As 6:30 horas deixei o Moisés e o Leandro na frente da Casa Garber para que fossem ganhando terreno no frescor da manhã e desci a serra para estacionar o Landcelta no pátio da Dna. Izabel. Caminhei até a ponte de ferro sobre o Rio Nhundiaquara onde na hora marcada encontrei o Sexta e o Jurandir me aguardando para subir a Estrada da Graciosa.
Novamente no “Espalha Brasa”, a esposa do Sexta retornou para casa com o automóvel e encontramos o Diego, dos “Cachorrões”, que veio apenas fazer um ataque no Morro Sete. Depois de conhecer nossos planos ficou excitadíssimo para se integrar na travessia, dando uma diblada no compromisso que tinha com a esposa a tarde.
As 8:40 horas, com o sol alto, já começamos enfrentando muito calor na subida para o Morro da Mãe Catira e no caminho alcançamos um rapaz e três garotas da AMC (Associação dos Montanhistas de Cristo). Foram-se outros 40 minutos de conversa e o Jurandir sumiu no mato. No descampado, antes de descer para o Polegar, aguardamos o Diego ligar para a mulher avisando da mudança nos planos, mas como já era de se esperar, a notícia não foi bem aceita. Depois de uma boa bronca da patroa não restou alternativa ao Diego senão deixar a travessia para uma próxima vez e seguir o planejado para o Morro Sete.
Com céu limpo, as 10:15 horas, nos despedimos do Diego e descemos no rastro do Jurandir para quarenta e cinco minutos depois despontar no cume do Pequeno Polegar, insuportavelmente quente e fechado por pesadas nuvens. Outros sofridos quarenta e cinco minutos até o Casfrei e o celular gritou com uma mensagem do Moisés avisando que esperavam no Tapapuí.
Avançávamos muito lentamente devido a temperatura elevada e ao peso da mochila. O Sexta vinha direto do trabalho e estava sem dormir desde o final de tarde do dia anterior e logo chegou uma segunda mensagem informando que estavam abortando a travessia para descer pelo Rio do Meio. Trovoadas já ressonavam a distância e ficamos sem nada entender da situação. Nós dois é que nos arrastávamos, mal das pernas, pelo Esporão do Vita e os que estavam tranqüilos e descansados no alto do Tapapuí é que falavam em abortar a travessia. Decidimos seguir adiante mesmo sozinhos.
Eram 13:20 horas quando alcançamos o cume do Tapapuí e encontramos o pessoal ainda decidido em voltar para casa. Muita conversa e inúmeras alegações finalmente convenceram o grupo a seguir em frente e no caminho para o Rio do Meio a chuva já desandava sobre a montanha. Com chuva a temperatura se tornou agradável e o ritmo da caminhada aumentou na mesma proporção, subíamos rapidamente as encostas do Canguiri.
A chuva aumentava progressivamente e os raios estouravam cada vez mais próximos num intervalo médio de 30 segundos. A tempestade magnética nos encontrou a poucos metros dos campos do Farinha Seca e um clarão ofuscante foi seguido por violenta explosão que espalhou eletricidade pelos caules retorcidos da macega. Tomamos um susto e um choque elétrico que me provocou um inexplicável ataque de riso.
Ficamos receosos em sair no campo aberto, mas depois de muito ponderar decidimos arriscar uma corrida acreditando no dito popular de que o raio nunca atinge o mesmo lugar duas vezes seguidas. Andamos rápido e agachados como soldados debaixo de tiroteio. O Jurandir e o Moisés, que estavam a frente, seguiram reto para o cume, atravessando perigosamente o descampado. Pouco atrás, sem entender aquela loucura, desviei a direita para a trilha que desce em direção ao Morro dos Macacos apelando para que os demais fossem muito rápidos. Pressentia nova descarga elétrica pelo cheiro do ar impregnado de ozônio.
Nem avançamos alguns metros no bosque e uma enorme explosão pelas costas nos arremessa ao chão com a força do impacto. Este foi muito perto e respiramos aliviados, mas daí lembramos dos amigos que tomaram o caminho errado e começamos a gritar por eles sem obter resposta nenhuma. Então ficamos muito preocupados e quando já tínhamos certeza de que haviam se transformado em carvão ao atravessar o campo, ouvimos seus gritos em resposta e poucos minutos depois estavam conosco a salvo.
Abrigados debaixo de umas colunas de pedra desandamos a rir de nossa (quase) desgraça. Rimos mais ainda do Moisés contando como o Jurandir se estatelou no chão feito um gato amassado no asfalto quando viu o clarão do raio explodindo a frente, como se agindo assim pudesse escapar ao implacável destino.
Começamos a congelar parados debaixo da chuva forte e a única opção era o movimento constante. A caminhada na chuva tornou-se agradável a todos menos para o Leandro que enfrentava sua primeira travessia radical. Acostumado apenas com os Itupavas e PPs da vida, nesta altura dos acontecimentos já sentia câimbras e faltando mais da metade do trajeto era muito preocupante. Diversas paradas e muitos alongamentos o ajudaram a se restabelecer e a jornada prosseguiu rápida. Em menos de uma hora estávamos descansando no cume dos Macacos com visão parcial e trovoadas ao longe. Hora de escorregar alguma coisa pra dentro do estômago.
As 16:00 horas a chuva voltou a engrossar com os raios novamente pipocando em nossa direção e tivemos que guardar tudo as pressas para vazar do cume antes que as coisas voltassem a feder ozônio por alí. No desespero nem achamos a entrada da trilha e atacamos a macega de forma destrambelhada até encontrar a vala onde sabíamos estar a trilha. Mal deixamos os campos e uma seqüência de raios atingiu o cume provando o acerto na decisão de cair fora imediatamente.
Dentro da mata uma fortíssima tempestade nos alcançou. Chuva torrencial com ventos inéditos que nos metralhavam com gotas gigantescas vindas na horizontal, ardiam ao colidir com a pele e o frio se tornou congelante. A natureza nos premiava com todos os climas e temperaturas tornando a travessia inesquecível.
As 17:18 atingimos o topo do Mojuel, felizmente sem raios nem tempestade, mas ainda com chuva. Agora predominaria a descida e por incrível que pareça nos sentimos muito mais em casa. Seguimos sem problemas na trilha pela crista do Mojuel que abri com o Jurandir e a Barbara no ataque anterior e quando chegamos num ante-cume encontramos a continuação feita pela grande equipe de amigos que haviam passado ali por último. Restando apenas um pequeno trecho de terreno para transpor no peito para o qual ligamos o GPS por vinte minutos até encontrar a trilha que o Jurandir abriu com o Pedro.
Agora seria só uma questão de administrar com cautela a hora e meia de luz que ainda nos restavam do dia para descer as partes mais delicadas do Morro da Balança. Ao cruzar sobre o Jurape-Açu podíamos ouvir o rugido apavorante do turbilhão d´água despencando nas cachoeiras no Rio Ipiranga atrás do Balança, mil metros abaixo. Com toda aquela chuva o rio só poderia estar pra lá de endemoniado e o Moisés foi o primeiro a cantar a pedra, assustando o Leandro com a possibilidade de um pernoite infernal no mato. Mas a esperança de dormir numa cama quente era forte e deixamos para nos preocupar com o rio quando chegasse a sua hora.
Na cahoeirinha seca que neste dia estava bem molhada, o Leandro acionou sua lanterna enquanto os demais só foram precisar delas abaixo do primeiro bivac, pouco antes da pirambeira que antecede a vista para o Salto Rosário. Próximo do tobogã alertei para que cruzassem as pedras com o máximo de cuidado. Alí o menor descuido seria fatal e todos passaram com segurança. Ainda passamos rente a pedra com o mocó oferecendo um lugar seco para o pernoite, mas a esperança de cruzar o rio e voltar para casa tornou-se irresistível e ninguém sequer cogitou a hipótese. As 21:40 horas estávamos frente a frente com o rio.
Todos olhando para as águas furiosas e se olhando entre si no mais absoluto mutismo.
Silêncio, silêncio total – só o rio berrando. Algum tempo depois…
– Fodeu pessoal!
Longo período sem nenhuma palavra, nem um murmúrio sequer – só o rio feroz.
-…é, fodeu!
O risco era alto demais para encarar. O rio teria cinco chances para matar ao menos um e o mais provável é que matasse a todos que tentassem atravessar. As chances daquilo acabar em merda, ver um companheiro sendo arrastado pela correnteza, era mais assustadora que os raios no cume. Nada o que fazer a não ser resignar-se ao destino e se acomodar num canto qualquer. Estávamos todos debilitados e o rio tratou de sepultar o que restou de moral ao grupo e ninguém nem lembrou de sugerir voltar a subir o morro para se abrigar no mocó.
Minhas botas estavam detonadas e os pés em igual situação. Os elásticos molhados da calça e da cueca haviam produzido terríveis assaduras na pele que ardiam a cada movimento. Cada um carregava suas próprias dores e seu esgotamento. Nosso consolo foi a premonição, que tive ao sair de casa, carregando na mochila um isolante, um saco-de-dormir e um pedaço de lona plástica com 5×2 metros que dividimos para o pernoite.
Saímos a procura de um lugar pra deitar no meio das pedras e raízes, folhas molhadas e fervilhando de insetos.
– Acho que por aqui dá! – alguém advertiu e não se falou mais nada.
O Sexta se acomodou numa rede-de-selva. O Moisés, o Leandro e o Jurandir se enrolaram na lona e eu deitei dentro do saco-de-dormir sobre o isolante térmico. Os minutos demoravam horas para passar e finalmente alguém falou:
– Bruuuu… caracas, que frio! – silêncio.
– Merda, mais chuva!…Alguém tem horas?
– Meia noite e cinco! – respondia o Moisés.
– Ainda???..- silêncio.
Duas horas depois:
– Alguém tem horas?
– Meia noite e quinze! – retrucava o Moisés.
– Porra, vai se foder!
Longo intervalo em silêncio.
– Que frio da porra e essa noite não passa…- silêncio – Que horas são?
– Meia noite e vinte! – retornava o Moisés com paciência infinita.
Todos encharcados até os ossos debaixo da chuva gelada.
– Oóóó Paaai, finalmente esta clareando!
Ninguém dormiu um minuto sequer e cada um deles demorou uma eternidade para passar. Mas até mesmo a mais miserável das noites tem o seu fim e quando esta acabou fez o bivac no Alto Alegre parecer um hotel 5 estrelas. Então, achamos justo batizar este local de Baixo Triste em oposição aos demais. Incrivelmente, desta vez, ninguém fez cerimônia em deixar esse lugar logo depois que amanheceu. O Ipiranga baixou meio metro durante a noite, mas ainda assim continua nervoso.
Enquanto lavava a lona no rio, o Moisés subiu logo acima e arriscou-se a cruzá-lo com ajuda de seu popular cajado. Com a ajuda duma corda de 4 metros, que o Sexta havia levado, conseguimos repetir a façanha. Agora podíamos dizer que estávamos quase em casa. Tinha ainda o Rio São João para atravessar, mas se este também não nos deixasse passar, iríamos pela usina mesmo que fossemos enxotados, afinal, era o que mais queríamos naquelas circunstâncias.
O São João estava incrivelmente tranqüilo e cruzamos rindo. Na outra margem tomamos um belo banho de rio com roupa e tudo, como se fizesse muito tempo que não víssemos água. Na casa do IAP, três funcionários devidamente uniformizados nos atenderam, e novamente ficaram confusos sobre os registros de entrada. Explicações dadas sobre a nova travessia e apenas registraram num pedaço de papel o nosso feito juntamente com nossos nomes. Elogiaram nossa atitude corajosa de nos embrenhar tão profundamente na mata virgem, e quando viram meu braço todo arranhado, perguntaram se briguei com uma onça. Neguei dizendo que poderia ser multado por eles caso isto tivesse acontecido e nos despedimos pra resgatar o Landcelta no estacionamento da Dna. Isabel.
Fotos Jurandir:
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