Recuperando do acidente com abelhas que quase tirou sua vida, mas que não poupou a de Davi Marski, Silvério Nery deixará a presidência tanto da FEMESP quanto da CBME, cargos que ele ocupava desde a fundação destas entidades no princípio dos anos 2000.
A decisão foi tomada durante a Assembleia geral da CBME realizada em São Bento do Sapucaí no último sábado, dia 13. Em seu lugar assumem os vices presidentes, Kika Bradford na CBME e Sérgio Robles na FEMESP.
Sem dúvida a presença de Silvério foi essencial para o amadurecimento do meio da montanha no país, pois além de estar encabeçando a criação destas instituições, que são as entidades de administração desportiva do montanhismo e escalada no Brasil, ele teve papel de representar os montanhistas perante as autoridades e assim conseguir muitas vitórias que seriam impossíveis sem atuação política, e que as mesmas poderiam influenciar muito a maneira como praticaríamos montanhismo no futuro.
Talvez o episódio mais marcante tenha sido a tentativa de regulação do esporte através de normas ABNT num convênio entre o Ministério do Turismo e uma associação de empresários do turismo de aventura, quando Silvério teve que ir até Brasília participar de reuniões no Senado. Outro também importante foi sua atuação em questões de acesso, onde a CBME conseguiu rever muitas proibições injustas em parques nacionais e estaduais.
Silvério, no entanto, não conseguiu evitar que a escalada de competição fundasse uma associação própria para organizar um ranking nacional de campeonatos de escalada. Embora durante o começo de sua gestão houvessem muitos campeonatos, os maiores que o Brasil já realizou, no final eles se esvaziaram e Nery não conseguiu manter unido os escaladores esportivos com os tradicionais, o que o desmotivou bastante a continuar na presidência.
Contudo é impossível negar que Silvério deixou um grande legado com a criação e amadurecimento destas entidades de administração esportiva que hoje são maduras e reconhecidas. Leia na íntegra a carta aberta de Silvério Nery sobre seu afastamento:
14 anos
Foi em 1999 que comecei a participar de listas de discussão na internet. O motivo foi um crescente interesse nas questões institucionais do montanhismo brasileiro. Sabendo que no exterior o montanhismo já existia organizado há décadas, cismava com nossa situação pouco estruturada. Havia sim os clubes no Rio de Janeiro, São Paulo e Paraná, cada estado com suas peculiaridades, mas era evidente a falta de entidades unificadoras que cuidassem de interesses comuns à comunidade dos montanhistas e escaladores, fossem eles sócios de clubes ou praticantes independentes.
Em 2000 foi fundada a Federação de Esportes de Montanha do Rio de Janeiro, a FEMERJ. Continuei acompanhando as discussões com grande interesse e logo em seguida, em 2001, passei a fazer parte de um grupo organizado que pretendia fundar uma Federação em São Paulo, o que acabou ocorrendo após um ano de reuniões para discussão do estatuto. Em abril de 2002, com a fundação da Federação de Montanhismo do Estado de São Paulo – FEMESP, passei a exercer um cargo formal, o de presidente da nova entidade.
Foram anos de muitas discussões, entusiasmo e trabalho duro. Logo em 2002 organizamos um campeonato estadual em São Paulo com 6 etapas (3 de Dificuldade e 3 de Boulder), duas em cada ginásio, na época, Casa de Pedra, 90 Graus e Crux. Havia também toda a parte burocrática (registro em cartório, CNPJ, assembleias), as questões de acesso (logo iniciamos também o diálogo com a administração do Parque Nacional do Itatiaia, com proprietários de áreas particulares como Guaraiúva e outros locais) e muitas outras demandas, quase que diárias. Assim mesmo era muito recompensador, o trabalho dava resultados positivos (embora um tanto quanto invisíveis) e havia o reconhecimento pela comunidade que acompanhava essas peripécias.
Grandes amizades começaram nesse período e minha ligação com o Bernardo Collares foi decisiva para a fundação da CBME, em 2004. Nosso objetivo, na época, era ter uma entidade nacional para podermos conversar institucionalmente com órgãos federais como o ICMBio e o Ministério do Esporte. Ao mesmo tempo fortalecer o movimento pela institucionalização do montanhismo nacional. Se já era difícil “tocar” as Federações, (Bernardo era presidente da FEMERJ e eu da FEMESP), tínhamos muitas dúvidas quanto à nossa capacidade de trabalho para fazer andar também a CBME. Mas com entusiasmo e bom humor fomos em frente. Acumulamos novos cargos formais, virei também presidente da CBME e Bernardo ocupou a vice presidência.
Mais discussões, entusiasmo e trabalho duro. De início lutamos contra uma ameaça que levou mais ou menos um ano para se desfazer, a ABEA – Associação Brasileira de Esportes de Aventura, entidade fundada naquela época com o objetivo de dirigir todos os esportes ao ar livre, porém sem qualquer legitimidade.
Em outra frente, passamos a organizar campeonatos nacionais de escalada indoor, com etapas em São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná, Rio Grande do Sul e Minas Gerais. Nessa área tivemos, a meu ver, dois grandes marcos. Um deles foi o Open de Boulder do Parque da Juventude em 2004, que teve mídia espontânea até no jornal local da TV Globo (SPTV). Outro grande evento foi o campeonato brasileiro de 2005, cuja final teve imenso público na Casa de Pedra em São Paulo, com repercussão na mídia impressa e em alguns programas esportivos na TV aberta. Essas competições revelaram muitos jovens talentos, alguns dos quais continuam ativos e fortes no cenário da escalada, como Felipe Camargo, Cesar Grosso e Thais Makino. Também permitiram que atletas com mais tempo de atividade alcançassem sua consagração no cenário nacional, caso da Janine Cardoso e do André Berezoski.
Como costumávamos dizer, “usando o boné da CBME”, passei a ter contato com o Ministério do Meio Ambiente, ICMBio e com o Ministério do Esporte. Graças aos contatos com este último, participei da Comissão de Esporte de Aventura, um comitê técnico que criou as definições oficiais de Esporte de Aventura e Esporte Radical, um marco importante para o reconhecimento do montanhismo como esporte (idem para o surfe, parapente e outras atividades ao ar livre não essencialmente competitivas). Também por essa via fui convidado a participar de duas audiências públicas sobre Projetos de Lei no Senado e na Câmara Federal que visavam regulamentar, de forma totalmente inadequada, os esportes “radicais”, como constava do texto dos projetos. Graças à nossa mobilização e também de outras entidades (parapente, paraquedismo, surfe, skate), conseguimos derrubar esse projetos.
Em 2002 a FEMERJ já havia organizado em conjunto com o ICMBio um Seminário sobre diretrizes de mínimo impacto em Unidades de Conservação. Depois, em 2004, FEMESP e FEMERJ firmaram o primeiro Termo de Cooperação Técnica com o ICMBio, mais especificamente com o Parque Nacional do Itatiaia. Foi o início de uma parceria muito produtiva, que embora tenha demorado um pouco a deslanchar, teve e ainda vem apresentando excelentes resultados, dos quais podem ser citados os Encontros de Parques de Montanha e, bem recentemente, o Seminário de Abertura de Novas Vias no Parque Nacional do Itatiaia. A participação dos montanhistas na gestão de Unidades de Conservação está consolidada através da presença nos Conselhos Consultivos dessas Unidades. Federações e clubes de montanhismo filiados à CBME mantém cadeiras nos conselhos dos parques nacionais e estaduais mais importantes para a prática do montanhismo, como por exemplo: Itatiaia, Serra dos Órgãos, Três Picos, Pedra do Baú, Jaraguá, etc., etc.
Outra frente que exigiu bastante trabalho e mobilização foi nossa resistência ante o processo de normatização das atividades de aventura, liderado pela ABETA, com apoio do Ministério do Turismo, SEBRAE e ABNT. Briga de gente grande, com disseram muitos, mas graças à força e coerência dos nossos argumentos e a nossa pressão constante, mesmo sem qualquer apoio oficial (o Ministério do Esporte foi completamente omisso nessa questão), conseguimos manter o pé na porta e evitamos o mal maior, que seria o total controle dos esportes de aventura pelo mercado de turismo. Uma quimera, dirão alguns, mas que esteve próxima de virar realidade nos piores momentos dessa luta essencialmente política.
Um grande êxito e, por que não dizer, o apogeu de todos esses anos de trabalho foi a Semana Brasileira de Montanhismo. Ali conseguimos reunir praticamente todas as pessoas que tem interesse no montanhismo nacional e discutimos todos os temas fundamentais para nossa atividade. Foi um grande congraçamento e um marco que sempre será lembrado na nossa história. Fiquei muito orgulhoso de ter participado da SBM e sou muito grato às pessoas que ralaram muito para que tudo aquilo acontecesse (Delson, Kika, Jussara, Rosângela, Diniz e muitos outros). Na festa de abertura, no alto do Morro da Urca, com a presença do Carlos Minc, Pedro da Cunha e Menezes, Jim Donini e quase todos os meus amigos e conhecidos da comunidade da montanha, mal contive a emoção diante da imensa e plateia que prestigiou o evento, não só em presença, mas também com doações em dinheiro. A SBM foi um grande evento graças ao patrocínio coletivo da comunidade.
Entretanto, a partir de 2010 mais ou menos começaram a surgir revezes que pouco a pouco foram minando minha motivação. Inicialmente os problemas ocorridos em campeonatos de escalada, como a redução do número de participantes e o excesso de reclamações e acusações (quase sempre injustas e infundadas), que resultaram no fechamento das Associações de escalada de competição no Paraná, São Paulo e Rio de Janeiro.
Depois veio a perda irreparável do Bernardo, para mim um choque pessoal muito grande e também uma grande perda na gestão da CBME, onde nossa pareceria de irmãos de sangue fazia com que o trabalho fluísse sempre em sintonia e com muito bom humor. Bernardo dispunha de bastante tempo para dedicar à CBME à FEMERJ, o que aliviava um pouco minha carga de trabalho e permitia que atuássemos em várias frentes simultaneamente. Vale destacar ainda que nós dois e principalmente ele, conhecemos muitos escaladores e muitos locais de escalada no Brasil, o que nos proporcionou uma visão mais ou menos abrangente do panorama da escalada no país inteiro. Bernardo viajava com muita frequência, ia a quase todos os encontros de escalada e sempre aproveitava essas oportunidades para escalar muito e para apresentar a CBME com nossa visão e ideias para quem se dispusesse a escutá-lo. Pode parecer pouco, mas esse trabalho foi de importância capital na divulgação e credibilidade que a CBME adquiriu ao longo desses 10 anos de sua fundação.
Outro fato que desencadeou uma crise mais intensa foi a decisão de deixar de pagar o IFSC. Embora a assembleia da CBME de 2012 tenha aprovado a decisão, fui eu que apresentei a proposta e os argumentos que acabaram convencendo os demais de que aquela era a melhor alternativa para o momento. Não me arrependi da decisão, mas por ser o autor da proposta acabei sofrendo pessoalmente com a crise que se desencadeou a partir de então e que resultou numa cisão e na fundação da ABEE, sem acordo nem vínculo com a CBME. Foram discussões pesadas e desgastantes ao extremo, demonstrações de desconfiança, muita incompreensão e posturas irredutíveis assumidas por pessoas que estavam dos dois lados da contenda. Não é correto dizer que foi uma briga entre “esportivos” e “tradicionais”, foi muito mais uma “conversa de surdos”, pessoas com dificuldade para compreender as ideias e posicionamentos de quem estava “do outro lado”. Esse episódio me deixou muito triste e com uma sensação de impotência diante do resultado, a meu ver negativo e desgastante.
Ao final dessa longa história chego à conclusão de que o tempo passou e já não existe mais o mesmo espaço de antes para meu estilo de gestão à frente da CBME e da FEMESP. Um jeito um tanto idealista e informal, com relacionamentos fortemente baseados em amizade e confiança mútua. Esses valores continuam sendo muito importantes, mas não são mais suficientes. Me parece que nesse momento a gestão das instituições exige um pouco mais de pragmatismo e um cunho mais profissional para garantir sua sobrevivência e crescimento.
Sem falsa modéstia, penso que o trabalho que ajudei a desenvolver ao longo desses anos – sempre contando com um grupo fantástico de montanhistas que batalhou e continua batalhando nas diretorias das Federações e Clubes por todo o país – foi um divisor de águas na história “oficial” do montanhismo no Brasil. Que esse ciclo virtuoso continue por muitos anos e que nossas instituições cresçam e se tornem sólidas e independentes financeiramente, sempre pautando sua atuação nos princípios e valores éticos que norteiam o montanhismo brasileiro.
Silverio Nery
dezembro de 2014