A Alta Mantiqueira

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Por quantas mulheres (ou homens) você acha que pode se apaixonar na vida? Apesar de um passado de alguma atividade, não me considero experiente no assunto.

Tempos atrás, talvez buscando me inspirar, li as memórias de Casanova, o mais célebre dos amantes. E também acompanhei com interesse as peripécias de Don Giovanni, o imortal mulherengo da ópera de Mozart. E o resultado foi nulo.

Assim, permaneço com minha impressão de que só existe uma grande paixão na nossa vida. A gente nunca sabe se a última delas é a única e verdadeira – até que apareça a próxima.

E por que digo isso? Porque quero lhe falar de minha atração por essas mulheres de pedra que são as montanhas. Diferentemente daquelas de carne, as montanhas não se importam em serem reunidas em serras que as contêm. E, assim, quero lhe contar de minha paixão pela mais linda coleção de mulheres de pedra de nosso país: a Serra da Mantiqueira.

A Alta Mantiqueira

 Embora possa parecer idiota, em algum momento eu deveria dizer de meu afeto, talvez meu único verdadeiro e constante, pela Serra da Mantiqueira. Porque eu a imagino como uma mulher, Gaia, a Mãe Terra da mitologia grega, que povoou o mundo.

Gaia foi a deusa grega primordial, depois de Caos. Unida ao céu Urano, gerou os Titãs.

Conversando um dia com o editor do jornal de montanhismo onde escrevo, ele me perguntou se continuava contrário à criação de um grande parque natural ao longo da crista principal da serra – que seria chamado de PN Altos da Mantiqueira. Então, aproveito agora para recuperar esta história.

O ICM Bio era um órgão recente, desmembrado do IBAMA, quando há cerca de dez anos atrás foi gestado mais um Parque Nacional, unindo as terras dos espigões centrais da Mantiqueira. As consultas públicas em cada município atingido foram feitas e revelaram oposição por parte das populações afetadas.

O PNAM deveria estender-se entre o Horto Florestal de Campos do Jordão e o Parque Nacional de Itatiaia, englobando neste percurso de 100 km três grandes formações – a Serra dos Pilões, o Maciço dos Marins e a Serra Fina – ligando-as ao Planalto de Itatiaia. Seriam 87 mil hectares – adicionados aos dois Parques já existentes em cada extremidade, totalizariam 124 mil hectares.

O PNAM atravessaria inúmeros municípios ao longo dos Estados de São Paulo, Minas Gerais e (minimamente) Rio de Janeiro. Cerca de dois terços de sua área estaria em São Paulo e o restante, em Minas.

Haveria municípios fortemente afetados, como Piquete, Queluz, Passa Quatro e Delfim Moreira, que deveriam ceder algo como um terço de seus territórios. Outros quatro perderiam um quarto de suas áreas.

Mapa de Criação do PN Alta Mantiqueira.

Devido à forte declividade da região, apenas 10% do total seria representado por afloramentos rochosos e campos de altitude. Como a proposta procurou alcançar as encostas nos lados paulista e mineiro da serra, as florestas que as recobrem corresponderiam a 80% do PN, de longe a maior parte de sua área.

Em função da importância da Serra da Mantiqueira, esta região é sujeita a uma forte vigilância ecológica, de tal forma que metade da área do novo Parque já seria composta por Áreas de Proteção Ambiental.

Mas deve também ser lembrado que seriam afetadas fazendas (de silvicultura e pecuária), casas de veraneio, empreendimentos imobiliários e pousadas (inclusive Pousada do Barão, tão antiga e especial).

A principal razão para a criação do parque era naturalmente a preservação do ecossistema da Mantiqueira. Ainda que situado próximo a várias zonas urbanas, ele é dotado de grandes maciços rochosos, cênicos campos de altitude, extensas florestas de encosta e inúmeras nascentes de rios. Seu relevo variando desde 600 a 2.200 metros de altitude favorece uma biodiversidade espetacular.

O lago na sede do PE Campos do Jordão (SP), onde começaria o novo Parque.

Além disto, tornava-se importante conectar os ecossistemas protegidos, não apenas conservá-los. Isto permitiria o trânsito das espécies, vegetais e animais, entre os mosaicos interligados que, de outra forma, poderiam ficar ilhadas e vir a sofrer redução ou mesmo extinção. O Brasil felizmente dispõe hoje de inúmeros mosaicos, alguns dos quais gigantescos – este foi inclusive o título de um de meus livros.

Evidentemente, existiam na região prevista para a reserva várias espécies de fauna ameaçadas. Os estudos citavam desde as onças pardas e os macacos muriqui, até papagaios de peito roxo e macucos, além de variedades de cobras, sapos e borboletas.

Em particular, a Floresta Nacional de Passa Quatro (contígua ao Parque) era considerada prioritária para a conservação de aves, bem como a Fazenda do Onça (inserida no Parque) para a de mamíferos.

Mas, muito simplesmente, bastava caminhar pelos esplêndidos campos dos Pilões, pela preciosa crista do Marins ou pelas amplidões da Serra Fina para entender a necessidade de preservar a emocionante natureza da Alta Mantiqueira.

Infelizmente, esta situação não era tão clara, pois quase sempre existe um abismo entre intenção e execução. Naquela época, cerca de dez anos atrás, eu enxergava três importantes razões que desaconselhariam, nas circunstâncias de então, a criação daquele Parque.

Visual bucólico na região dos Pilões, Guaratinguetá, SP. A Serra dos Pilões conecta Campos do Jordão com a Serra dos Marins.

Primeiro, uma simples questão de justiça. As terras tomadas pelo Governo não costumavam ser indenizadas. Considere dois Parques bem conhecidos, nas proximidades do PNAM: Itatiaia e Bocaina.

Em ambos, os proprietários sofriam uma série de constrangimentos e interferências, sem que tivessem sido ressarcidos pelas áreas perdidas. Notem que estou me referindo ao primeiro Parque brasileiro, criado há mais de 80 anos!

Esta era a triste realidade em todo o País, de São Joaquim no Sul e do Jalapão no Centro-Oeste à Chapada Diamantina no Nordeste e Sete Cidades no Norte. Achava um absurdo criar novos problemas antes de resolver os antigos. Se o Governo não havia eliminado por décadas estas questões fundiárias, que mágica iria torná-lo capaz de fazê-lo então?

Mas, mesmo quando havia a intenção de indenizar, a situação era inerentemente injusta, pois cabia ao comprador definir o preço.

E, na formação deste, não entravam as benfeitorias posteriores à criação de cada Parque: imagine retroceder 65 anos no caso de São Joaquim ou 50 anos no da Bocaina. Existiam ainda outras minúcias legais, nenhuma delas favorável aos infelizes ocupantes de áreas a serem tornadas públicas.

Quando escrevi aquele texto, veio-me à lembrança uma conversa com um sitiante que explorava a principal atração do PN Chapadas das Mesas, criado há quinze anos no Maranhão. Naturalmente, ninguém havia até então sido indenizado, mas esperava-se uma proposta do Governo. Aceite por qualquer valor, provavelmente será sua única chance de ainda receber algo, disse eu a ele.

Os enrugamentos da Mantiqueira na região dos Marins, que é um dos seus três principais maciços (Fonte – Orlando Ferrer).

O segundo motivo era pior ainda. Era muito comum (e ainda é) nossos parques serem simplesmente abandonados, com ameaças à flora e à fauna.

Quando subi a Pedra do Frade na Bocaina, caminhei grandemente por uma trilha de palmiteiros, como se a reserva fosse uma propriedade particular aberta à devastação. O melhor Parque brasileiro fica na Serra da Capivara, área que foi abandonada após a criação da reserva e depredada nos dez anos seguintes, até que fosse assumida por uma fundação privada.

Vale lembrar a existência de incêndios (em geral criminosos), gerados nos parques pelas tensões criadas entre a insensibilidade do Governo e as necessidades das comunidades. Não é preciso retroceder muito para lembrar as tristes vistas calcinadas dos campos do Itatiaia, do Pico da Bandeira e da Chapada Diamantina.

Nunca vira nenhum guarda-parque nas grandes extensões da Serra do Cipó, da Chapada dos Guimarães, da Serra da Canastra ou dos Aparados da Serra – a razão é que simplesmente não existiam ou, quando fosse o caso, preferiam a sombra protegida das guaritas ou escritórios.

Havia (e ainda há) reservas enormes, de 2 milhões a ½ milhão de hectares, com escassos um ou dois funcionários sediados em alguma vila distante, de onde nem de binóculo lhes seria possível revelar a presença de lenhadores, garimpeiros, mineradoras ou caçadores.

Travessia da Serra Fina, que é o segundo dos maciços principais da Mantiqueira. Notar ao fundo o Agulhas Negras, porém já no maciço seguinte (Fonte – Pisa Trekking).

Porém na época eu tinha uma terceira razão, de natureza egoísta. Lembrava-me do tempo em que era possível percorrer as trilhas Rebouças-Mauá ou Ruy Braga em Itatiaia, antes que fossem proibidas. Os antigos contavam como se hospedavam nos bem-conservados abrigos da Serra dos Órgãos ou do Pico da Bandeira, depois demolidos ou depredados.

Naquela época, simplesmente não se criavam estruturas para recepção ou fiscalização nos parques naturais. Eu só havia encontrado míseros três com boa estrutura e quase todos sem qualquer sinalização.

Eu achava que não seria surpresa descobrir, uma vez o PNAM instalado, que se tornaria proibido atravessar a Serra Fina ou percorrer a crista do Marins. Se é que os acessos a lugares tão especiais como os Pilões, o Onça, o Itaguaré ou a Mina não estariam fechados por imposições arbitrárias.

Ao escrever aquelas linhas, me veio a recordação da madrugada em que tivemos de contornar a guarita do Parque de Itatiaia, a fim de nele penetrar despercebidos, para passar alguns dias maravilhosos num espaço que nos era negado, embora pertencesse a todos nós.

Panorâmica do planalto elevado no interior do PN Itatiaia (Fonte – Diego Baravelli).

E o que aconteceu? Se você olhar um mapa da região, notará que existem fundos vales entre os espigões da Mantiqueira. Por eles passam pelo menos duas rodovias asfaltadas entre São Paulo e Minas – as que conectam Piquete e Queluz no Vale do Paraíba ao interior mineiro de Itajubá e Caxambu.

Mesmo que o PNAM fosse criado, não seria possível lhe garantir a continuidade natural, ou seja, não funcionaria como um legítimo mosaico. E a proposta para sua criação acabou sendo abortada.

Eu me pergunto se ainda seria contrário, passados mais de dez anos. Nada teria mudado nas nossas leis e práticas ambientais? Infelizmente, as desapropriações continuam injustamente indenizadas, quando o são.

Hoje é mais raro no Sul e Sudeste, mas no Norte e Centro-Oeste não é incomum descobrir áreas federais invadidas, queimadas e griladas. Das minhas razões, apenas o acesso é hoje facilitado, especialmente em Minas e São Paulo.

Mas isso é bem relativo. Lembra-se da descrição sobre contornar de madrugada a guarita de entrada do Parque, para ingressar escondido? E se, ao contrário, eu tivesse decidido esperar pela abertura da trilha que eu então percorri? Sabe quanto tempo teria passado? Nada menos do que vinte anos!

Se, da próxima vez, eu tiver que esperar outro tanto, só mesmo no céu (onde espero estar) poderei conhecer essas nossas belezas naturais.

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Sobre o autor

Nasci no Rio, vivo em São Paulo, mas meu lugar é em Minas. Fui casado algumas vezes e quase nunca fiquei solteiro. Meus três filhos vieram do primeiro casamento. Estudei engenharia e depois administração, e percebi que nenhuma delas seria o meu destino. Mas esta segunda carreira trouxe boa recompensa, então não a abandonei. Até que um dia, resultado do acaso e da curiosidade, encontrei na natureza a minha vocação. E, nela, de início principalmente as montanhas. Hoje, elas são acompanhadas por um grande interesse pelos ambientes naturais. Então, acho que me transformei naquela figura antiga e genérica do naturalista.

3 Comentários

  1. Torço muito pra que um dia se torne realidade. É uma área que deve ser plenamente protegida, tanto pela paisagem maravilhosa e única quanto pela infinita importância ambiental e por ser uma das grandes “caixas d’água” do nosso País.
    Ao que parece o grande desafio está na questão das muitas propriedades fundiárias nas regiões abrangidas, sendo que uma grande parte delas precisaria ser necessariamente desapropriadas. Uma questão, aliás, que até hoje ainda não está plenamente resolvida nem mesmo no Parque Nacional do Itatiaia (o mais antigo do País).

  2. Entendo a sua preocupação. Porém, como comprova a sua própria narrativa, a melhor solução, a meu ver, é manter e incentivar a criação de novas RPPA. Abcs.

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