A Pedra da Gávea

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A Pedra da Gávea (842 m) é uma montanha urbana da Cidade do Rio de Janeiro que poderia ser muito bem chamada de Montanha das Lendas. Tantas histórias não foram criadas por acaso, devem-se, antes de mais nada, à sua beleza, imponência e uma forma que lembra o rosto humano.


Este maciço rochoso íngrime de 842 m de altitude e altura, composto de gnaisse e granito, tem sua base diretamente no Oceano Atlântico. Obviamente é uma das montanhas mais procuradas por montanhistas, são 28 vias de escalada e a caminhada mais bela e impressionante da cidade. Algumas das escaladas mais bonitas do Rio estão lá: Aquarius (6 VI+), Sinfonia do Delírio (7 VIIc), C100 (5 VIIa), Impressionismo Carioca (VI+) e Sensação de Êxtase (6 VIIb).  

A Sensação de Êxtase, a via mais nova e uma das mais bonitas, com 200 m de extensão, teve tal nome devido às emoções de dois estrangeiros que me ajudaram na abertura. Foram seis investidas. Na segunda, fui auxiliado pela Ljiljana Grmoljez, da Lituânia! Ela veio ao Brasil para ser batizada em capoeira!! Ela queria escalar e ver a Mata Atlântica, então a levei  para me ajudar. Quando viu a montanha ela ficou eufórica. Porém, viu também um monte de jaqueiras, bananeiras e mangueiras, e achava que era a tal da Mata Atlântica, como muitos aqui também pensam. Para ela, qualquer coisa era Mata Atlântica, até capim. Ljiljana é uma maravilha da natureza. Você consegue falar este nome? Nem eu! Eu a chamava de Jana.

Na segunda e terceira investidas, quem me ajudou foi Szvinyarovich Grljevic, da Eslovênia! Consegue falar este nome? Nem eu! Também é doido das idéias, mas não pense você que é um daqueles escaladores eslovenos suicidas, apesar de escalar bem. Na terceira investida, como ele sabia que ia ficar parado um tempão num platô me dando segurança, com um tremendo visual do litoral carioca, o danado levou duas garrafinhas de 100 ml de uma bebida com teor alcólico de 52%, típica do país dele.

Quando retornei ao platô o sujeito estava rindo à toa, e misturava inglês com algumas poucas palavras em português que aprendeu na Bahia! Não se cansava de falar: “Pedrou da Gaveou, yo love voche“. Ele queria dizer que ama a Pedra da Gávea, mas misturava português, espanhol e inglês, tudo isso com um pouco de sotaque baiano! Na base e com a mochila já arrumada, ele tirou outra garrafinha daquela bebida da mochila… Nós chegamos à rampa de vôo livre bêbados. Eu ria descontroladamente quando ele falava as poucas palavras de português que conhecia, mas com sotaque baiano. Mais engraçado ainda era ele tentando falar “Ó o auê aí ô”, e por causa disso acabei tropeçando várias vezes na trilha. Conheci este maluco na Áustria, em 2007.

O nome da via era outro, mais extenso, ia ser “Beng Beng Crac Ai Peng Peng PQP!”. Vou explicar: fui conquistar com o esloveno e levei duas marretas, uma era novinha. Depois de abrir nova enfiada de corda, tentei melhorar um grampo que ficou sobrando para fora, que o esloveno colocou na investida anterior. O danado entrou atochado, mas apenas 1,5 cm. Preparei a marreta “zero bala” e enfiei a porrada no grampo teimoso, que não entrou um micron sequer. O cabo da marreta quebrou na segunda batida, ela caiu sobre o meu joelho direito (que dor) e depois quicou duas vezes na pedra antes de desaparecer, e PQP de boca cheia. Muito irritado, zuni o pedaço de cabo que sobrou, caindo sobre a floresta.

Depois de fazer três descidas de rapel, arrumamos a tralha toda e entramos na trilha com mochilas pesadas. Eu estava pré-bêbado e ele, tri. Mas não é que 30 metros adiante não vi e pisei sobre o cabo roliço quebrado que eu havia zunido! E vapt! Levei um tombo desconcertante, daqueles pra te deixar desmoralizado, e PQP de novo. O cabo foi cair justamente na trilha!

AS LENDAS

Não existe no Brasil uma montanha que tenha tantas histórias envolvendo misticismo e fantasias. Tudo começou com uns sulcos verticais e paralelos que cobrem uma faixa na rocha que forma a Cabeça do Imperador. No início do século XIX, um padre resolveu olhar a Pedra da Gávea de binóculos e pensou que os sulcos eram inscrições que poderiam provar que o Brasil tinha sido descoberto muito antes dos portugueses. Mandou avisar Dom João VI. Em 1839, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro sugeriu que se fizesse um estudo minucioso da Pedra da Gávea, mas o problema era o acesso complicado. Uma comissão foi formada e enviada ao local, mas os participantes nem chegaram perto das inscrições porque elas ficam no topo de um paredão de noventa graus de inclinação e suspensas sobre um abismo de centenas de metros. Apenas observaram com binóculos, fizeram algumas considerações e acreditaram ser realmente letras do alfabeto fenício já desgastadas pelo tempo.
    
Sabendo dessas notícias, várias pessoas resolveram estudar a montanha e desde então muitas histórias apareceram. Na época, o acesso ao cume era difícil, sendo até considerado uma escalada técnica. Em 1920, o Centro Excursionista Brasileiro realizou a primeira escalada do clube e foi justamente nessa montanha. Eram dez participantes, mas apenas cinco conseguiram chegar ao cume, o restante do grupo ficou no meio do caminho. Sendo tão difícil chegar ao topo, ficava evidente que inscrições nunca haviam sido examinadas de perto. É claro que as pessoas começaram a fazer elucubrações sem um exame minucioso, e tudo que encontravam pela frente que lembrasse algum objeto feito pelo homem era considerado obra fenícia.
   
A Cabeça do Imperador, que forma o topo da Pedra da Gávea, parece com uma gigantesca esfinge e para muitos, ela foi esculpida pelos fenícios para louvar o imperador Badhezir. A figura lembra um homem barbudo e sobre a cabeça, há umas pedras que, segundo alguns crentes, teriam sido também esculpidas pelos fenícios para reproduzir uma coroa. De acordo com eles, com o tempo, 2.800 anos depois de ter sido esculpida, a esfinge foi se deteriorando pela erosão. Em 1963, um arqueólogo conhecido como Bernardo A. S. Ramos chegou a decifrar as ditas inscrições, traduzidas como Tyro Phenícia Badhezir Primogênito de Jathbaal.
   
Muitas pessoas acreditavam que existiam cavernas que se ligavam a outras civilizações. Em 1937, um grupo resolveu explorar os Olhos do Imperador. Fizeram do topo uma descida de 160 metros com cordas, passando pelos olhos. Entretanto, isso soa estranho porque mesmo com material moderno é difícil descer um rapel com tal extensão, porém, esta é a história. Foi verificado que não havia caverna nem passagem alguma.

Em 1960, seis escaladores do Centro Excursionista Rio de Janeiro abriram uma via horizontal que passa pelos olhos (Passagem dos Olhos) e o objetivo deve ter sido o mesmo, explorar o lado místico da Pedra da Gávea, porque conquistar escalada horizontal não faz sentido, especialmente para a época. Apesar de não terem encontrado absolutamente nada, muitos continuaram acreditando que existia um mundo subterrâneo denominado de Mundo de Agarta, que possuía entradas em vários lugares do planeta, como nas pirâmides do Egito e no Brasil. Aqui existiriam três entradas: em Sete Cidades (PI), na Serra do Roncador (MT) e na Pedra da Gávea (RJ).
   
Anteriormente a 1928 havia sido organizada uma excursão, com a participação de um arqueólogo e três engenheiros, para examinar o portal da Pedra da Gávea, que realmente se parece muito com uma porta gigante, medindo aproximadamente 10 m de altura e 7 m de largura. A conclusão foi de que não existia porta alguma, entretanto, outros trabalhos paralelos e não científicos foram feitos e mostravam desenhos de câmaras ocas, túneis, túmulos etc. Esses túneis teriam a entrada no Portal e dariam acesso à cidade subterrânea de Shambalah.
   
Também acreditava-se que existiria uma passagem subterrânea do topo da Pedra da Gávea que ligava às Ilhas Tijucas, situadas a 4 quilômetros de distância. Uma outra saída ou entrada, estaria situada numa gruta da Praia da Joatinga. Mais uma expedição foi averiguar e nada foi encontrado. Além disso, tentaram de todas as formas ligar a Pedra da Gávea a achados ainda sem explicações em outras partes do mundo.

Um outro grupo de pessoas acreditava que a Pedra da Gávea fazia parte de uma das rotas de OVNI, e muitos diziam já terem visto luzes estranhas circundando a montanha. Assim fizeram uma ligação com os fenômenos que supostamente ocorriam no Triângulo das Bermudas. Segundo eles, nessa montanha esses fenômenos seriam comuns, como aberrações eletromagnéticas que inutilizam bússolas e aparelhos eletrônicos. Também faziam ligações com o desaparecimento de pessoas, aviões e helicópteros, já que algumas aeronaves desapareceram no litoral do Estado do Rio de Janeiro. De acordo com essas pessoas, algumas áreas formam vértices onde ocorrem tais fenômenos. Dessa forma, tal como o Triângulo das Bermudas, a Pedra da Gávea seria um dos doze vértices espalhados pelo planeta.

Certa vez, em 1984, ouvi a seguinte história de um guia do Centro Excursionista Rio de Janeiro, quando liderava uma excursão noturna à Pedra da Gávea, e essa pessoa parecia acreditar no que dizia – Quem sobe a Pedra da Gávea à noite, muitas vezes pode ver um homem velho, barbudo, com um olhar penetrante. Apesar de assustador, ele costuma ajudar as pessoas mas desaparece logo depois, sem deixar nenhum vestígio. Muitas pessoas costumam ver luzes estranhas, brilhantes e coloridas. Às vezes elas saem das entranhas da montanha, principalmente quando o portal se abre, e se fecha logo depois. Algumas garotas que subiram à noite já constataram gravidez, meses depois de terem subido a montanha e sem ter tido nenhum tipo de relação sexual, mas contam terem encontrado o velho barbudo. Mas outras pessoas simplesmente desapareceram…

Algumas dessas histórias são contadas e reproduzidas por muitas outras pessoas que acabam acreditando plenamente e as passam adiante, como se fossem verdadeiras. Esse é o processo natural de criação de lendas e mitos.

Em agosto do ano 2000, um grupo que incluía geólogos levou um equipamento de geofísica para o cume, com o qual é possível conhecer um pouco da estrutura interna da rocha. Com o resultado, eles provaram que a Pedra da Gávea é sólida e não existe nenhum túnel. Ou se perdeu tempo nessa brincadeira, ou estavam somente aprendendo a lidar melhor com o equipamento, num tipo de treinamento. As ditas inscrições são apenas sulcos ou canaletas verticais que se encontram numa faixa horizontal menos resistente da rocha, que são comuns em várias outras montanhas do Rio de Janeiro.
   
Colocando as lendas e o misticismo de lado, a Pedra da Gávea realmente tem um lado obscuro, sendo a montanha com o maior número de mortes do Brasil. Foram muitos os acidentes fatais causados por excursionistas e escaladores inexperientes, além de mortes por causa de assaltos. Infelizmente isso não é nenhuma lenda. Isso não é culpa dos deuses, povos místicos ou fenômenos magnéticos, a culpa é da própria natureza humana.

Quando esta montanha começou a ser explorada por montanhistas, a partir do início do século XIX, ou mesmo um século depois (1920), eram necessários dois dias para subi-la porque essa parte da cidade do Rio era pouco ocupada e não havia estradas. O caminho passava por belas cachoeirinhas e florestas. Era necessário sair do Leblon, que na época era uma área de chácaras e considerada parte do subúrbio da época. Hoje são necessárias entre duas e quatro horas para subir e descer a Pedra da Gávea, passa-se por um rio desfigurado e uma área cheia de jaqueiras que proliferaram por causa do terreno desmatado, e de casas que foram surgindo ilegalmente nas encostas da montanha. Até 1985 podia-se tomar banho de cachoeira e a caminhada era segura. No caminho pela Pedra Bonita, via Chaminé Eli, havia uma cachoeirinha onde se podia tomar água e banho. Hoje ela encontra-se poluída por causa das casas construídas no local.

A Pedra da Gávea já foi tema de dois filmes conhecidos. O primeiro foi rodado nos anos 70, Roberto Carlos e o Diamante Cor de Rosa, explorando o lado místico dessa montanha e também do Pão de Açúcar, com magia, fenícios e tudo. Depois foi a vez de Os Trapalhões, na década de 80, explorar o mesmo tema: cavernas na montanha, misticismo e tesouros. Nos anos 80, o músico pop star inglês Rick Wakeman escreveu um linda música com o título Pedra da Gávea, de tão fascinado que ficou quando a viu.

Obervação: o texto “As Lendas” descrito anteriormente, foi compilado e modificado do livro Montanhismo Brasileiro: Paixão e Aventura, publicado por este mesmo autor pela Editora Publit, em 2006 – [email protected]
 

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Sobre o autor

Antonio Paulo escala há tanto tempo que parece que já nasceu escalando... 30 anos. Até o presente, abriu mais de 200 vias no Brasil e em alguns outros países. Ele gosta de escalar de tudo: blocos, vias esportivas, vias longas em montanhas, vias alpinas... Mas não gosta de artificiais, segundo ele "me parecem mais engenharia que escalar propriamente". Além disso, ele também gosta de esquiar, principalmente esqui alpino no qual pratica desde 1996. A escalada influenciou tanto sua minha vida que resolveu estudar geografia e geologia. Antonio Paulo se tornou doutor em 1996 e ensina em universidades desde 1992. Ele escreveu sobre escalada para muitas revistas nacionais e internacionais, capítulos de livros e inclusive um livro. Ou seja, ele vive a escalada.

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