Esse não é mais um texto agradável, é na realidade uma denúncia sobre a insanidade com que destruímos o nosso país, em troca da ineficiência e do desperdício. Bem como da agonia dos seres que não têm a sorte de serem humanos – e até mesmo destes, que têm o azar de serem nativos. Natalia Polesso disse que o fim do mundo era o fim das pessoas… a gente é o sonho do futuro dos nossos antepassados, mas talvez este sonho se mostre antes um pesadelo.
O Sucesso da Devastação
Vamos começar pelos fatos. Veja no gráfico de barras os mais de trinta anos de desmatamento na Amazônia. Nos dez últimos anos, foram quase 8 mil km² anuais e, nos últimos cinco, quase 10 mil km².
Sabe quanto mede no Centro-Oeste uma razoável fazenda de leite? Algo como 600 hectares, ou 6 km². Se for de pecuária, em torno de 3 mil hectares ou 30 km². E veja que não estou falando de tamanhos médios e estou escolhendo uma região onde as propriedades são muito grandes.

Gráfico do desmatamento na Amazônia. A fonte é o PRODES, órgão que usa dados do LANDSAT e de equipamentos chinês, indiano e inglês. A área mínima mapeada é 6,25 hectares.
Assim, para não complicar muito os cálculos, o fogo amazônico (digo fogo porque é assim infelizmente que se desmata) tem destruído a cada ano a área de umas quinhentas dessas propriedades. Se você considerar o Centro-Oeste, existem na média quase mil fazendas em cada município do MS e MT; então quinhentas deste grande porte é algumas vezes o que cada município comportaria.
Quer comparar agora com algumas das cidades? Tome meia dúzia dentre as grandes, de sul a norte, não precisam ser capitais, e pesquise suas áreas urbanas. Esse fogo insaciável e repetido consome todo ano o equivalente a umas vinte delas – inteirinhas: moradias, praças e parques, túneis e viadutos, estádios e museus.

O círculo sobreposto à cidade do Rio de Janeiro tem 200 km2. Imagine o que seriam 10 mil km2.
Sabe quanto já foi devastado ao longo do gráfico? Pasme, mais de 400 mil km² bem medidos. Sabe que isso representa 1/8 de toda a Amazônia brasileira? Sim, nós já exterminamos uma em oito partes da floresta e, junto com ela, a vida selvagem e muitos dos nativos.
E, quer saber, quase uma em cada vinte partes de todo o Brasil. E ainda dizem outros que a área devastada é na realidade o dobro, mas não é o que felizmente o gráfico por enquanto nos conta.
A Cadeia dos Grileiros
Mas donde vêm essas terras que queimam? Com frequência, pertencem a governos e a indígenas, são as chamadas terras protegidas – são, na realidade, indefesas e ignoradas. Os que as invadem são os grileiros, reunidos por um invasor ou um fazendeiro. E protegidos por políticos e burocratas. Vândalos da nossa ancestralidade humana e natural.
Sim, porque existe uma cadeia de poder, não pense que essa devastação é espontânea. É intencional e planejada – nos gabinetes dos senadores, nos levantamentos dos técnicos, nas equipes dos governadores, nos acervos dos institutos oficiais e das ONGs estrangeiras, nas pranchetas dos engenheiros, nos carimbos dos cartórios.
Uma vez eu escrevi: Mas não será surpresa se houver participação de algum órgão público: talvez o INCRA tenha iniciado um assentamento nas proximidades de alguma reserva, a FUNAI tenha remanejado convenientemente as tribos indígenas ou o IBAMA ignorado aquele atalho por onde trafegam caminhões sem identificação.

O fogo é a riqueza da Amazônia.
Mas há grileiros ainda mais perversos. Sua ambição os faz desejar os próprios terrenos que devastam. Agora são destocados, limpos e semeados – cresce o capim para alimentar o gado. E do grileiro nasce o fazendeiro. O fogo, para destruir o que é coletivo. A cerca, para delimitar o que se tornou privado.
Como dizem eles, o fogo é a riqueza Amazônia. E não esqueça de seus parceiros garimpeiros e caçadores, que adoram o ouro e a onça, assim como os primeiros amam o mogno.
E você pensa que isso é ilegal? Sim, mas por um tempo, pois logo será legalizado. Registros forjados são inscritos junto aos órgãos da terra e do imposto, o INCRA e a SEFAZ, passam agora a ter uma aparência legal. Mas logo terão, como por mágica, não só a aparência, mas o pleno conteúdo.

Imagem do desmatamento de 2001 a 2018 na região de Santarém, PA. Aparecem os Rios Amazonas e seu afluente Tapajós. (Fonte – Hansen, UMD, Google, USGS, NASA).
Lembra daquelas leis que, com notável regularidade, parcelam por períodos obscenos os impostos em atraso das empresas? E premiam com desconto a sua liquidação à vista, numa evidente afronta aos bons pagadores? Sim, não pague imposto e nem compre terra.
Pois com a terra você pode também se valer da Lei da Grilagem que irá desonerá-lo de ser honesto. E, como no caso do REFIS, de ser um contribuinte pontual. E deixe de ser otário.
Os Fazendeiros Honestos
Você leu acima sobre uma devastação criminosa que terminou honesta. Mas existem aquelas que nascem honestas. Afinal, há fazendeiros que compram suas propriedades, algumas vezes grandes corporações, outras vezes pessoas que ainda não aprenderam a enganar.
Claro que vão exercer o direito que têm ao corte raso da floresta em pé, seguido da limpeza pelo fogo. E, novamente, vai surgir o inocente verde do capim salpicado pelo branco do zebu. Mesmo assim, continuará sendo o fogo que forma a terra.
Você dirá que as fazendas na Amazônia devem possuir uma reserva legal de 80%, só 20% da área podendo ser explorada. Quer saber, esse limite é para mim uma ficção, tente visualizá-lo quando estiver lá, eu nuca o vi. O desmatamento é como com a ferrugem, a velhice ou o esquecimento, só faz avançar no tempo, sem jamais recuar.

Da terra amazônica, ¾ da soja e 1/6 da carne são exportados.
Gostaria de comentar que não é só a floresta enquanto flora que desaparece. Junto com ela, enfraquece toda a vida ao redor. Atrofiam nos solos os fungos e os rizomas, diminuem nos ares as nuvens e os ventos, secam os rios sem suas nascentes, fogem e depois desaparecem os animais, perdem os indígenas suas terras e suas culturas.
Compare uma moita de capim com uma árvore centenária, um magnífico felino com um ruminante banal – e me diga que país insano é esse que investe em empobrecimento.
O Verde Invasor
Mas vou lhe falar agora de um outro verde e, imagine, plantado pelo homem. É o eucalipto, introduzido no começo do século passado para prover dormentes para as ferrovias paulistas.
Essas espécies vieram da Austrália e se aclimataram esplendidamente no Brasil: rápido crescimento, possibilidade de vários cortes das rebrotas, rusticidade e adaptação a diferentes regiões, usos variados para serraria, carvão ou celulose.
Porém os impactos ambientais do eucalipto não são pequenos, acredito que principalmente pelo ressecamento do solo e redução da biodiversidade – neste caso, agravada pela monocultura. O eucalipto é uma espécie invasora, seja das lavouras ou das reservas. E (a meu ver de forma absurda) ele é tolerado na composição das reservas legais, que podem ser florestadas até metade com ele.

Apesar do verde, a monocultura do eucalipto ameaça a biodiversidade.
Acho impressionante que até hoje não exista um programa de reflorestamento com espécies nativas. Só o eucalipto foi incentivado – naturalmente por seu uso industrial. O naturalista José Lutzenberger disse: Nossas florestas devastadas, quando deixadas a si, têm capacidade para regenerar-se sozinhas. Mesmo quando esta recuperação é lenta, o resultado é um bosque secundário de elevado valor ecológico… A capoeira, que pouco a pouco se enriquece até formar, em vinte a trinta anos, uma floresta secundária, reconstitui, quase que imediatamente, a proteção efetiva do solo… Por que não aplicar o incentivo fiscal ao reflorestamento natural?
Não parece incrível a você que em tantos casos a vegetação nativa seja substituída pelas espécies importadas, que já somam 55 mil km² no Brasil? E veja que isto é acompanhado pelas conhecidas denúncias contra agrotóxicos e fertilizantes, contra assoreamentos e eutrofizações dos rios ou erosões e ressecamentos dos solos, e acrescente ainda as grilagens das terras e os danos às comunidades tradicionais. Pois esse novo verde de forma alguma substitui o original.
A Fragmentação Devoradora
Estamos bem enquanto escrevo, nos últimos sete anos o desmatamento só tem crescido. E veja que nem precisamos cancelar toda a floresta para matá-la, pelo menos por duas razões.
Primeiro, a área degradada (mas não necessariamente desmatada) pode ser estimada em surpreendentes 1.350 mil km². Segundo, a partir de uma certa fração destruída, a floresta não mais será capaz de se regenerar. A fragmentação é a morte anunciada da floresta.

As rodovias e o avanço do desmatamento na Amazônia (Fonte – ISA, 2017).
Queria falar sobre a fragmentação. Um fragmento florestal ocorre quando a mata é interrompida de forma natural ou humana. No primeiro caso, variações no clima, no relevo ou no solo, junto com a ação dos rios e dos mares, podem fracionar a vegetação. No segundo, a extração da madeira, a pecuária e a agricultura, o reflorestamento e a urbanização podem criar retalhos florestais.
Assim, a floresta original irá sendo desmembrada em manchas remanescentes cada vez menores, isoladas por lavouras, pastos, cidades ou indústrias. Os habitats naturais se tornam cada vez mais precários, fica difícil sobreviver e reproduzir.
Devido à sua interdependência, plantas e raízes, águas e solos, fungos e animais vão sendo afetados. As populações ficam menores em quantidade, tamanho e variedade. Espécies desaparecem e sua morte tira a vida das demais com as quais interagiam. E a vida acaba por se extinguir.
Você sabe o que é o efeito de borda? Ele acontece com a existência das clareiras. Quando uma seção da floresta fica cercada por áreas abertas, aumenta a incidência de luz, vento e calor nas bordas.
A umidade diminui, junto com a coesão do solo. As árvores enfraquecem e caem, a borda avança e a floresta recua sobre si mesma. O fragmento encolhe, vira um retalho e depois uma ilha, e por fim desaparece. Você já conhece: agora, toda a floresta morreu.















