Esta é a terceira e última coluna sobre o impacto ambiental e social da mineração em Minas Gerais. Aviso desde já que acho a mineração uma estúpida agressão à integridade do ambiente, ao usurpar o seu interior ancestral.
A Morte de um Sapo
Conceição do Mato Dentro é uma vila mineira relativamente modesta, com menos de 20 mil habitantes – resultou, como tantas outras, da busca do ouro a partir do começo do século XVIII. Ele foi extraído nas escarpas da serra, depois que os índios botocudos foram convenientemente afastados.
Você sabe, isto representou muita prosperidade no período colonial, com igrejas barrocas, belas praças e amplos sobrados, seguida por uma longa estagnação nos séculos seguintes, quando sua população se voltou para a pecuária de leite e a agricultura de subsistência.
Porém, existem diferenças. Conceição é um município imenso, com 1.700 km², ou 2½ vezes o tamanho médio em Minas. E está situado numa região especial, ao longo do bordo da Serra do Cipó – e da do Intendente, que é seu prosseguimento a norte, ambas compondo parques naturais populares.
O que lhe atribui a presença de cachoeiras e cânions magníficos; de uma altitude elevada e um clima ameno; de paredes, cristas e caminhos serranos, com visuais únicos; de uma flora variada de cerrado a oeste e de mata atlântica a leste. Sobretudo, é conhecida por abrigar a Cachoeira do Tabuleiro, a maior do Estado, que impressiona pelo gigantesco cenário que a contém.

Vista de Conceicao do Mato Dentro, abraçada pela Serra da Ferrugem e vigiada pelo Pico do Soldado.
Conceição é também um município peculiar por possuir três unidades de conservação próprias. A primeira e maior delas é o Parque Municipal do Tabuleiro, que permite acessar por baixo a ameaçadora cachoeira. As outras duas são serranas: a da Serra da Ferrugem e do Salão das Pedras – delas, é possível contemplar os muitos acidentes da geografia mineira. Por ser próxima da conhecida Serra do Cipó, a região experimentou um aumento da visitação, principalmente nas suas águas.
Meu primeiro contato com Conceição do Mato Dentro foi pousando lá, ao voltar de excursões na Serra do Cipó. Sempre prefiro caminhar no inverno e fazia um frio atroz ao entardecer. Acontecia a Copa do Mundo e a Prefeitura tinha instalado um telão na praça principal, onde ficava nosso hotel. Foi um dia longo, jantamos e fomos dormir.
Começou um dos jogos, e foi absurdo, com gols a cada poucos minutos, e dos dois times, acho que um europeu e outro asiático. O único assistente naquele frio da praça era um bêbado. Fora o locutor alucinado, o bêbado saudava os lances com urros, era impossível dormir. Melhor foi descer naquele frio e fazer companhia a ele. Só que os gols sumiram e apenas nos sobrou mesmo o ar gelado daquela noite serrana.

Mapa de Conceição do Mato Dentro, indicando os locais de mineração.
Passaram-se anos até que voltasse lá, desta vez no sentido inverso. Ao parar num posto de gasolina nos limites da cidade, senti algo estranho e vim a saber que a vila passava por uma transformação. A razão era o minério de ferro.
Diferentemente do que se pensa, esta é uma matéria prima das mais baratas – vale 1/20 do café, 1/12 do alumínio e 1/3 da soja. Porém no Brasil ele permite ganhos enormes, pois nossas minas são a céu aberto e nossa concentração de 50 a 60% é das mais altas do mundo.
Entretanto, no Quadrilátero Ferrífero mineiro, as jazidas estão se reduzindo e existe procura por minério próximo, mesmo que de menor teor, como o de Conceição, da ordem de 40%. A Anglo American, uma gigantesca empresa global, lá construiu o maior mineroduto do mundo – as entranhas da terra mineira fluem para o litoral como lama cinzenta, antes de serem exportadas pelo mundo.
Conceição é belamente abraçada pela Serra da Ferrugem – mas é assustador observá-la, sabendo que foi nela autorizado o desmonte de 26 km. Passado um tempo, o gentil desenho da crista será aplainado, e sua extensão terá sumido, escoada pelo mineroduto e devorada pelos processadores do minério.
Anos depois, passando pela região, pensei estar tendo uma miragem quando, de longe, senti falta de um primeiro pedaço da serra – se tivesse voltado tempos depois, sentiria maior falta ainda.
Mas não é em Conceição e sim num de seus humildes distritos que a destruição acontece. É no Sapo que chegou a trabalhar durante a construção do complexo da Anglo o equivalente a 20% da população do município. Quando lá estive os aluguéis chegavam aos níveis de São Paulo e o valor da terra havia decuplicado.

A vila de S. Sebastião do Bonsucesso, com a Serra do Sapo ao fundo.
É ninguém menos do que um Promotor de Justiça que conta como o Distrito de São Sebastião do Bonsucesso veio a ser conhecido como Sapo. A rica dona da Fazenda da Conquista tinha um escravo, que comia sentado ao chão os restos de comida que ela lhe deixava. Isso mesmo é o que Sapo quer, dizia ele. Mais tarde, João Sapo recebeu uma terra onde ergueu uma capela em honra a São Sebastião, que foi a origem do vilarejo.
No fim do século XIX o Sapo dispunha da capela, do cemitério e cerca de 20 casas. Hoje, pouco passa de 700 moradores, com aquele desenho ingênuo dos pequenos povoados. Ele foi descrito como um típico arraial minerador, que se manteve praticamente intacto até muito recentemente, sendo que, até cerca de quarenta anos atrás, a região era permeada por tropas que faziam as ligações comerciais entre as várias localidades.
Mas agora, depois de cinco anos de construção, o Sapo tem o ambíguo orgulho de abrigar as impressionantes instalações da mina que leva o seu nome: nada menos de 4 mil hectares de planta industrial, quase o tamanho de um parque natural, e mais de 500 km do maior mineroduto do mundo, que atravessa 30 municípios até o Porto do Açu, no norte do Estado do Rio. Um complexo gigantesco para escoar todo ano mais de 26 milhões de toneladas de nosso solo.

A planta da Anglo American no Distrito do Sapo, uma fortuna de US$ 14 bilhões.
Enquanto isto, os órgãos de governo tentam criar um perímetro de tombamento que inclua a serra, as nascentes e o povoado. Tentam também preservar o bioma ameaçado. Existem nesta região os raros campos rupestres sobre a canga ferruginosa, cuja reposição é impossível, por serem únicos. Há também ocorrências de pinturas rupestres da tradição Planalto, comuns a toda a região.
Agora aparece um novo sapo nesta história: os pesquisadores encontraram na região um anfíbio inédito, um tipo de perereca verde até então desconhecida. A vida de uma perereca provavelmente não ultrapassa os 10 anos, e a do Sapo deverá estar extinta em 40 anos, quando a mina acabar. Porém a Anglo American sobreviverá a isto, pois passará então a explorar a Serra de Itapanhoacanga, no município próximo de Alvorada de Minas.

Esta é a Serra de Itapanhoacanga, num distrito de Alvorada de Minas. Quando o Sapo se exaurir, caberá a ela entregar seu minério, para que a Anglo possa continuar a prosperar.
A comunidade local claramente não está preparada para defender-se dos grandes riscos ambientais e sociais, face à competência centenária da Anglo American em explorar a natureza em todo o mundo.
A descaracterização do relevo e da vegetação, a apropriação das águas dos rios que já começam a faltar, a poluição atmosférica que se precipita sobre os pulmões, a criação de dejetos retidos nas ameaçadoras barragens de contenção são algumas das horríveis consequências esperadas no meio ambiente.

O maior rio de Conceição é o Santo Antônio, da bacia do Rio Doce.
O avanço da mineração sobre as cidades onde opera provoca a alteração dos laços sociais e das relações econômicas, e a perda da tradição, da cultura e da paisagem. As pessoas são reassentadas, o ambiente é degradado e a memória social acaba perdida. A arrecadação da atividade mineral é reduzida por isenções e manipulações fiscais – desconfio que os altos custos sociais e ambientais sequer sejam compensados pelos benefícios econômicos.
Se você visitar o site da Anglo, pensará que curiosamente se trata de uma ONG benevolente. Afora os anúncios de empregos, cursos e treinamentos, você conhecerá seu envolvimento em ações sociais como a capacitação dos jovens, a restauração da igreja matriz, o apoio aos queijeiros, a gestão das comunidades, a recuperação das trilhas, a preservação do patrimônio – incluindo festival de gastronomia e doação de brinquedos. Claro que são práticas louváveis, porém concebidas por uma empresa com propósitos a meu ver sinistros.
Mesmo não querendo ser catastrófico, lembro alguns outros fatos. Primeiro, Conceição está a apenas 60 km (e o Sapo a metade disso) a sul do Serro, onde ocorre uma crescente investigação mineral, com mais de meia dúzia de pedidos de exploração.
O projeto da empresa Herculano (que o herdou de ninguém menos do que a Anglo) fica a apenas 6 km do centro. Ele está sendo duramente combatido pela população, porém nem por isso tem recuado. No município, o minério de ferro ocorre associado ao aquífero – então, tanto as águas superficiais como as subterrâneas serão afetadas.

A Mineração Herculano.

Serro, a Vila do Príncipe.
Descrevi num capítulo anterior porque acho que a sociedade de Itabira não foi capaz de se opor à Vale, sucumbindo ao seu poder. Pois tenho a mesma impressão de Serro, como uma comunidade refratária aos forasteiros, encerrada em seus costumes e provincianamente pouco associativa. Se não conseguir expelir as tais Herculanos que a sobrevoam ameaçadoramente, permitindo que explorem o seu território, desconfio que acabará sendo tragada por elas.
E, logo a seguir, está a preciosa cidade colonial de Diamantina, também ela tombada pelo IPHAN e também ela dotada de riqueza mineral. Não duvido que, na sua caminhada norte, a busca mineral acabará alcançando os seus domínios. Terão a natureza e a sociedade dessas duas vilas coloniais, tão especiais e queridas, o vigor para sobreviver ao contágio da mineração?