A história começa alguns meses antes, quando conheci no Orkut a Rosa, uma montanhista de São Paulo, que parecia ser uma pessoa muito interessante e queria informações sobre o PP, pois estava organizando um grupo para subi-lo no final de agosto. Logo me coloquei a sua disposição, prometendo ir junto. Os meses foram passando, trocamos várias mensagens eletrônicas, até que chegou o dia combinado. O Helton, grande parceiro de montanha, ficou interessado e resolveu aceitar meu convite e ir junto. Na semana anterior, fui acompanhando a previsão do tempo, e a cada dia que passava, piores eram as expectativas: a aproximação de uma frente fria fazia qualquer plano de ir para a montanha parecer maluquice. Como já estava tudo combinado com o pessoal de São Paulo, não queríamos deixá-los na mão e lá fomos nós!
A turma de Sampa chegaria num sábado pela manhã, e na noite anterior nós já nos mandamos para Fazenda Pico Paraná, para nos encontrarmos com eles na manhã seguinte e subirmos juntos. Com o Helton vieram dois amigos dele, o Carlos Aurélio e o Cláudio, este último nunca havia estado numa montanha.
No caminho para a Fazenda, tive um mau pressentimento: percebi que era a primeira vez que levava um isolante térmico para um acampamento, provavelmente isso traria conseqüências apavorantes!
Chegando lá, fomos surpreendidos por uma noite daquelas que só existem em lugares afastados da civilização, com o céu totalmente aberto e estrelado. Como é normal em qualquer montanhista, começamos a sentir um comichão, aquela vontade de subir já de noite nem que fosse o Caratuva ou o Itapiroca, e bivacar sob as estrelas. Porém, como tínhamos o compromisso com a outra turma, não passaria de vontade. Além de que o Cláudio nunca tinha feito uma trilha de dia, e seria imprudência demais levá-lo à noite.
Então eis que surge ela, a dama da noite! Estava conversando com o Dílson na frente da casinha, quando veio uma guria falar com ele também. Ele resolveu nos apresentar, e para nossa surpresa já nos conhecíamos do Orkut… era a Julliane, que há algum tempo trocava recados comigo! Após breve conversa, eis que surge o convite impossível de recusar: ela estava subindo com uma turma durante a noite!
E agora, o que fazer? Nossa consciência nos mandava ficar e esperar os outros, mas nosso espírito montanhista nos dizia para seguir e enfrentar os desafios de uma caminhada noturna. Em menos de dois minutos eu e o Helton já estávamos decididos, o problema era convencer os outros dois, principalmente o Cláudio, que além de tudo, estava sem lanterna! Carlos sacou sua lanterna de gatilho, uma patente genial, que para carregar a bateria utiliza uma espécie de dínamo acionado por um gatilho manual. Na prática, significa escutar a noite inteira um nhec-nhec-nhec-nhec-nhec-nhec-nhec-nhec de levar a loucura o mais calmo monge budista! Como estávamos num grupo grande, com várias lanternas, era só andarmos juntos e não haveria problema para quem estava sem iluminação.
E lá partiu o comboio, por volta das onze e meia da noite. No silêncio da mata, era fácil de localizar uns aos outros: bastava escutar as risadas, os doidos imitando Silvio Santos ou cantando “Pedro de Lara lalalalalala…”, ou mesmo o ininterrupto “nhec-nhec-nhec-nhec-nhec…”.
Paramos na Pedra do Grito, onde como de costume houve o batismo dos principiantes, subindo na pedra. Tomamos um pouco de ar e seguimos adiante. Logo chegamos ao Lago Morto, onde foi feita outra pausa para descanso. A Ju e mais um cara passaram reto, pois queriam chegar rápido no Getúlio. No cume do Getúlio, outra parada estratégica. Nosso tempo estava terrível! Nunca tinha andado tão devagar! Mas apesar disso, progredíamos num ritmo bem agradável, a noite estava excelente para caminhar, não fazia frio e também não tinha o calor esturricante do dia.
Depois do Getúlio, tocamos direto até a bica da Floresta Encantada. Ali, outra longa parada. Nós, com a Ju e o outro cara, que então descobri chamar-se Fabrício, (e que era um mineiro de Florianópolis ou um catarina de Minas Gerais, algo assim, e que o Helton teimava em chamar de Gaúcho) seguimos um pouco a frente e subimos a Pedra da Corda. Esperamos ainda pela outra turma, de quem nem fiquei sabendo os nomes, mas desistimos quando vimos que eles não tinham mais ânimo pra andar. Não tivemos paciência! Certos de que eles nunca conseguiriam passar pela corda, fomos adiante, pois pretendíamos chegar ainda de noite no Abrigo 1.
Conforme avançávamos as lanternas iam se apagando uma a uma. Ou por conta de uma queda, ou por causa das pilhas fracas, o fato é que lá pelas tantas tínhamos apenas duas lanternas que funcionavam direto, uma delas a minha e a outra, é claro, a nhec-nhec do Carlos! Interessante foi observar que no começo da caminhada os nhec-nhecs ocorriam num ritmo rápido, enquanto que naquela altura do campeonato haviam se resumido a um ritmo bem espaçado: nhec… nhec… nhec… Então, eis que o Carlos fez a descoberta mais feliz de todo o fim de semana: a lanterna possuía um botão, que quando acionado segurava a carga, não sendo necessário apertar o gatilho constantemente! Que alívio! Agora, ao invés de escutar nhec-nhec todo o tempo, era só de vez em quando! Também havia a lanterna do Helton (se não me engano), que havia caído e funcionava de vez em quando. Todas as outras tinham dado boa noite e não funcionavam mais.
E foi assim, meio no escuro, que progredimos passando pela bifurcação do Itapiroca, pelo trecho de paus e pedras, pelo esquibunda, enfim, todo o trecho até o Abrigo 1, onde chegamos com o céu já clareando, às cinco e meia da manhã. Eu, Helton, Ju e Fabrício resolvemos bivacar e o Carlos e o Cláudio montaram a barraca. Nem havíamos nos deitado e avistamos longe na trilha algumas luzes. Pela quantidade de lanternas, parecia ser uma turma grande. O pessoal que nos acompanhou até a bica não podia ser, duvidávamos muito que eles superassem todos aqueles obstáculos durante a noite. Devia ser alguma outra turma que saiu bem depois da gente. Pouco tempo depois, nem tínhamos dormido ainda, e eis que chegaram onde estávamos: inacreditável, eram eles! Não podíamos acreditar, e os recebemos com aplausos, afinal, não é qualquer um que encara uma parada dessas durante a noite. Eles foram dormir numa outra clareira do Abrigo 1.
Dormimos com o sol nascendo. Pouco depois fomos acordados por um cara, depois por outro, era uma turma passando aos poucos. Não contentes em simplesmente passar, paravam para dar bom dia! Deviam imaginar que a gente dormiu a noite toda ali… Enfim, por volta das nove da manhã, já com o sol torrando, levantamos e começamos a arrumar nosso equipamento. Não mais que umas duas horinhas de sono.
Quando saímos o outro grupo ainda estava dormindo. Ficamos sabendo depois que eles voltaram para a Fazenda mais tarde. O calor que fazia já cedo da manhã nos dava uma idéia do que nos esperava na subida da montanha, pois daqui para frente andaríamos quase só pelos campos de altitude, com o sol na cuca. Isso gerou uma breve divisão no grupinho, pois alguns queriam seguir direto até o cume, enquanto outros preferiam ir devagar, aproveitando bem as poucas sombras do caminho. Conforme fomos andando e o calor ia castigando, foi óbvia a decisão de parar em cada sombra, uma vez que tínhamos o dia todo para chegar ao cume.
E assim fomos seguindo, num ritmo que era, como cantávamos, “ritmo, ritmo de festa…”. Pouco antes da primeira escada fizemos uma parada longa, para celebrar os primeiros quinze minutos de caminhada. O lugar era péssimo, uma encosta ruim para abrigar todo mundo, mas tinha sombra! Como pensávamos que era a última sombra antes do Abrigo 2, aproveitamos ao máximo.
Descansados, continuamos até alcançar a base da primeira escada. Logo adiante das escadinhas, eis que surge outra sombra! Sem hesitar, paramos novamente, principalmente porque já era meio-dia. Esta parada foi especialmente longa, pois estávamos “exaustos” após mais de meia hora de caminhada!
Repostas as nossas energias, resolvemos tocar direto até o Abrigo 2. No caminho, como ninguém é de ferro, paramos para descansar na pedra do mirante, onde, enquanto a Ju nos dava um show de escalada, nos deleitávamos com o visual do lugar.
Chegando ao Abrigo 2, buscamos abrigo na Casa de Pedra. Resolvi fazer uma tentativa de achar água, e fui, junto com o Carlos e o Cláudio, até a bica. Após uma curta caminhada, consegui encontrar a bica, da qual vertia apenas areia! A falta d’água era um problema que nos preocupava desde o começo, porém agora mostrava sua real face (estávamos bem no auge da estiagem de 2006). Fizemos um censo e descobrimos que tínhamos dois litros de água para cada um. Era pouco, considerando que restava toda a subida até o cume, além de cozinhar a noite e a volta até o riozinho do Abrigo 1, a água mais próxima. Não tinha nada que podíamos fazer senão economizar água.
Após o merecido descanso, avançamos rumo ao cume. Dali para frente, a subida era para valer, ganhando altitude rapidamente. O Fabrício se destacou na ponta, enquanto eu, Carlos e Cláudio ficamos no meio e o Helton e a Ju ficaram um pouco pra trás. Chegamos quase todos juntos na segunda escada, onde passamos sem mais problemas. Pouco adiante, na corrente, quase escorreguei de volta e não fosse uma mãozinha do Helton, teria ficado feia minha situação. Mas nada além de um joelho esfolado.
Mais alguns minutos e enfim estávamos todos no cume do PP! Alegria, cansaço e remorso se misturavam, uma vez que não podia deixar de pensar na galera de Sampa que abandonamos. Será que eles conseguiriam achar o caminho? Eu sabia que eles estavam bem orientados, com mapas, GPS e etc. Era só questão de tempo e eles começariam a chegar, o que eu temia era qual seria a reação deles ao nos encontrar…
O tempo começava a dar mostras de que iria mudar e o sol já havia se escondido atrás de pesadas nuvens. A idéia de bivacar novamente já tinha sido abandonada, e tratamos de montar as barracas. O vento que aumentava de intensidade começava a preocupar…
Pouco depois, chegou um cara. Fui puxar conversa com ele, e descobri que ele era do grupo de SP! Que alegria ver que eles haviam conseguido! E o melhor, não estavam nem um pouco zangados com a gente! Depois dele, outros dois chegaram ao cume também. Porém foram embora logo, eles iriam acampar no Abrigo 1. Da minha amiga Rosa, nem sinal…
Barracas montadas, hora de encher a barriga! Pra minha surpresa, descobri que fui o único a levar um fogareiro! Então dá-lhe fila pra cozinhar no fogareirinho a álcool! Quando o último terminou de cozinhar seu Miojo, começou um chuvisco, acompanhado de vento forte. Nada de assustar.
Em pouco tempo a chuvinha virou chuva de verdade, e foi a deixa para nos recolhermos. Na barraca do Helton, ele e a Ju tiravam sarro da barraquinha do Carlos, dizendo que ela não agüentaria nem cinco minutos. Rapidamente a chuva forte virou temporal, com ventos que faziam minha barraca dobrar ao meio. Incrivelmente o Cláudio, que estava na minha barraca, dormia calmamente… De certo ele estava pensando que aquilo era normal num acampamento! Mas o vento acalmou e ficou apenas uma chuva comum. “Beleza” pensei “se continuar assim, vai ser uma noite ótima”. Virei pro lado e dormi.
Uma meia hora depois acordo com uma rajada fenomenal, e com gritos de “Socorro” vindos da barraca do Helton. A catástrofe havia começado!!! Meio sem saber o que fazer, se olhava pra fora pra ver o que acontecia ou se ficava segurando minha própria barraca que ameaçava se desmontar, acabei ficando dentro, até diminuir um pouco o vento. Então eu saí e vi uma cena saída do filme Twister: uma barraca com duas pessoas com mochilas cargueiras dentro foi arrancada do chão e deu umas duas cambalhotas, só sendo freada no seu caminho rumo ao abismo porque ficou enganchada nas caratuvas!!!
Foi aí que eu percebi o que estava acontecendo: o temporal havia se transformado num ciclone, num furacão, sei lá… Minha barraca parecia que ia decolar com as rajadas incessantes, o Fabrício e o Cláudio dentro segurando ela para não quebrar e eu fora, inutilmente pregando os grampos especiais, com quase 30 cm, que eram arrancados pelo ciclone e arremessados longe como palitinhos!!!
O Helton conseguiu desmontar a barraca dele, e a Ju veio pra minha. Mas por pouco tempo, o vento estava cada vez mais forte, e não tinha como manter a barraquinha em pé por muito tempo. Por sorte tinha parado de chover. Então optamos pelo óbvio, e desmontamos a barraca antes que ela saísse voando.
Acordei com chuva… Puxei a lona da barraca por cima e continuei dormindo. Por vezes o vento quase parava, mas aí podíamos escutar outra rajada se aproximando ao longe, fazendo um rugido assustador. Menos de uma hora depois acordei de novo, desta vez com exclamações do pessoal, pois o tempo havia aberto e uma miríade de estrelas nos saudava! Levantei e fui me juntar com a turma. Para o lado de Curitiba mais uma infinidade de luzes, as da cidade. O vento continuava muito forte, soprando com rajadas que alcançavam facilmente os 80 – 90 km/h, dando uma sensação de muito frio. Por isso voltamos para nossos leitos. De algum lugar surgiu um pacote de amendoim salgado (provavelmente era do Helton), que foi degustado sem cerimônia dentro do meu saco de dormir! Escutava o Fabrício e o Helton conversando, ambos estavam preocupados com a possibilidade de alguém ter hipotermia, e resolvi provocá-los um pouquinho, cantando:
Hipotermiaaaaa, eu quero uma pra viver!!!
O que levou meus companheiros ao desespero!!! Depois disso não me lembro de mais nada, caí no mais profundo sono. Dormi no chão duro como se estivesse na minha cama. Segundo eles, enquanto os outros se preocupavam se iriam sobreviver, eu roncava feito um urso hibernando! Afinal, eu sabia que mesmo depois de uma tempestade sinistra como a que enfrentávamos, o sol voltaria a brilhar na manhã seguinte…
Fui despertado pouco antes do sol nascer. Um mar de nuvens cobria as outras montanhas, apenas o cume do PP estava de fora. Sem dúvida, é indescritível ver o amanhecer se aproximando após a encrenca que passamos. O vento continuava forte, mas não tanto quanto de noite. Pouco a pouco foi surgindo a silhueta do Ibitirati na escuridão. E assim nasceu um dia mais especial do que os outros: tínhamos sobrevivido!!!
Ficamos lagarteando um pouco no sol, procurando nos aquecer. Enquanto isso fazíamos a contabilidade dos estragos: a barraca do Helton tinha sido rasgada e tinha varetas quebradas, a minha até que estava bem, mas com as varetas quebradas. Só a barraquinha do Carlos estava sem nenhum arranhão, porém tinha sido inundada pela chuva. Guardamos os restos nas mochilas, limpamos a área e assinamos o caderninho de cume. Enquanto fazíamos uma seção de fotos, chegou uma turma que tinha vindo de São Bento do Sul fazer um bate volta. Antes que o vento nos carregasse começamos a descida.
Rapidamente alcançamos o Abrigo 2, e na última pedra antes de chegar nele, eu consegui a façanha de torcer o tornozelo! Por sorte não foi nada grave, apenas doía para pisar. A idéia de fazer a trilha correndo e chegar logo à Fazenda pra tomar uma cerveja ficava agora de lado…
Como estávamos quase sem água, tocamos direto até o próximo rio. Sofri um pouco para descer as escadinhas e acabei ficando um pouco pra trás, mas o pessoal me esperou na subida para o Abrigo 1. Paramos para um breve lanche, e logo seguimos pois parecia que ia voltar a chover.
O caminho agora parecia ainda mais longo, cada passo se tornava uma tortura. Lá pelas tantas, encontramos uma garota na trilha, que se compadeceu da situação do meu pé e me deu um Salonpas. Um pouco aliviado, pude andar melhor.
Paramos apenas no Getúlio, e enquanto os demais desciam o último trecho correndo, eu ia bem devagar, pisando com cuidado. Enfim cheguei na Fazenda!!! Infelizmente a turma de SP já tinha ido embora. Pelo que falei com a Rosa depois, eles também tiveram uma noite terrível no Abrigo 1!
Alguns dias depois, o Fabrício nos mandou um e-mail com uma notícia que nos deixou estarrecidos: aquela tormenta que nós enfrentamos foi na verdade a passagem de um ciclone extra-tropical, com ventos que atingiram até 80 km/h!!!
Esta noite calamitosa passada no cume do PP iria me deixar sem acampar por um bom tempo, não por medo ou receio, mas porque, sem perceber, o vento carregou o toldo da minha barraca durante a noite…