Através da Lisete sabia das palavras de vocês me incentivando, me encorajando e podem ter certeza, eu precisei de tudo isso principalmente nas 72 horas que se seguiram a minha tentativa de cume que foram dramáticas. Eu e o Paul chegamos ao campo 4 a 7450 metros absolutamente exaustos. Uma coisa que descobri nesta expedição foi realmente surpreendente. A questão tão debatida de subir com ou sem oxigênio não é assim tão importante. Havia muita gente na montanha subindo sem. Mas, muito pouca gente tentando sem o apoio dos sherpas.
Acho que no fim isso que deixa a escalada realmente difícil. Ficar um mês inteiro escalando, levando quilos e quilos de equipamento, comida, gás para os campos altos acaba te desgastando fisicamente e quando chega o grande dia você está acabado. Hoje sei que se tentar novamente um 8000 sem oxigênio suplementar tentarei com o auxílio dos sherpas. Sem ambos, é além de minhas forças.
Desde que havíamos chegado no campo três que o vento não parava, um vento fortíssimo que sacodia a barraca incessantemente e que nos minava psicologicamente. Montar e desmontar o acampamento (levamos a mesma barraca do três para o quatro) foi uma luta. Por causa do vento havia uma parede muito inclinada de gelo azul. No dia anterior toda a equipe do Russel Brice havia feito cume e agora seus sherpas desescalavam esta parede deslocando inúmeros blocos de gelo. Estou me concentrando em colocar as pontas dos meus crampons no lugar certo no gelo escorregadio e a próxima coisa que sei é que estou deitado no gelo, por sorte preso pelo jumar na corda fixa e completamente tonto. Um bloco de gelo havia batido na minha cabeça! Não está sangrando e aparentemente nada de mais sério aconteceu, mas fico muito assustado, não sei o que fazer. Se descer é o fim da expedição, se subir e começar a piorar, é normal em traumas cranianos não acontecer nada imediatamente, mas depois a pessoa piorar. Tenho a frente a mais técnica parte da escalada entre o três e o quatro. Descanso meia hora e como a dor vai melhorar resolvo continuar. Mais uma decisão difícil nesta montanha que está se revelando muito, mas muito mais difícil do que esperava. Todos dizem que o Cho Oyu e o Manaslu se equivalem, mas discordo radicalmente. O Manaslu é uma montanha muito mais perigosa e difícil tecnicamente do que o Cho Oyu.
O Paul chega ao campo quatro hipotérmico, o esforço da escalada com peso esgotou suas reservas. Montamos o acampamento o mais rapidamente que o vento permite, o Paul entra em seu sleeping bag e eu aqueço água para ele. Sabemos que não teremos forças para escalar na madrugada seguinte. Ficar mais 24 horas a esta altitude não é recomendável, você só se desgasta, só anda para trás, mas não temos alternativa. Tentamos comer, mas o apetite simplesmente desapareceu e olhamos com revolta para a comida que temos. Passamos o dia tentando nos hidratar e a meia noite começamos a nos prepararmos para o ataque ao cume. O vento está ainda mais forte e sair do frágil abrigo da barraca é muito difícil.
O dia de cume é o mais fácil tecnicamente de toda a escalada. Uma longa rampa até o cume final. Para chegar lá é só colocar um pé em frente de outro, mas após uma hora eu sei que nem isso serei capaz de fazer. Cheguei ao final de minhas forças. Se prosseguir sei que não terei forças de voltar. Assim se morre em montanhas de 8.000. Você segue, segue até as forças se acabarem sem considerar que descer nestas altitudes é quase tão desgastante quanto subir. Daí você senta e dorme para sempre. O frio está muito intenso. Na velocidade absurdamente lenta que estou não produzo calor algum e meus dedos reclamam.
Depois de insistir em continuar a escalada após a avalanche, após a longa semana de mal tempo, após a pancada do bloco de gelo na cabeça sei que finalmente não há como seguir. Cheguei no final. Se quero viver tenho de voltar para a barraca. Olho para trás e ela está logo ali, não subi quase nada. Paul resolve seguir, mas sei que ele também não chegará muito longe.
Nossa volta ao campo dois neste mesmo dia é uma epopéia. A cada 10 metros verticais temos de parar e descansar. O que normalmente levaríamos 3 horas levamos oito. Parecemos dois zumbis fazendo um esforço imenso para colocar um pé na frente do outro. Nas partes técnicas temos de fazer um esforço imenso para não cair montanha abaixo. Rapelamos mesmo nas encostas mais suaves para garantirmos que não faremos nenhuma besteira. Ao chegarmos no campo dois, quase à noite, respiramos aliviados. Depois de uma noite de descanso seguramente estaremos melhor. Mas, a exaustão é tão grande que não conseguimos comer. Isto é muito estranho, sabemos que fizemos um esforço imenso, sabemos que precisamos e, no entanto não conseguimos, simplesmente não conseguimos.
Neva forte a noite toda. Pela manhã não se vê nada. As trilhas estão cobertas, as cordas fixas soterradas pela neve, a visibilidade de não mais do que 5 metros. Saímos da barraca com neve até o joelho. O Paul que está mais forte vai abrindo trilha afundando às vezes até a virilha. Sei que como estamos não chegaremos no campo um. Estamos fracos, não há mais ninguém na montanha apenas Victor, um colombiano no campo 2. Seguimos pelas cordas quando encontramos, por instinto quando não. As cravasses que sempre foram enormes agora estão monstruosas. Ficamos olhando para suas profundezas e sem ter nada mais o que fazer saltamos sabendo que se um cair será o fim. Uma está tão grande que temos de fazer um sistema de tirolesa com as mochilas. Com elas nas costas não haveria chance de saltar. A cada uma delas me despeço da vida e só salto porque realmente não há o que fazer.
A escada está novamente menor do que a cravasse e fica lá balançando presa somente por cordas. Em um momento dramático o Paul prende os dentes dos crampons nos degraus da escada e não consegue soltar, fica lá precariamente equilibrado tentando soltar a bota. Estamos com mochilas monstruosas com tudo do acampamento quatro e do dois. Chegamos ao campo 1 após horas de desespero e meu coração se enche de alegria, o Milton está lá nos esperando para ajudar-nos na última etapa rumo a segurança. Saímos às 16 horas sabendo que chegaremos à noite, mas a idéia de passar outra noite na montanha é impensável. Mesmo neste trecho as cravasses estão enormes e mais uma vez temos de saltá-las. Todas essas, se fosse no Everest estariam com escadas? O Rinji, meu amigo sherpa que é nosso base camp manager envia um amigo seu para ajudar-nos e ele nos encontra no meio do caminho do um para o base e toma minha mochila. Mesmo assim meu ritmo é desanimadoramente lento.
Está nevando muito, não parou desde de noite. Na luz da minha head lamp só vejo a área do foco dela. Ao redor tudo se mistura. Meus lábios são duas úlceras muito sensíveis e a cada segundo uma bolinha de neve dura como gelo atinge causando uma dor lancinante. Cubro com o casaco, mas não consigo respirar. De repente o sherpa desaparece dentro de uma cravasse, nosso último obstáculo para a segurança. Meu coração para de bater. Ele está sem crampons (sherpas raramente usam entre o base e o um e não está clipado na corda fixa, eles fazem tantas vezes este caminho que se sentem imunes à gravidade). Esta cravasse era até três dias atrás razoavelmente pequena, mas a ponte desabou e agora é bastante larga com um pilar no centro, mais abaixo que as bordas, muito instável. Lá está ele tentando subir a cavalo no pilar.
Eu e o Paul simplesmente vemos sem fazer nada. O Milton reage e vai tentar ajudar, mas ele já está conseguindo escalar de volta com suas botas sem crampons. As oito da noite desabo dentro da barraca refeitório aquecida e iluminada. Ofegante não acredito que estou a salvo. Quantas vezes durante estas 60 horas achei que não chegaria?
No dia seguinte descemos para Sama Gaon e 24 horas depois estou em Katmandu após um dos vôos de helicóptero mais espetaculares do planeta. A estreita garganta que percorremos por sete dias para chegar ao campo base de cime parece uma serpente prateada refletindo os raios de sol de um dia lindíssimo. Como pode tanta beleza conviver com tanto sofrimento? Do conforto da cabine do helicóptero olho para o Manaslu e tento me imaginar lá no meio da nevasca, do frio, do desespero. Mas, daqui o que vejo são seus dois picos brilhando inocentes à luz da manhã. Torço pelo Victor, o colombiano que deixamos no campo dois confiante em seus planos para o cume.
Resta a pergunta: valeu a pena? Sim, sem dúvidas. Foi para o Manaslu não para fazer cume e sim para descobrir se conseguiria fazer cume, para achar meus limites. Todo esporte busca superação e montanhismo também. Depois do Cho Oyu e do Everest com apoio de sherpas e oxigênio suplementar queria saber o que conseguiria fazer. Acho que descobri. Claro que vou continuar escalando a claro que vou continuar escalando 8000s, isto tudo é minha vida, minha paixão e minha profissão. Mas, sei hoje até onde posso ir.
No próximo ano: Cho Oyu, McKinley e Ama Dablan!