já era perto de 6h quando ele finalmente saiu do hotel para nos contar que usou o serviço por pouco mais de uma hora, desde que chegou da gandaia até o despertador tocar. Durante a viagem mal conseguia ficar com os olhos abertos, muito menos prestar atenção em nossa tagarelagem.
Descemos por uma Graciosa seca, com visual, e sem movimento algum. Pouco a frente de São João, paramos para fotografar a rara lua cheia azul, nivelada com o Marumbi logo a sua esquerda. Mais adiante, nova parada já na estrada para Bairro Alto. Desta vez a mudança de ângulo permitiu um flagrante da mesma equilibrada sobre o Olimpo, naufragando atrás dele nos primeiros sinais de luz.
Mais duas irresistíveis paradas foram feitas até chegarmos à Fazenda Lírio da Serra, onde a jornada finalmente começaria. Estacionamos o carro às sombras de um bambuzal, e sem perceber movimentação alguma na fazenda nem mesmo de cachorros, iniciamos às 8h nossa árdua jornada.
Seguimos a todo gás Conceição acima, rumo à entrada do salto Saci. Na trilha, decidimos não visitar o salto, pois não queríamos perder um minuto sequer por não saber o que enfrentaríamos na Face Leste. Sendo assim, cortamos direto rumo às manilhas cobertas de musgos, e então seguimos se equilibrando por cima destas até a represa. Vacilamos feio ao esquecer que ali seria o último ponto de água até o cume do Jacutinga, e não nos abastecemos e nem sequer paramos para beber. Só nos demos conta disso ao não encontrar mais pontos de água trilha acima, e não podíamos nos dar ao luxo de perder tempo voltando para pegá-la. A solução seria enfrentar a sede implacável, e torcer para achar algum ponto de coleta durante a descida ao colo entre Jacutinga e Ibitirati.
O frescor da manhã e as boas condições da trilha nos deram velocidade para seguir sem pausa até superar a parte mais íngreme da trilha, e só fizemos uma no mirante pouco antes do cume. Nesta hora a sede já castiga todos nós.
Chegamos de arrasto ao cume antes do meio dia. A salvação veio do Raffael, que deixou uma garrafa com água dormindo no congelador. A pedra de gelo veio derretendo lentamente pelo caminho. Ele percebeu que morreria se não dividisse a preciosidade conosco, mas prometemos reembolso quando o primeiro córrego aparecesse.
Como é de costume, na clareira sombreada no cume do Jacutinga, a preguiça deitou e rolou. Já conhecia o truque, e então tratei de me espertar, indo até o mirante avaliar a rota. Ao voltar intimei os malacos a prosseguir. Mesmo sob protestos se mexeram, e então finalmente rompemos a indolência.
Decidimos seguir exclusivamente pela crista, onde iniciei os serviços rasgando a típica quiçaça no peito. Acabou rendendo bem por ser descida. Os dois que vinham atrás reforçavam o rasto e de tempo em tempo amarravam as fitas azuis de 33cm que trouxe cortadas de casa. Isso teria grande utilidade se precisássemos retornar pelo mesmo caminho caso não fosse possível transpor algum paredão na face leste. Como estávamos passando sem bater facão, encontrar o tênue rasto sem estas marcas seria complicado, e levaríamos horas algumas horas extras.
Em certo momento decidimos derivar um pouco à esquerda, fora da senda da crista, na tentativa de avançar mais rápido. Acabou sendo pior. A parte boa é que num determinado momento, Raffael que vinha por último disse ter escutado um sussurro de água. Em silencio total confirmamos a descoberta. Um pequeno filete escorria tímido pelas rochas milenares. Precariamente equilibrados na barroca, conseguíamos encher um litro a cada cinco minutos, entretanto ninguém ousou reclamar das dificuldades, e pudemos finalmente saciar a sede.
A partir deste ponto poderíamos continuar descendo, ou então voltar à crista. Decidimos pela primeira opção e em pouco tempo nos deparamos com um degrau, o qual foi possível descer se arriscando pouco. Mas pouco adiantou, pois logo a frente a vegetação se findava subitamente no vazio. Isso nunca é bom sinal. Chegamos numa encosta impossível de ser desescalada. A solução foi retornar a senda da crista e seguir equilibrados sobre ela, torcendo para que não surgissem novos imprevistos.
O mato melhorou de qualidade e não estava mais tão ruim cruzá-lo. A crista ficou perfeitamente definida, e seguíamos pelo fio na navalha com encostas descendo forte de ambos os lados. Então chegamos num lugar preocupante e fascinante ao mesmo tempo. Eram singulares castelos naturais formados por imensas rochas com pelo menos dez metros de altura. Havíamos avistado o pitoresco lugar a partir do cume do Jacutinga, e concluímos que se fosse possível passar ali, certamente não teríamos mais problemas para chegar ao colo entre este e o Ibitirati.
Às 14:30 nos vimos explorando as grandes rochas. Chegamos a um platô onde a vista era panorâmica. A noroeste se apresentava o Saci e Ibitirati, e entre o colo dos dois em segundo plano, emergia a pirâmide final do Ferraria. A leste, olhando para trás, pudemos observar o próprio Jacutinga e toda a crista descemos. Tudo era observado de um beiral de granito com não mais que um metro de largura, que então despencava verticalmente para um abismo fatal. Deslumbrados e cautelosos, apreciamos este lugar de rara e ameaçadora beleza selvagem.
Retornamos então a crista para tentar encontrar formas de contornar o obstáculo. Seguimos desviando os castelos à esquerda, sempre colados em sua base e aproveitando ao máximo a típica vegetação amigável ao redor de grandes rochas. Desta forma podemos dizer que foi até bastante agradável cruzar este inesquecível ponto da travessia.
Seguimos descendo e mantendo a linha da crista sempre. Pouco mais de cem metros adiante dos castelos, finalmente o chão começou aplainar de forma suave, e então comemoramos a chegada ao tão esperado colo entra as duas montanhas. O lugar era limpo, agradável, e convidativo. Mesmo já sendo quase 15:30h, optamos por uma nova e breve pausa para aproveitar melhor o frescor do lugar, já nas sombras do Ibitirati.
Em continuação passei vanguarda para o Raffael, orientando que seguisse predominantemente para oeste e pendendo levemente para esquerda, afim de escaparmos das grandes paredes que avistamos do Jacutinga. Já de cara sentimos a inclinação radical da face leste, e sabíamos que não haveria mais trégua se estivéssemos no caminho correto.
Música para os ouvidos foi escutar logo a frente o som da água borbulhante.
Já era esperado por nós esse encontro, mas o fantasma da dúvida só vai embora quando se encontra. Era um córrego contribuinte do rio Mergulhão, o qual despejaria nele 300 metros abaixo. A água gelada e abundante descia se quebrando pelo leito quase vertical. Tratamos de beber tudo que podíamos, e abastecer as vasilhas até a boca. Ali já era hora do Jurandir assumir a ponta.
Seguimos um pouco pelo leito grota acima, buscando por uma melhor saída à esquerda. Quando encontramos, nos afastamos do córrego e continuamos subindo forte e continuamente, sempre tentando contornar os obstáculos pela canhota.
Há muito já estávamos na sombra, e os cumes ao leste tinham apenas suas pontas douradas pelo sol. Um sinal claro que já era hora de procurar um lugar menos íngreme para estabelecer nosso bivaque. Passávamos neste momento por uma parte bem complicada. A mata sumiu e deu lugar a um campo muito inclinado, úmido, e escorregadio, onde o corpo ficava quase paralelo a encosta. Encaramos o famoso trepa-mato, porém com um mato muito mais frágil, radical, e precariamente equilibrado sobre uma rampa de granito com mais de 60º de inclinação. Cada um que passava, deixava a situação ainda mais complicada e perigosa para o próximo. Neste momento vinha por último, e senti na pele as consequências.
Quando vencemos o lance, já não havia sinais do sol nem mesmo nas partes mais altas das montanhas em volta. Estava dado o último aviso da urgência que tínhamos em encontrar rápido um lugar menos dramático que aquele onde estávamos, para passar a noite. Começamos então a busca desesperada, mas era precipício para todo lado, tudo com inclinação superior a 60º. Então na cota 1225m, encontrei um poleiro com uns… 50º. Perto dos demais, me pareceu bem aceitável. Informei aos amigos que ficaria ali. Eles aceitaram, pois já era quase noite e ninguém mais estava disposto a tentar a sorte na busca de algo melhor.
Iniciamos os preparativos para o bivaque. Limpei uma área para poder esticar o isolante térmico. A ponta de baixo dele ficaria apoiada numas pequenas arvores que serviriam de freio para meus pés, evitando assim que descesse encosta abaixo. Literalmente, íamos dormir empoleirados.
Cada um tratou de virar-se como pode, e o fato de que passaríamos uma noite pendurados nas encostas do Ibitirati, sugeriu que batizássemos o bivaque de “Cabide”. Passar a noite ali era uma das maiores bizarrices que já fizemos na vida, mas ainda havia espaço para mais. Jurandir nos informou que construiria uma rede. Zombei dizendo: só se for uma rede de computadores! Mas ele, com aquele ar sarcástico retrucou dizendo que estava falando sério, e imediatamente puxou da mochila seu famoso saco de açúcar destripado, e disse que com aquela merda, faria a tal rede de dormir. Tanto eu como Raffael ficamos incrédulos. Completei dizendo que se conseguisse, mataria McGiver de inveja. Pois bem! Não se passaram vinte minutos, e entre um nó e outro naquela tralha e nos cordeletes laçados nas arvores, lá estava ele repousando tranqüilo e orgulhoso na maldita rede. Olhei pasmo para o traste se embalando na gambiarra, e disse: Jurandir, você precisa ser estudado pela NASA cara!
A animação foi sendo vencida pelo cansaço de um dia inteiro de intensa jornada. Jurandir ainda teve animo de preparar um miojo. Sonolentos, assistimos ao espetáculo da lua cheia azul nascendo no leste por entre os arbustos, sem nem mesmo precisar nos sentar, tamanha era a inclinação. A lua seria o indicador de quão longa seria nossa noite. Muitas vezes acordei esperando vê-la a pino, mas parecia nunca acontecer. Cada vez que acordava, tinha que compensar o meu deslizamento e do aparato de dormir. Os pés e pernas já estavam cansados por escorar o peso do corpo sobre a base das arvores. Além disso, senti muita sede durante a noite, e não resistia em bicar o único litro que tinha, mesmo sabendo da falta que me faria no dia seguinte.
1 comentário
Muito legal! Saber que conseguiram fazer esse feito, que foi tão sonhando por mim na época de ouro do meu montanhismo.