Esta coluna continua a anterior. Nela, você conhecerá como o Brasil assumiu o formato que hoje o caracteriza e quem foi o gênio que negociou naquela época remota a nossa fronteira.
A Fronteira do Brasil (II)
Passados 2½ séculos da época de Tordesilhas, a Espanha, antes o império mais poderoso do mundo, era uma nação decadente, com um monarca envelhecido.
Portugal era um reino rico, devido ao ouro mineiro, mas seu domínio tinha-se reduzido praticamente ao Brasil – Dom João V, já ao fim de seu longo reinado, tinha sua saúde enfraquecida e havia dissipado a riqueza de seu reino.
E Espanha e Portugal tinham se aproximado – a rainha de Espanha era a portuguesa Dona Bárbara e a esposa do delfim de Portugal, o futuro Dom José I, era uma princesa espanhola.
Há trinta anos se pensava num acordo de fronteiras na América do Sul, que foi muito facilitado pela carta preparada pelos portugueses, o famoso Mapa das Cortes. Ele permitiu a visualização das demandas das duas partes, seduzindo (na realidade, enganando) os espanhóis.
Portugal desejava manter os Sete Povos, os territórios auríferos do Oeste em Minas, Goiás e Mato Grosso, bem como a enorme Bacia Amazônica. Espanha queria recuperar Sacramento, manter seu controle sobre o Prata, afastar as pretensões portuguesas às Filipinas e conter definitivamente a expansão rival.
E assim se pôs termo às disputas passadas e futuras, pela assinatura em 1750 do Tratado de Madri, no que foi um incrível sucesso da diplomacia portuguesa. O Tratado foi sucessivamente anulado e modificado na região dos Sete Povos, porém praticamente restaurado durante o Império.
Vale comentar que a Espanha possuía no mundo inteiro territórios gigantescos: os tesouros do Vice-Reinado do Peru, a América Central e o Novo México, o Sahara espanhol e as Filipinas.
Talvez não ambicionasse a impenetrável e desconhecida terra brasileira. E quem sabe esperasse que Portugal viesse a ser no futuro absorvido por hábeis manobras matrimoniais da sua realeza.
Foi desta forma que ganhamos praticamente um país inteiro em troca de uma fortaleza.
O Mapa das Cortes foi uma maneira genial de fazer o Brasil tanto quanto possível caber dentro da linha de Tordesilhas e de encurtar tanto o Oeste como o Amazonas, tornando inofensivo o enorme avanço respectivamente dos bandeirantes e dos missionários no interior remoto do país.
O mapa que inventou o Brasil, como disse Júnia Furtado a respeito de outra carta, a de D’Anville, que lhe é contemporânea e tecnicamente mais correta.

Mapa das Cortes, que serviu de base para o Tratado de Madri. Note o avanço amazônico a oeste, a largura da região sul e os muitos detalhes geográficos. A linha de Tordesilhas não é incluída.
Mas Synésio Goes retruca: O Mapa das Cortes, sim, é o mapa do Brasil. Cinturado no centro, com erros de longitude, com o Rio Amazonas comprimido, tudo é verdade; mas ninguém ao olhar para ele deixará de reconhecer o nosso território. É o primeiro mapa em que o Brasil aparece do jeito que tem agora, e quem o organizou foi Alexandre de Gusmão.
O Tratado de Madri consolida duas ideias que há muito tempo eram cogitadas. A primeira é a do direito de posse, ou seja, da ocupação natural. Os territórios pertenceriam a quem primeiro neles se estabelecesse.
A segunda é a das divisas naturais: tanto quanto possível, as fronteiras deveriam acompanhar a origem e o curso dos rios e os montes mais notáveis, como diz o Tratado. E, de fato, a quase totalidade de nossa fronteira é natural. O que me leva agora a um outro assunto.
O primeiro nome dado ao Brasil foi o de Ilha de Vera Cruz, uma hipótese razoável, pois é mais natural atribuir a uma terra desconhecida a condição de ilha do que de continente.
Mas, durante quatro séculos, houve a suspeita de que o país fosse de fato uma ilha. Ainda no século do descobrimento, um navegador a serviço da França disse que os dois grandes rios continentais, o Prata e o Maranhão, font de tout le Brésil une île.
Ao longo de todo esse tempo, muitos escritores sustentaram o mito da Ilha Brasil, a ideia de que haveria na América do Sul um território de nítidos contornos fluviais, percebido pelos tupis, conquistado por bandeirantes e legalizado pelo Tratado de Madri, como conta Synésio Goes.

Configuração do Brasil na época das capitanias hereditárias (século XVI).

Situação do Brasil pelo Tratado de Madri, de meados do século XVIII.
A ideia não é tão absurda como parece: imaginava-se um arco fluvial contínuo formado pelos rios Paraná-Paraguai-Madeira-Amazonas. E, de fato, os altos rios Paraguai e Guaporé (um dos formadores do Madeira) quase chegam a se tocar – o que conectaria as duas grandes bacias continentais. Note que os quatro cursos acima percorrem algo como 14 mil km em território nacional.
Se você olhar a carta do Brasil, notará que o Madeira corre num rumo nordeste e não norte, ou seja, aborda o Amazonas nem tão longe de Manaus.
O traçado da Ilha Brasil seria mais realista se seu rumo fosse noroeste e sua foz, a oeste, próxima da fronteira – exatamente onde está o Rio Javari, o derradeiro do país. Aliás, o trecho Madeira-Javari é o maior de nossa fronteira sem limites naturais.
O último conhecido defensor desta ideia foi o influente historiador Jaime Cortesão, que acreditava ainda em 1950 que o mito de uma ilha influenciou a conquista de nosso território. Num certo sentido, o Tratado de Madri converteu esse mito em realidade.
O homem que brilhantemente arquitetou o Tratado de Madri foi um brasileiro, nascido em Santos. Tomou o nome de Alexandre de Gusmão de seu padrinho, dono de um colégio em Salvador onde estudou. Viajou para Portugal com seu irmão mais velho que era padre e se formou em Coimbra.

Alexandre de Gusmão (1695-1753) emigrou jovem para Portugal e foi por 20 anos secretário do Rei. Foi o maior conhecedor da Colônia e o autor intelectual do Tratado de Madri.
Foi por cinco anos secretário do novo embaixador português em Paris, cuidou por sete anos em Roma dos assuntos eclesiásticos do seu Rei, a quem assessorou como secretário por mais vinte anos, até sua morte.
Do que li, depreendo que Gusmão funcionava como o equivalente a um Diário Oficial. Foi o equivalente a um ministro do Reino, embora nunca tivesse tido este título. Gusmão morreu pobre três anos depois de seu Rei.
Sua vida não foi fácil: não pertencia à nobreza, não tinha posses e sequer era nascido em Portugal. Como secretário do Rei, redigia a sua correspondência, quando muitas vezes repreendia os poderosos – o que fazia de forma curta e grossa, como era seu estilo.
Temido e invejado, sua carreira decaiu com a morte do Rei, passou a sofrer de gota, perdeu sua casa num incêndio e morreu sem que seus bens sequer pudessem cobrir metade da sua dívida.

Dom João V, que governou por mais de 40 anos. Foi o mais absolutista dos monarcas portugueses. Procurou desenvolver seu país, mas acabou capturado pela aliança com a Inglaterra.
As cinzas de Gusmão foram removidas em 1965 para o Brasil numa urna que hoje se encontra no Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. No livro de óbitos da igreja onde tinha sido enterrado em Portugal consta que faleceu sem sacramentos, por morrer de estupor.
Esta foi uma morte indigna para um homem tão formidável.