Em momentos, será a concretização de um único passo, num qualquer bloco impossível. Para o João Gaspar e para mim, o passado dia 13 de Novembro acabou por se tornar em algo mais que “um grande dia de escalada”. Tornou-se num grande dia de aventura.
– Como é, queres subir? – Suspenso no arnês e debruçado para trás, gritei desde a reunião, acabada de instalar numa pequena plataforma a mais de 30 metros do chão. Ainda no solo, a Daniela retirou as cordas do descensor e olhando para cima abanou a cabeça.
– Dispenso! Tem muita rocha podre para o meu gosto. E muito artificial! E, se não temos tempo para continuar a via, prefiro não subir.
O dia 16 de Janeiro de 2011, estava feito. Os planos optimistas de completar uma nova via, numa das paredes mais selvagens da Arrábida, resumiram-se a um único lance de uns 35 metros, conquistado “a ferros”, com o recurso à escalada artificial e obrigando à colocação de mais expansivos que o inicialmente previsto.
O estado da rocha, longe do razoável, também não colaborou para um desfecho desejável.
A Parede Branca é mais uma muralha esquecida na Serra da Arrábida, com um potencial futuro nada desdenhável. Trata-se de um pilar de calcário imponente, ilustrado por alguns tectos impressionantes que constituem a imagem de marca das grandes falésias do Fojo.
A anoréxica história de tentativas de escalada da Parede Branca não se resume às nossas incursões modernas. Há cerca de 30 anos, o Paulo Alves, Francisco Silva e outros companheiros, inauguraram uma fissura em arco muito evidente, por baixo de um tecto pronunciado. Ainda são visíveis algumas cunhas de madeira bem incrustadas na fenda, uma espécie de testemunho silencioso de uma tentativa de outros tempos que terminou após três lances de escalada.
Em meados dos anos 90, eu e o Paulo Almeida, realizámos uma nova tentativa de ascensão. Escolhemos uma linha pelo centro da parede mas, a precariedade da rocha obrigou-nos a desistir logo na primeira reunião. Seguiram-se anos de abandono e esquecimento, até que a memória longínqua em estado latente resolveu despertar uma outra vez.
O João Gaspar encarregou-se de repetir o primeiro lance, já conquistado aquando da tentativa de 2011. Por uma questão de fluidez, não nos preocupámos demasiado com a realização em livre da primeira metade do lance e este manteve a sua cotação original.
Depois do artifo, o João descansa um pouco, empoleirado num corno de rocha. Encarreguei-me do segundo largo, uma placa óbvia de aspecto difícil. Felizmente uma fissura simpática surgiu por debaixo de alguns tufos de vegetação. Erva arrancada, friend colocado, espírito tranquilo. Os últimos dois metros afiguravam-se pouco saudáveis no que tocava à solidez e, mais uma vez, recorri ao apoio dos pedais.
Com a corda por cima, o João iria encarregar-se de tentar traduzir o lance em escalada livre.
Uma placa de calcário imaculado de aspecto compacto piscou o olho ao João que aceitou o convite com entusiasmo. Algum tempo depois, eu cedia a corda com ansiedade, desejando ouvir o grito de reunião vindo de cima, de um recanto invisível desde a minha posição. A natureza pregara-me uma partida de mau gosto. Uma cólica súbita evoluiu para um desenlace inevitável.
– REUNIÃÃÃO! – “Finalmente!” Pensei em voz alta.
As cordas saltaram do descensor, o arnês caiu ainda mais rápido, seguido quase em simultâneo pelas calças e… afortunadamente o local era largo o suficiente para retirar todo o equipamento do caminho.
Com notório alívio meti-me na seguinte tirada. A escalada revelou-se bem melhor que o imaginado, apesar de exigir uma concentração constante. A modos de prémio, desemboquei numa excelente plataforma. Como seria de esperar, o sol foi caindo, anunciando o seu mergulho iminente no Atlântico. Sem mais nada para fazer que ir fornecendo corda ao meu companheiro, aproveitei para apreciar o magnífico dia de luz.
O mar, esse azul intenso salpicado por aves marinhas, estendia-se desde o infinito até chocar suavemente contra o sopé das abruptas falésias. A natureza dramática transmitia sensações ambíguas, de inquietude e paz, de maravilha e solidão. Existem poucos lugares onde encontrar estas emoções tão íntimas e pessoais, muitas vezes indescritíveis. Maravilhava-me com a constatação de estar a viver um daqueles momentos privilegiados tão perto de casa. Um oásis em plano vertical, a poucas horas de distância.
– Passa-me então a máquina! – O João despertou-me do meu torpor momentâneo para me pedir material. Pouco depois, dei o OK para içar o equipamento através da fina cordeleta que utilizávamos para o sobe e desce respectivo. O João realizava a manobra suspenso precariamente num gancho, colocado em poucos milímetros de rocha. Era uma operação delicada. Se o gancho saltasse, seriam alguns metros de queda agarrado a uma máquina de furar, um objecto pouco ergonómico para voos inesperados.
A mestria dos anos de escalada acumulados, permitiram terminar o lance com destreza e o João emergiu numa boa plataforma, concluindo de forma brilhante um dos melhores lances da via. Escalei como pude, em meio da penumbra instalada há poucos minutos. Sempre me fascinou a velocidade com que a luz se vai, logo a seguir ao pôr-do-sol. Calculámos que nos faltaria ainda uns 20 ou 30 metros para alcançar o cimo da parede, ou seja, um ultimo largo de corda. Desta feita, em plena escuridão.
À luz da lanterna frontal, observamos a parede que tínhamos mesmo em frente.
– E agora? – Perguntei, sabendo de antemão qual seria a resposta.
– Não sei… agora é a tua vez! – Respondeu-me o João, espirituoso. – Talvez por ali, pela direita, que me dizes? – Sugeriu. Após uma pausa continuou – O problema é que aquilo parece bastante compacto e a bateria da máquina morreu!
Não temos o burilador, pois não?
Não tínhamos o burilador manual, o que nos impedia colocar qualquer expansivo mais. Uma breve análise realista ditou o nosso destino.
Noite, parede compacta e sem fissuras, impossibilidade de furar, igual a: retirada.
– Creio que por hoje está feito! – Sentenciei desolado. O João assentiu.
Começamos a mentalizar-nos para o épico que se avizinhava, o de procurar e montar boas instalações de rapel, numa parede cuja única linha era a nossa, sinuosa, com travessias e extremamente magra no que tocava a material fixo.
Tudo, na escuridão nocturna.
– Espera. Vamos atravessar um bocado a plataforma e espreitar ali ao lado.
A esperança de sair por cima retornou com a descoberta de uma grande fissura de aspecto “humano”. Apenas distinguíamos o que a luz do frontal alcançava. Mais acima, voltava o mistério mas, valia a pena tentar.
Há uns bons anos que não escalava em plena noite. À medida que subia com cautela, invadiam-me sensações mistas. Por um lado, a visibilidade muito limitada impedia o planeamento da escalada a “longo prazo”. Por outro lado, a incapacidade de ver mais além, a juntar ao silêncio da noite, apenas interrompido pelo “chap, chap” ocasional das ondas do mar que se deixavam ouvir muito mais abaixo, transmitiam uma estranha tranquilidade.
Cerca de uma hora depois, ao mesmo tempo que emergíamos de uma escalada memorável, emergíamos de uma bela aventura. A Parede Branca recebia, finalmente, a sua primeira linha completa. Apenas nos faltava o mais fácil. Regressar ao trilho de acesso e ao descanso desejado…
Bem no interior da noite, com a luz dos frontais a definhar, continuávamos a cirandar aos zigue-zagues e em “estilo javali” num corta-mato selvagem. Por vezes rosnávamos ao ar palavrões de índole variada. Outras vezes riamos da nossa ridícula situação imaginando divertidos os cabeçalhos dos jornais: “Após terem conquistado uma grande falésia de escombros, dois escaladores quarentões perdem-se para sempre no matagal, em busca de um simples trilho”.
Paulo Roxo