Continuo aqui o meu relato sobre esses outros Dedo de Deus que vamos encontrando pelo Brasil: depois de Rio e São Paulo, agora as regiões mais distantes na Bahia, em Mato Grosso e em Rondônia.
A Mão de Deus (Parte II)
III
Mas agora, para relatar essa história, vou lhe pedir que me acompanhe até o litoral baiano. Tinha completado a travessia Porto Seguro-Prado, que percorre mais de uma centena de km nas praias deslumbrantes do que hoje é chamado de Costa das Baleias. Contei em um livro como fomos até Itamaraju esperar o ônibus de volta, que saía de um bar.
Lá havia um casal de idosos, bem-vestidos e nervosos, eram os únicos que portavam passagens. Quando o ônibus chegou, o cobrador disse: Só sobe quem não tem bilhete! Entramos junto com as reclamações desesperadas dos velhinhos, enquanto eu meditava sobre a bizarra lógica baiana.
A cidade de Itamaraju era a antiga Vila do Escondido, que prosperou à base da extração de madeira, da criação de gado e da plantação de cacau – até buscar agora o crescimento através do turismo de aventura. Na época daquela travessia, mal tive tempo de reparar no impressionante monólito estranhamente pousado numa curva da rodovia que percorria o extremo sul da Bahia.

Monte Pescoço ou Dedo de Deus, dependendo do ângulo (Fontes- João Victor Assunção e P. Carvalho).
Era o peculiar Monte Pescoço (aprox. 705 m), que mostrava no seu topo uma improvável plataforma quadrada. Esta era, entretanto, invisível para quem viesse do litoral, que só enxergaria então um espetacular pontão, que chamaria de Dedo de Deus. Assim, os locais o chamam pelo primeiro nome, e os forasteiros, pelo outro.
É um arrogante pico granítico, de geologia antiga, pertencente à mesma Serra do Mar de seus irmãos fluminense e paulista. Integra um esplêndido conjunto de formações com perfis sugestivos e altitudes moderadas: Morro Grande, Pedra do Cachorro, Cabeça de Dinossauro. Os habitantes da região os frequentam, mas mostram uma evidente perplexidade diante do inacessível Monte Pescoço.

Visão da montanha mostrando a base, o ombro e o pescoço (Fonte – Gutp Galavotti).

Monte Pescoço ou Dedo de Deus, dependendo do ângulo (Fontes- João Victor Assunção e P. Carvalho).
À frente e mais alto, ele domina toda a serra. Mas não existem apenas as rochas salientes e emocionantes nessa serrania curiosamente espalhada. Elas são abraçadas por uma verdejante mata atlântica, que esconde nas redondezas a mais antiga árvore de pau-brasil até hoje conhecida, anterior mesmo à descoberta do país.
Há histórias quase esquecidas sobre a conquista da montanha por um casal de japoneses e seu amigo chamado Macaco. Sabe-se que uma equipe carioca novamente visitou seu cume no fim da década de 1980. A dupla de escaladores Ronaldo Costa e Marcelo Paes galgou com habilidade pela chaminé final de sua face.

A rota de escalada. Base 1 – mata, Ombro 2 – rampa e Pescoço 3 – escalada. A fonte é o blog de Caio Afeto.
E agora, com a união entre paulistas e baianos, começa um movimento de abrir novas vias nessa formação difícil e diversa. Picos destacados e dominantes como este costumam receber nos seus cumes livros protegidos em caixas, para as anotações de seus conquistadores. Enquanto escrevo essas linhas, talvez o livro de cume recém-instalado conte já com meia dúzia de presenças.
A ascensão pela via normal desse Dedo de Deus baiano não é curta – são 600 metros. É feita em três partes: inicialmente pela mata de encosta, depois através de uma íngreme rampa rochosa, que exige a partir daí uma escalada relativamente exigente de grau VII.
Usam-se proteções fixas e móveis e pode-se ou não passar pela chaminé acima. Os felizes aventureiros que alcançam o cume costumam festejar com rojões – e são respondidos pelas luzes da cidade.

Croquis da escalada de Caio Afeto do pescoço, pela variante Terra à Vista.
Mas o tempo passa e o perfil arrojado do Pescoço continua atraindo os aventureiros. Pouco depois de escrever essas linhas, um grupo de mineiros e goianos conquistou em seis dias a face norte. Ela evita as canaletas seguras da via normal e sobe por uma parede mais exposta e negativa, exigindo alguns bivaques na montanha. Quando você ler este artigo, confio que haverá novas rotas, batizadas com os nomes sugestivos da imaginação dos escaladores.
IV
O Roncador é uma gigantesca formação em arenito, que se estende do Brasil Central até as portas da Amazônia. Seu aspecto é irregular, variando de íngremes paredes rochosas a encostas verdejantes e a discretas elevações descontínuas.
Ao longo de seus gigantescos 800 km arqueia-se no sentido de sul para norte. Começa nas águas do Araguaia em Barra do Garças no Mato Grosso e termina em Vila Rica na divisa do Pará, junto aos afluentes do Xingu.
Foi nesta região que um século atrás Percy Fawcett iniciou sua expedição. Era um inglês aventureiro, um dos últimos da Era Vitoriana, que teria inspirado o personagem de Indiana Jones. Ele pretendia achar um novo Eldorado na Amazônia: chamou-o de a cidade perdida de Z.

Vista do deslumbrante Vale dos Sonhos, o fantástico panorama dos altos do Roncador.
Mas quem se perdeu na selva foi esse explorador arrogante, fato cercado desde então por muitas lendas e buscas. Foi lá também que começou a famosa expedição ao Xingu dos irmãos Villas Boas – e eles encontraram junto aos índios kalapalo o que teriam sido os ossos de Fawcett.
Se você percorrer o Roncador rumo norte, logo conhecerá suas cênicas paredes no Vale dos Sonhos. Lá em cima, o contraste entre a planície infinita e a aspereza da serra é impressionante, iluminado por um sol sempre brilhante e abraçado por um céu poderoso. Um visual realmente único, a meu ver o mais belo de toda a Serra.

O modesto Dedo de Deus (503 m) é a espinha rochosa no fim da parede do Bico de Pedra (Fonte – Portal da Amazônia).
Repare do alto o panorama do vale, que encontrará lá embaixo a rodovia de acesso no chamado Bico da Serra. Este é um impressionante penhasco terminado por uma agulha ambiciosamente conhecida como Dedo de Deus.
É no interior desta região que se encontra o ponto culminante de toda a serrania, acima de 900 m, mas o Dedo de Deus apenas alcança 503 m.
Talvez você se decepcione com tão modesto tamanho. Mas o arenito não tem a geologia do granito, é uma rocha frágil e mutável, de altitude em geral mediana. Por certo este Dedo não deve ser escalado como os outros, não passa de um dedo mindinho – mas mesmo assim tem um dono poderoso.

Vista de baixo da espinha do Dedo de Deus no Roncador.
Além disso, se pode ser caracterizado como um dedo específico (à semelhança do dedo indicador que abriu esse relato), então mostra uma certa vantagem sobre os dedos paulista e baiano, que são apenas genéricos.
V
Vou levar meu leitor para o Estado brasileiro mais a norte: Roraima, cuja capital é a única do país no Hemisfério Norte. Acredito que esta região tenha dois aspectos diferentes: a densidade dos povos indígenas, que lá compõem a maior população no país, e as peculiares mesas planas de seu relevo, chamadas de tepuys. A mais elevada delas é exatamente o conhecido Monte Roraima.

O Tepequém é uma enorme mesa rochosa plana, uma formação comum na região (Fonte – Adson Soares-Divulgação).
Existe no interior do Estado um tepuy mais modesto, é a Serra de Tepequém. Está a 200 km a noroeste de Boa Vista e próxima à divisa com a Venezuela.
É um enorme bloco rochoso de forma tabular, de geologia muito antiga (como é comum no Brasil), formado pelo arenito. Entretanto, aqui essa rocha foi fortemente compactada, sendo mais consistente e maciça do que o arenito do Roncador.
É uma região até certo ponto exuberante, com cobertura de vegetação amazônica intercalada com campos de arbustos e gramíneas.
Não fica tão longe da Gran Sabana, a região venezuelana que abriga um dos maiores parques naturais do mundo, com variada vegetação de savana arbustiva, enorme diversidade animal e abundância de quedas d´água. O Tepequém é também rico em águas, contendo a bacia do Rio Amajarí – aliás, é visitado pelas cachoeiras e não pela serra.

O compacto arenito do Tepequém.
Um dos formadores do Rio Branco, que atravessa todo o estado, encontra-se a leste. Lá foi estabelecida a primeira Estação Ecológica do país, a EE Maracá.
Existem dois tipos de reservas intangíveis, ou seja, vedadas à visitação pública, e esta é uma delas – o outro tipo sendo chamado de Biológica. Você já conheceu outra EE, a da Jureia, e sabe que são extremamente vigiadas. Maracá é um gigantesco arquipélago de água doce.
O Tepequém é atravessado por um longo vale que dizem ter sido um dia a cratera de um vulcão. Uma lenda macuxi conta que esse vulcão místico e zangado, que queimava as roças próximas, só foi aplacado com a oferenda de três belas índias virgens. Suas lágrimas se tornaram diamantes.
O platô do Tepequém abriga duas formosas cachoeiras e é fronteado por três pequenas serras. Estas simbolizam as três virgens e as cachoeiras mostram o caminho por onde percorreram suas lágrimas, motivo da alegria dos futuros garimpeiros.
De fato, o Tepequém foi alvo de garimpos de ouro e diamante por nada menos do que oito décadas, inclusive com apoio oficial. Hoje a ocupação foi trocada pela lavoura, pelo gado e pelo turismo. Existe uma dezena de poços e cachoeiras na região, bem como caminhos que serpenteiam pela serra, até sua altitude de 1.100 metros.

A Mão de Deus – uma pequena plataforma rochosa, contemplando o mundo verde (Fonte – Portal da Amazônia).
Talvez a mais conhecida das águas seja a Cachoeira do Paiva, que verte depois de uma imensa corredeira. Uma modesta trilha conduz até uma laje suspensa, na altitude de talvez 600 metros. É uma visão linda, debruçada sobre os mosaicos verdes dos campos, numa delicada oposição entre a pequena base rochosa e o enorme panorama. Este rochedo é chamado de Mão de Deus.
Então, não precisei buscar um quinto Dedo de Deus. Seu senhor me ofereceu logo toda a sua Mão.















