Varando pelo Varadouro

0

Cem (100) quilômetros percorridos a remo sob o sol e a chuva no Canal do Varadouro, fronteira entre São Paulo e Paraná com muita história. Situado numa região abandonada, esquecida e preservada, é território de matas virgens e estuários com águas salobras, montanhas e mangues, homens simples e animais selvagens. Uma viagem no tempo começando em Cananéia e terminando na Ilha do Mel.

O mar pouco havia me interessado antes da virada do século quando encomendei a fabricação de dois caiaques numa armação no sul da Ilha de Florianópolis. Os projetos vieram da Itália assim como a formação do artesão que os executou em madeira laminada. As razões que originaram tal encomenda por si só demandariam um livro a parte, mas quando finalmente prontos precisava lhes dar alguma utilidade. Coincidentemente nesta mesma época, percorri de bicicleta a Trilha do Telégrafo (1) de Iguape a Guaraqueçaba, e também me caiu nas mãos o livro Tekenika, que descreve a travessia do Cabo Horn em solitário por um italiano louco (Giuliano Giongo) montado numa canoa a remo, durante o inverno austral de 1988.
 
Somando tudo uma grande travessia marítima me pareceu boa idéia e a região do Lagamar (2) mostrou-se propícia para este fim. Selvagem, bela e despovoada apesar de historicamente ser o berço de um novo país chamado Brasil. Na realidade toda a região compreendida entre Cananéia e Paranaguá, nos seus mais de cinco séculos de colonização européia, alternou momentos de grande ou quase nenhuma importância no cenário nacional. A começar pela fundação da Vila em 1532 que disputa com São Vicente o título de cidade mais antiga do Brasil, ambas fundadas pela mesma expedição comandada por Martim Afonso de Souza. Mas é documentado que Cananéia já era habitada por europeus muito antes disto.
 
A história registra a chegada do ilustre navegador florentino Américo Vespúcio em 1502 no comando de uma missão exploratória portuguesa que nomeia o local por barra do Rio Cananor e implanta um marco de pedra (3) no pontal de Itacuruçá, na costa da Ilha do Cardoso, demarcando os limites entre Portugal e Espanha de acordo com o Tratado de Tordesilhas. Nesta mesma viagem mapeia boa parte da costa brasileira e inaugura o ciclo econômico do pau-brasil além de abandonar o degredado (4) Cosme Fernandes que mais tarde causaria grandes problemas a coroa portuguesa.
 
O Bacharel de Cananéia, como ficou conhecido, rapidamente se integrou aos costumes indígenas desposando várias mulheres em alianças políticas que imediatamente proporcionaram  o mesmo número de sogros, muitos cunhados e depois inúmeros genros. Judeu ou cristão novo de grande cultura e inteligência, angariou muito poder agregando outros europeus desterrados a seu exército indígena e fortificando a Ilha de São Vicente onde comerciava contrabando com índios, portugueses, espanhóis e franceses. Suspeito de ordenar o massacre da expedição de Pero Lobo que partiu de São Vicente pelo mítico caminho do Peabirú para encontrar seu fim as cabeceiras do Rio Iguaçu, foi expulso por Martim Afonso de Souza e retornou a Cananéia onde se aliou ao comandante espanhol Rui Moschera, montando defesas fortificadas em Iguape e desbaratando as tropas portuguesas para em seguida saquear e incendiar São Vicente.
 
O que a história não conta é que Martin Afonso aqui chegou atraído pelos relatos dos sobreviventes da expedição do naufrago Aleixo Garcia (5) e a verdadeira missão delegada a Pero Lobo era refazer seu trajeto até o Paraguai contando com a sorte para ainda encontra-lo com vida e chegar às minas de prata de Potosi na Bolívia antes dos espanhóis, mas só para variar deu tudo errado pro portuga.
 
Aproximadamente deste período ainda subsistem o Porto do Bacharel, os argolões onde Martin Afonso amarrava suas caravelas na face sul do Morro de São João, alguns canhões do extinto forte da Praia da Trincheira e a igreja de São João Batista com suas paredes espessas e seteiras em lugar de janelas para defesa contra os inimigos.
 
Planos são grudentos e o verbo poderoso. Em 17 anos explorei a região em viagens em voadeiras (11), embarcado num tuc-tuc quando escalamos o Bico Torto do Rio dos Patos (6) e no remo seguindo os rastros do pintor Willian Michaud (7). Pesquisei em livros, jornais, revistas e principalmente espalhei minhas intenções aos quatro ventos para despertar o interesse dos amigos na tentativa de arranjar companhia. Dentre todos a mais empolgada, sem sombra de dúvida, foi minha filha Isabela que durante os últimos três anos me cobrava a viagem com insistência até que marquei a partida para meados de setembro, mas todos os outros entusiastas pela empreitada descobriram compromissos inadiáveis diante da perspectiva de mau tempo. 
 
O período da primavera é particularmente interessante porque ainda preserva um pouco do frescor do inverno sem as violentas tempestades magnéticas do verão, antecede a temporada da mutuca (14) que se inicia em novembro e encontra os guarás em plena temporada de acasalamento quando exibem a plumagem de um vermelho indescritível. Os guarás são aves peraltas que vivem nos mangues junto às garças e socós, mas se alimentam de pequenos caranguejos vermelhos de onde absorvem o pigmento de cor vibrante. Outrora extremamente abundantes a ponto de gerar extensa toponímia (8) como Guaraqueçaba, Guaratuba, Guaraniaçu e muitos outros. Foram praticamente extintos no século passado e agora gradualmente retornam a seu habitat tradicional.
 
Estava quase conformado com mais um adiamento quando o João (Johny) Carlos de Andrade me liga de Maceió propondo nova data de partida. Desceria de automóvel toda a costa, parando de praia em praia com duas pranchas de stand up, acompanhado pela Kellen Yoko Nakao e um casal de amigos para me encontrar em Cananéia na manhã de 12 de outubro de 2016. Na Serra do Cafezal quase enfartou ao cruzar por violenta tempestade, mas perseverou para nossa sorte. Na véspera nem fui ao escritório para conseguir organizar todo o equipamento e fixar o caiaque de sete metros sobre a capota do carro. Às duas e meia da madrugada partimos de Curitiba ao encontro do destino.
 
No ano de 1850, o Eng. Frederico Augusto do Amaral Sarmento Mesa recebeu incumbência do Presidente da Província para vistoriar as fortificações e as armas da fortaleza de Nossa Senhora dos Prazeres na entrada da Baía de Paranaguá. Partiu da cidade de São Paulo na manhã de 4 de agosto com um acompanhante para conseguir chegar na cidade de Cananéia apenas no dia 20 do mesmo mês. Pouco se demorou na ilha e naquela mesma manhã embarcou com destino ao Varadouro.
 
Relatou em seu diário: “No dia 19, às 10 ½ da manhã, saí de Iguape numa canoa conduzida por 2 remadores e chegamos a Cananéia, no outro dia. Às 8 horas da manhã, gastando 11 horas de um porto a outro”.
 
Seis anos antes, em 23 de novembro de 1844, também partiu da Capital de São Paulo com destino a Comarca de Curitiba o viajante Salvador José Correia Coelho com dois acompanhantes. Sem especificar os motivos da viagem relata apenas suas impressões sobre o trajeto. Em 7 dias chegou a Cananéia.
 
“Dia 29 – Às sete horas da manhã chegamos ao desembarque da Ribeira, em curta distância da povoação. Neste lugar descansamos, seguindo a pé para a cidade de Iguape. De Iguape prosseguimos e tocamos pelas oito horas da noite na vila marítima de Cananéia. É povoação pouco importante”.
 
Com o dia amanhecendo estacionamos o carro ao lado da centenária igreja a espera do Johny e da Kellen que estavam hospedados numa pousada próxima para juntos forrarmos os estômagos numa padaria. A maré não espera por ninguém e rapidamente descarregamos as tralhas ao lado de uma das rampas no Porto do Bacharel e não tardamos a embarcar. Despedimo-nos da Luciana Espírito Santo e do Norberto Barros, que ficaram com os automóveis, debaixo de um céu encoberto por nuvens densas e iniciamos o contorno da ilha em direção ao sul com o mar sereno das manhãs. 
 
A nossa esquerda corria a ponta sul de Ilha Comprida e a Ilha de Cananéia à direita, tudo coberto por matas sombrias e a frente, ainda distante, a Baía de Trapandé. Para cortar caminho penetramos nos baixios na esperança que o pequeno calado nos permitisse passar sem encalhar no lodo e começaram a aparecer os cercados para peixe. A pesca do cerco fixo ou curral é tradicional desta região e consiste de uma longa cerca que se inicia junto a margem seca e avança cem metros ou mais em direção ao meio do canal ou baía onde montam um segundo cercado em semicírculo que aprisiona o peixe. Toda a obra é executada com varas de taquara unidas por arame e fixadas a estacas de madeira enterradas no fundo lodoso. A cerca obstrui a trajetória dos cardumes que na tentativa de contorná-la acabam por entrar no curral. Veríamos muitos deles antes do final da viagem, quase todos em operação e outros em ruínas. 
 
Nos baixios e bancos de areia expostos pelo movimento das marés se espalham imensos bandos de aves peraltas. Garças brancas, socós e guarás chafurdam no lodo a procura de caranguejos e vermes para o desjejum, enquanto os biguás nadam e mergulham a nossa frente pelos canais mais fundos. O silencio é profundo e as suaves batidas das pás de remo na água produzem um som choco e ritmado. A Ilha do Cardoso cresce a nossa frente dominada por morros cujos picos penetram nas nuvens espessas e a claridade vai lentamente transformando a atmosfera cor de chumbo num festival de tons alegres. Infinitas variações de verde descem das encostas até a água, flores brancas e amarelas se destacam na paisagem e o vermelho cintilante dos guarás espalhados por entre o branco das garças e o rosado dos colhereiros bordam as margens estendidas da baía. 
 
Cruzamos a Baía de Trapandé quase no extremo oeste da Ilha de Cananéia já acompanhados por uma família de botos expondo suas barbatanas dorsais na flor d’água em graciosos movimentos ondulatórios. Para os biólogos não existe diferenciação entre botos e golfinhos apesar da crença popular que insiste no contrário.  Nas encostas da Ilha do Cardoso o verde das matas se funde com o chumbo do mar sem contorno demarcado. As árvores de mangue com suas raízes aéreas avançam centenas de metros sobre o canal e as águas penetram igual distância debaixo dos troncos. A divisa entre o sólido e o líquido é imprecisa e mutável a depender das marés. Milhares de pequenos caranguejos vermelhos empoleirados nestas raízes cobertas pelas conchas calcárias dos moluscos curiosamente observam nossa passagem. 
 
Entre os séculos XVI e XVII a Ilha do Cardoso era o lugar mais habitado da região sendo preterida pela Ilha Comprida para fundação da Vila por dificuldades de comunicação com o continente e 70 anos depois, devido à escassez de água e caça foi definitivamente transferida para a Ilha de Cananéia. Esquecendo a toponímia (8) atual para analisar apenas as descrições geográficas e os interesses na época dos descobrimentos chega-se facilmente a conclusão de que Américo Vespúcio ancorou seus navios ao largo da Ilha do Bom Abrigo e descansou por duas semanas nas areias quentes da Praia de Itacuruçá, onde instalou sua cruz de pedra (3) sem jamais ter adentrado o raso canal. Na Ilha do Cardoso se ergue o Morro do Pedro Luiz com 643 metros de altitude, abundância de água doce e vista privilegiada da Baía de Trapandé, do Canal de Ararapira e do Balneário de Marujá com suas rústicas pousadas.
 
José Correia Coelho relata esta passagem em 1844; “saímos durante a noite da baía de Trapandé, que banha Cananéia. A baía era perigosa para nós que íamos embarcados em canoa com pouca segurança. Transposto o golfo, metemo-nos pelo Rio de Ararapira, navegado privativamente por canoas. Tem bancos de areia e só três palmos de água no baixamar e sete no preamar, ficando todo o rio para dentro com mais fundo. Como este rio é esteiro, que comunica o mar de Trapandé ou de Cananéia com o Atlântico, a sua água é salgada”.
 
Ao final da baía se desenham três largos canais quase idênticos do nosso ponto de vista, a poucos centímetros acima da superfície da água. O Mar de Cubatão segue direto para o norte e dobramos para sul a procura do Canal de Ararapira, mas a paisagem se fecha no horizonte insinuando que estávamos penetrando em outra baía onde as matas cresciam de um lado a outro sem interrupção. A Isabela entrou em estado de alerta, mas a tranqüilizei explicando que daquele ângulo duas ilhotas encobriam a visão da continuidade do canal e que forçando bastante poderia ver uma antena de rádio destacando-se acima da copa das árvores. A primeira vista é difícil diferencia-la de uma árvore seca, mas para quem já sabe o que procurar é um bom ponto de referência apesar da distância. 
 
A Ilha de Casca foi a base de fiscalização do Canal de Ararapira com uma casa e a torre de rádio. Toda cercada por mata encobre a visão de uma segunda ilhota rochosa e bem menor onde existe uma tapera de pescador. O Johny e a Kellen estacionaram seus stand up’s na pequena praia defronte a casa bravamente defendida por um cachorro. Nem bem pisamos em solo firme e a fera indomável já se desmanchava em agrados para a Isabela, quase decolava de tanto abanar o rabo enquanto um segundo cachorro dormia pesadamente debaixo de uma cobertura para barco, distante poucos metros. 
 
As janelas do casebre estavam abertas, mas não apareceu viva alma para nos recepcionar e o cão apresentava um grande e profundo corte no focinho. Sinal de luta recente e começamos a desconfiar da sonolência do companheiro. Nem jogando água o bicho acordava e por fim constatamos que estava morto há dois dias pelo menos. 
 
A coisa estava sinistra por ali, mas nada poderíamos fazer além de descansar e dividir nosso lanche com o pulguento sobrevivente. Antes de partirmos providenciei muita água doce numa velha panela de pressão para o cachorro vivo e entreguei o corpo do morto ao mar. Em Curitiba a Isabela tentou contato com as entidades de defesa animal, mas não obteve respostas.
 
Quinze quilômetros já havíamos percorrido e outros quinze nos separavam do primeiro ponto onde a terra seca tocava no canal. Nas encostas do Morro do Pedro Luiz além de pisar em terra firme havia água doce em abundância e a maré continuava subindo e inundando quilômetros de mangue a nossa volta.
 
O mangue é um sistema híbrido inundado duas vezes ao dia pelas marés onde vegetam algumas espécies de árvores que servem de suporte para inúmeras epífitas (9) e parasitas. A mais abundante é o mangue-vermelho que se apóia em longas raízes escoras que penetram fundo no solo lodoso e na junção superior, acima da linha d’água, formam o tronco e a copa que se projeta até a doze metros de altura. É um eco sistema riquíssimo de uma ponta a outra. As copas são dominadas por macacos, mãos peladas, répteis e aves que se concentram em populosas comunidades. Abaixo dos troncos as raízes se trançam em intrincadas malhas que protegem os peixes, moluscos e camarões. O lodo profundo é povoado por caranguejos e vermes. Tudo e todos se alimentando mutuamente, uns dos outros. É uma barreira praticamente impenetrável que pode avançar quilômetros terra adentro.
 
O largo canal seguia a perder de vista serpenteando em longas curvas por entre a intrincada floresta de mangue e começaram a aparecer diferentes espécies de aves. Martins pescadores mergulhavam a nossa volta, gralhas azuis faziam vôos rasantes sobre a água carregando hastes de capim seco no bico para a confecção de ninhos e carcarás empoleirados no alto das árvores esperavam atentos por alguma presa fácil. O caiaque e as pranchas de stand up cortavam silenciosamente as águas tranqüilas enquanto robalos (10) de meio metro saltavam ao nosso lado por altura equivalente.
 
Na Baía de Trapandé a presença humana era marcante e cruzamos com vários barcos. Desde barulhentas voadoras (11) que nos incomodavam levantando ondas laterais até humildes canoas escavadas num só tronco, paramos inclusive para trocar rápidas palavras com dois pescadores que passavam a rede dentro de um curral, mas da Ilha de Casca em frente foram raríssimos tais encontros. Por horas intermináveis nada quebrava o silêncio e a paz da natureza naquele santuário intocado até ouvirmos um som estranho vindo de dentro do mato. Sem dúvida eram motores poderosos e aumentavam de volume na proporção que avançávamos pelo canal. O mistério foi esclarecido depois de vencer uma curva e cruzar com a grande barca que faz a ligação entre Cananéia e Ariri seguindo no sentido oposto. 
 
A Kellen já havia pedido uma parada para descanso, nossas bundas já quadradas e as costas em pandareco também gritavam por refresco quando nos aproximamos de um barranco branco na margem direita, coberto por frondosas árvores de terra seca. Tratava-se de uma ilha de piçarra (12) com a extremidade aflorada de um gigantesco sambaqui. Ótimo lugar para esticar as pernas.
 
Sambaquis são grandes depósitos de conchas calcárias que algumas vezes formam verdadeiros morros artificiais. Executados na antiguidade por povos caçadores e coletores muito antes da chegada dos Tupi Guaranis na região. Este em particular foi datado em oito mil anos. Começava como lixão, mas na medida em que crescia era diversas vezes aplainado e acaba servindo de piso calçado para a própria aldeia. Nele enterravam até os mortos e cavando se encontra de tudo um pouco. Com o tempo sofrem fossilização química devido a chuva que deforma as estruturas dos moluscos e dos ossos enterrados, difundindo o cálcio e petrificando os detritos abaixo. Depois de abandonados acumulam folhas mortas e outros materiais orgânicos que no passar dos séculos sustentam uma floresta diferenciada do mangue.
 
Pouco a frente encontramos outro na Ilha do Cardoso, na margem oposta ou talvez a continuidade do mesmo agora separado pelo canal que surgiu com a elevação do nível dos mares após a última glaciação. 
 
Os morros antes distantes agora já estavam bem próximos e ao dobrarmos mais uma curva pudemos observar um grande barco ancorado à margem com a proa apontada em nossa direção. Ao nos aproximar lentamente também o barco mudou sua posição exibindo sua popa em sinal de reversão na maré. Mau sinal para quem já esta com as costas gritando por socorro e de comum acordo resolvemos estacionar por ali mesmo, numa minúscula praia ao lado do pequeno deck flutuante. Eram 4:30 horas da tarde e estávamos no início da trilha para a cachoeira grande na Ilha do Cardoso quando o Johny desapareceu no mato seguindo os rastros dos turistas. Retorna minutos depois trazendo três carrapatos grudados no couro e um bando de estudantes de biologia embasbacados com a quantidade de bromélias, samambaias e musgo que colheram no mato. Antes de embarcarem ainda chegou outro casal de turistas numa voadeira (11) para ver a cachoeira e enquanto seus colegas saqueavam a selva com pás e baldes, um dos futuros biólogos recolheu do chão uma pequena embalagem plástica e nos olhou com aquele olhar fulminante dos ambientalistas mais radicais.
 
Esperamos calmamente, assoviando e disfarçando até limpar a barra para então desembainhar o facão. Poucos metros mata adentro escondemos o caiaque e as pranchas numa clareira perto do riacho. Passamos por ruínas de antigas edificações de pedra e encontramos duas árvores em condições para sustentar as redes de selva. Limpamos a área e tratamos de amarrar as redes em quatro andares com uma boa cobertura de lona por cima, poucos minutos antes de começar a garoar. Feito o básico partimos para o jantar no ancoradouro, sobre o deck flutuante. Pernilongos até que tinham poucas centenas, mas os “pólvrinhas” (13) estavam com mais fome que nós, picavam até o couro cabeludo. As partes expostas chegavam a ficar pretas de tanto mosquito.
 
Depois do jantar coube a Isabela descer ao riacho lavar as panelas, mas voltou rapidinho com as panelas ainda sujas dentro do saco.
 
             – Tem um bicho lá com dois olhinhos brilhantes olhando pra mim!
 
Caímos na risada. Montar os quatro andares de rede é malabarismo, mas escalar até o último é arte que não domino. Despenquei já na primeira tentativa e na segunda quase quebro o pescoço. Não foi desta vez que dormi protegido das onças e apelei para o conhecido bivaque no chão com todas as agruras de uma clareira recém aberta no escuro, cheia de tocos e raízes. Sem tela de proteção os mosquitos fizeram a festa e despencou o maior temporal. Choveu torrencialmente a noite inteira e acordei ensopado, mais molhado que dentro do canal enquanto os companheiros dormiram de boa na rede quentinha com telas mosquiteiras. Também houve penetra que assaltou nossa despensa e o pão amanheceu todo roído.
 
A chuva parou pouco antes do amanhecer e menos de seis quilômetros nos separavam de Marujá, queríamos ver a praia e pisar na areia limpa só para variar. Partimos com maré e vento contrários o que triplicou o desgaste, mas chegamos no exato momento em que abriam o boteco. As moças fizeram suas ligações para casa de um telefone público e pudemos enfim pisar na areia limpa da praia bebendo um guaraná gelado que nos custou o olho da cara.
 
Na saída de Marujá o Johny apareceu com uma idéia de jerico. 
            – Vamos rebocar as pranchas com o caiaque para testar esta possibilidade?
 
Então a Isabela foi para a prancha e o Johny veio para o caiaque, amarramos as pranchas e seguimos em frente com vento e maré contrários. O caiaque parecia pregado no fundo do canal e dá-lhe força nos remos enquanto as duas lutavam apenas para não cair na água. 
 
O canal se tornou movimentado nos menos de quatro quilômetros até Ararapira e cruzamos com muitas embarcações. A barca vinda pela manhã de Cananéia parou na entrada do Rio Varadouro, apanhou alguns caiçaras que aguardavam embarcados em canoas e seguiu para a Barra do Ararapira. De lá veio a voadeira amarela do transporte escolar carregando as crianças para as aulas em Ariri e no meio desta bagunça toda desembarcamos no pé do barranco para visitar a cidade fantasma de Ararapira.
 
O ouvidor Rafael Pires Pardinho deixou ordens na Câmara de Paranaguá para a fundação de porto e povoado na barra do Rio de Ararapira, em 1721 durante o esforço civilizatório da administração pombalina. Determinação cumprida apenas em 1727 devido a forte oposição dos padres jesuítas que mantinham sua casa das missões em Superagui.  
 
A vila de São José do Ararapira prosperou com o comércio devido a sua localização estratégica a meio caminho entre Iguape e Paranaguá e em 1910 a Cia.de Navegação Fluvial Sul Paulista ampliou sua rota com vapores até seu porto.
 
Inicialmente povoada por indígenas e pequenos produtores rurais, em meados dos anos 1920 contava com várias casas comerciais, correio, escolas públicas, delegacia de polícia e energia fornecida por um gerador a diesel enquanto administrada por São Paulo, mas neste mesmo ano foi transferida ao Paraná depois de longa batalha jurídica.
 
Privada dos subsídios de São Paulo e abandonada pela administração paranaense começou seu declínio quando já em 1921 muitos moradores atravessaram o canal (e a fronteira), fundando a Vila de Ariri com ligação terrestre com Cananéia. O fim derradeiro chegou em 1953 com a abertura do canal que transformou a península de Superagui em ilha e alterou o ciclo das marés ocasionando erosão nas barrancas e o desmoronamento de muitas casas.
 
Ararapira se transformou numa vila fantasma que revive duas vezes ao ano, no dia 19 de março em homenagem ao padroeiro São José e 2 de novembro, dia dos mortos quando por ironia o cemitério traz vida ao lugar. Passeamos um pouco pelo vilarejo antes de sermos afugentados não por assombração, mas pelas mutucas (14) que já começavam a ficar assanhadas. Nos dois quilômetros e meio que separam Ararapira de Ariri toda a paisagem mudou significativamente. Extensos capinzais forravam as raízes dos mangues, reapareceram os biguás e os botos enquanto o vento se tornou infernal, crispando a água e nos empurrando para trás. Mau presságio para quem acabou de ingressar no Varadouro, mas para nossa sorte encontramos o canal na maior calmaria em frente da Vila de Ariri, protegida pela serrinha que a contorna. 
 
Havia prometido feijão, arroz e peixe para o almoço e cumpri a palavra. Estacionamos diretamente no ancoradouro do restaurante e imediatamente partimos para o embate. Comemos até nos empanturrar, mas ainda sobrou muito arroz, farofa e peixe para a Isabela alimentar todos os cachorros da vila. 
 
Antes de partirmos conversamos com o piloto da barca que faz a linha Cananéia-Ariri que estava curioso com o caiaque. Explicou que faz o trajeto de Cananéia até Ariri passando pela Barra de Ararapira nas segundas e quintas feiras pela manhã e retorna às terças e sextas feiras. Nas quartas feiras vem pela manhã e volta a tarde. Detalhou também os ciclos de marés dentro dos canais e nos indicou os melhores horários para seguir viagem. E aquele era o momento certo para seguir até metade do canal com maré crescente e terminar na Baía de Pinheiros empurrados pela vazante.
 
Novamente mergulhamos na solidão deserta do paraíso, mas nem sempre foi assim. As margens do Rio Varadouro Velho eram constantemente melhoradas para a passagem das embarcações e amplamente habitadas com a existência de muitas fazendas particulares. Já em 1605 passaram pelo Varadouro os padres João Lobato e Jerônimo Rodrigues com destino a Laguna. Chegaram a pé até Cananéia onde construíram uma canoa de cinco palmos de boca e cinqüenta e tanto de comprimento com um “pau de ibiracuí”, mas “de pau que a pique se vai ao fundo, que toda vez que nisso cuidava, estremecia”. 
 
Em Paranaguá encontraram uma embarcação de flamengos encalhada na areia, “todos mostravam serem cristãos da Alemanha”. Dias depois ao partirem com mar encrespado atestam “bem creio que as orações de alguns portugueses que ali estavam nos ajudaram muito”. Não conseguindo entrar na baía de Guaratuba pelo mau tempo chegaram à meia noite ao Rio de São Francisco, “um rio morto, por ter uma barra muito formosa, grande e funda”.
 
O Eng. Sarmento relata em 20 de agosto de 1850 que “as 10 horas da manhã saí de Cananéia e a 1 ½ hora da madrugada chegávamos ao Varadouro, onde dormimos o resto da noite” e no dia seguinte “as 9 horas da manhã seguimos a pé para o outro porto, do lado oposto e, às 9 ¾ tínhamos concluído a viagem”. Refere-se aos limites da província. “Assim que a maré encheu, o que teve lugar à 1 ¼ da tarde, continuamos a viagem numa canoa conduzida por 2 remeiros e às 6 ½ chegamos ao rancho de um pobre preto entrevado aonde paramos. Antes, porém, desta hora começou a ventar fortemente o vento sul e logo depois a chover copiosamente, durando o mau tempo até o dia 12 (de setembro) de manhã”.
 
José Correia Coelho, seis anos antes, descreve o procedimento; “desembarcamos no lugar denominado Varadouro. É um ístmo formado pelo oceano, Ararapira, Baía dos Pinheiros e Superagui. É a primeira barra da Baía de Paranaguá, estreita e apenas com dois palmos d’água na baixamar e seis na preamar. Há nele um rio que chamam Varadouro Velho. Logo que desembarcamos seguimos a pé uma extensão de cerca de meia légua, até uma tapera onde havia antigas laranjeiras. Deste ponto devíamos embarcar para Paranaguá. 
 
Os camaradas tomaram as nossas canastras. Cada um prendeu uma pelos topos e duas alças, ficando o corpo do carregador entre a base que tinha seu ponto de apoio na testa e fixando-se a carga sobre os rins. Assim equipados curvavam o corpo, derribadas as cabeças para diante e marchavam como cabritos saltitando destramente sobre uma estiva de madeira bruta e roliça que no trânsito existia pelo trilho alagadiço. Custava-nos a nós que os acompanhávamos sem fardos, seguir-lhes a pista tão rápidos em seus movimentos a despeito das pesadas cargas. Embarcamos a meia noite para Paranaguá em uma grande canoa de voga”.
 
Pelos largos meandros do Rio Varadouro seguimos praticamente sem companhia até a entrada do canal artificial cortado diretamente na rocha. Altos barrancos de ambos os lados mostravam pedras nuas ou barreiras de piçarras (12) cobertas por samambaias. Muita vida animal e nenhum vestígio humano recente.
 
Em 1804 já surgem documentos pressionando as autoridades para a dragagem e abertura de um canal e por volta de 1836 aparecem notícias da abertura de uma vala no local por iniciativa de particulares que vai orientar os futuros projetos. Mas com a emancipação da província do Paraná em 1853 e as conseqüentes disputas fronteiriças a causa perde o interesse das autoridades de ambas as províncias e a região cai em abandono até 1920 quando finalmente se resolve o litígio. 
 
Com o istmo inteiramente situado em território paranaense já no ano seguinte se concedeu outorga para a realização do projeto e construção do canal com 12 metros de largura, 6 metros de profundidade e taludes a 46 graus, mas não encontrou interesse na iniciativa privada e o assunto só retornou a pauta em 1942 sob o comando do governo do estado. 
 
 
 
 
Protagonistas:
Isabela Maria Fiori, João (Johny) Carlos de Andrade, Julio César Fiori e Kellen Yoko Nakao.
 
Lugares percorridos:
Ilha de Cananéia, Baía de Trapandé, Canal de Ararapira, Ilha de Casca, Ilha do Cardoso, Morro do Pedro Luiz, Balneário de Marujá, Vila de Ararapira, Rio Varadouro Velho, Vila de Ariri, Canal do Varadouro, Vila Fátima, Comunidade de Abacateiro, Baía dos Pinheiros, Ilha dos Pinheiros, Canal de Superagui, Comunidade de Barbados, Ilha de Peças, Comunidade de Bertioga, Barra do Superagui, Ilha das Palmas, Ilha do Mel e Istmo de Brasília.
 
Data: 12, 13, 14 e 15 de outubro de 2016
 
Notas explicativas:
(1) Também chamada Trilha do Imperador, é um milenar caminho indígena.
(2) Conjunto de canais, rios, baías e mangues entre Iguape (Sp) e Paranaguá (Pr)
(3) Substituído por uma cópia quando o original foi levado a um museu no Rj.
(4) Banido
(5) Descobridor do Paraguai e da civilização Inca.
(6) https://altamontanha.com/Colunas/4922/rio-dos-patos
(7) https://altamontanha.com/Colunas/4259/no-rastro-de-william-michaud
(8) Nomes dos acidentes geográficos
(9) Plantas que usam outras árvores apenas como suporte.
(10) Peixes de comportamento agressivo.
(11) Lanchas com motores de popa.
(12) Rocha decomposta muito semelhante ao saibro
(13) Espécie de borrachudo minúsculo.
(14) Ou Butuca, inseto muito agressivo.
(15) Gospel ou envangélicas.
Compartilhar

Sobre o autor

Julio Cesar Fiori é Arquiteto e Urbanista formado pela PUC-PR em 1982 e pratica montanhismo desde 1980. Autor do livro "Caminhos Coloniais da Serra do Mar", é grande conhecedor das histórias e das montanhas do Paraná.

Comments are closed.