A Serra dos Cavalos

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Mas existe no Nordeste uma região onde a caatinga costuma se mostrar diferente. É o Agreste, a fina e sinuosa faixa de terreno, entre a Zona da Mata da cana de açúcar e o Sertão das criações extensivas.

1. Meio-Norte, 2. Sertão, 3. Agreste, 4. Zona da Mata

O grande acidente geográfico do Agreste é o Planalto da Borborema, um bloco de antigas rochas duras, que bloqueia a unidade litorânea e resseca o interior. Se a vegetação é a mesma caatinga (quando não intercalada com a mata atlântica), o relevo costuma ser mais elevado e ondulado, o solo é em geral mais fértil e profundo e o clima pode se mostrar mais úmido.

Depois dele, o Nordeste se torna o Sertão: baixo e plano, pedregoso e arenoso, árido e quente, pobre e despovoado. Com suas criações de gado bovino e suas plantações variadas, o Agreste é o último alento de vida antes da aspereza do interior.

Você vai conhecer agora duas formações serranas do Agreste, com visuais e naturezas diferentes das da depressão sertaneja.

A Serra dos Cavalos

Já são anos passados, mas lembro-me bem da tarde em que cavalgava junto com o gerente de uma fazenda no Pantanal. Tinha recentemente ocorrido em algum outro local uma morte causada por uma onça. Eu comentei que, nos relatos que conhecia, sempre houvera uma provocação, os ataques nunca tinham sido gratuitos.

Ele concordou e  narrou o dia em que cruzou ali mesmo com uma onça pintada. Manteve-se calmo e observou que o animal estava bem nutrido. Concluiu que não iria atacá-lo – mesmo porque, se o desfecho tivesse sido outro, ele não estaria mais conversando comigo. Apesar de selvagens, as onças não atacam por ferocidade, e sim por necessidade.

Eu tenho a talvez ingênua crença de que existe um vínculo entre homens e bichos. Eles são sensíveis, nos percebem e não nos querem mal. Mas existem animais, especialmente os domésticos, que desenvolveram uma forte interação conosco. Entre eles, os cavalos são para mim especiais.

Cavalos são grupais e, como tal, criaram ricas formas de comunicação – olhares, ruídos, movimentos – entre eles e conosco. Não são agressivos, sua reação típica é a fuga, não o ataque. São reconhecidamente capazes de empatia. Cavalos sentem medo, ciúme e alegria – e, para mim, amor.

Estou percorrendo o Nordeste num sentido oeste. Atravesso Alagoas e depois Pernambuco, meu destino final é a Bahia. É verão, o calor é grandioso, mas a áspera vegetação está verde, são ainda as plantas do agreste.

Encontro formações serranas, longas e bonitas. E, protegendo o vale do Rio Ipanema, distingo a norte a Serra dos Cavalos. Aviso que nada tem a ver com o acidente de mesmo nome em Caruaru, onde existe um parque – esta é outra, e mais nobre.

No Nordeste, você encontra em geral dois tipos de rochas, arenitos e granitos, estes mais a leste e aqueles mais no interior do sertão. Estou ainda ao alcance do Planalto da Borborema, recoberto por essas rochas antigas mais altas e duras. Serão para mim eternamente lindas, com seus corpos arredondados e acinzentados.

A Serra dos Cavalos é longa, calculo que tenha 40 km. Assim como os equinos, ela vive em grupo – à volta, existem ao sul e ao norte outras formações, como Sabonete, Caraibeiras, Panelas e, mais ao longe, Japão. Elas protegem os preciosos cursos d´água que abastecem o São Francisco, esse grande rio que uniu no passado ao longo de seu vale o interior de nosso país.

Estão dispostas espaçadamente, cada qual vigiando os seus domínios, a 30 ou 80 km. São parecidas, corpos alongados bem lançados de forma longilínea, convergindo para a grande depressão franciscana. Apresentam esse granito claro intercalado com manchas de vegetação, com encostas bonitas e interessantes, são visuais amenos, quase acolhedores, nesse ambiente ao mesmo tempo tão áspero.

Então, eu miro a Serra dos Cavalos. São dois afetos, as rochas e os animais, a me atraírem. Ela não é tão fácil assim, como olhada à distância. Seu desnível, a partir do planalto rebaixado onde estou, talvez supere os 350 metros. Claro que não há trilha e nem será possível percorrer uma travessia de cume.

Mas é sempre possível encontrar uma estrada improvisada no rumo certo, avançar por porteiras e mata-burros até as proximidades, progredir pelo terreno arenoso até o início da encosta e enfim divisar uma rota imaginada parede acima.

Nunca será uma negociação fácil, entre pequenas trilhas, ravinas pedregosas, escaladas por aderência, passagens estreitas e íngremes, lenhosos arbustos interferentes e o sol cada vez mais a pino.

Mas não será uma rampa tão cruel, porém acima de 10%, e sob um calor que nunca irá diminuir. Enfim atinjo a crista, ainda menor, terei de continuar por um caminho irregular, entre pedras e tufos, subindo sempre pelo chão acidentado. Até o alto da esplêndida corcova, onde de novo posso avistar o mundo.

Os pastos planos que avançam sobre as tímidas caatingas, o verde difícil dos carrascos e arbustos, as serranias com perfis sinuosos sob um azul inclemente. E, quem sabe, fruto da geografia ou da ilusão, o risco versátil e radioso do nosso rio mais importante, brilhando como se fosse eterno.

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Sobre o autor

Nasci no Rio, vivo em São Paulo, mas meu lugar é em Minas. Fui casado algumas vezes e quase nunca fiquei solteiro. Meus três filhos vieram do primeiro casamento. Estudei engenharia e depois administração, e percebi que nenhuma delas seria o meu destino. Mas esta segunda carreira trouxe boa recompensa, então não a abandonei. Até que um dia, resultado do acaso e da curiosidade, encontrei na natureza a minha vocação. E, nela, de início principalmente as montanhas. Hoje, elas são acompanhadas por um grande interesse pelos ambientes naturais. Então, acho que me transformei naquela figura antiga e genérica do naturalista.

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