A Serra dos Cristais

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Ela aparece como “Morro Grande da Ilha” nas cartas topográficas mais antigas, mas atualmente seu nome deriva do quartzito que preenche suas encostas. É a Serra dos Cristais, modesta elevação que se destaca a oeste de Cajamar, e alcançar os quase mil metros de sua abaulada crista de pasto varrido é uma experiência breve porém gratificante, que descortina bela panorâmica dos picos ao norte de Santana do Parnaíba.

Pra esticar o programa prum dia cheio e puxado, eu e a Lau resolvemos sair da simpática Pirapora do Bom Jesus, bordejar o espelho d´água da represa local, palmilhar o imponente serrote pra findar no bairro rural do Ponunduva. Uma “peregrinação natureba” pra fazer jus a tradição da Serra dos Cristais, palco de romarias de todo tipo.
 
Desta vez não foi preciso madrugar como de costume, razão de estar iniciando esta pernada já quase no meio da manhã. Sem pressa, eu e a Lau desembarcamos na estação de Barueri e imediatamente fomos pra avenida logo ao lado, aguardar a condução sgte. Não tardou em passar o latão rumo Pirapora do Bom Jesus, uma vez que opções de transporte coletivo até lá não faltam. A viagem transcorreu sem grandes intercedências, sendo que no decorrer da mesma aproveitamos pra apreciar a paisagem mutante da acizentada Baureri dando lugar a rural verdejante de Santana do Parnaiba (“Berço dos Bandeirantes”, como diz o portal de entrada), pra findar logo depois na pacata e bucólica Pirapora do Bom Jesus, esta por sua vez gde ponto de peregrinação de São Paulo.

Saltamos em Pirapora do Bom Jesus por volta das 10hrs da manhã e aproveitamos pra dar uma rápida volta na cidade antes da pernada propriamente dita, uma vez que a Lau nunca havia pisado aqui. Passeamos pelas simpáticas e coloridas ruas do centro, pelos belos traços barrocos da Igreja Matriz de São Bom Jesus de Pirapora e até pelo “Portal dos Romeiros”, mas chamou a atenção da Lau foi o Rio Tietê, que aqui marulha mansamente porém recoberto de esbranquiçada e fétida espuma.

Pois bem, cruzamos a ponte João Minoto e tocamos calmamente por toda Av. Jundiai, agora na outra margem do Tietê, como se subíssemos o mesmo. Conforme se avança, as últimas residências de Pirapora vão ficando pra trás, aos poucos, até que nos vemos palmilhando um estradão de chão batido que basicamente acompanha o espumante curso d'água. Este com direito até ilhotas rochosas no meio. Visivelmente reparo que a estrada vai de encontro a junção de um enorme morro pelado com a Serra do Capuava  – visão esta que se assemelha a um cânion sem arestas tão abruptas – onde decerto há uma barragem que que intercepta o Tietê.

Dito e feito. Ignorando a bifurcação a esquerda que leva a Faz. do Salto, a estrada principal empina um pouco, mas é aqui que nos damos o luxo de tocar por uma ramificação da direita que nos leva próximo da Represa de Pirapora, devidamente sinalizada, cujo rugido já era audível a um tempo. O percurso não da nem 600m (pelo menos até onde é permitido ir) e num piscar de olhos nos vemos ao lado do furioso estrondo da barragem, que remexe a tal modo as águas do Tietê e as torna espumosas pelo resto do trajeto. E posicionados ali, numa espécie de mirante a beira da íngreme encosta do morro, temos uma bela vista dum esbranquiçado Tietê tomando seu curso rumo Pirapora, em meio a baixa morraria.

Vontando a poeirenta via principal – que atende pelo nome de Estrada Municipal Francisco Missé –  começa então uma subidinha considerável que contorna o “Morro da Barragem” pela esquerda que, uma vez no alto do selado de ligação com as colinas sgtes, revela tanto bela vista da continuidade do espelho d'água do Reservatório de Pirapora, a nordeste, como da escarpada Serra do Japi, ao norte. Daqui nosso caminho desce suavemente e volta a acompanhar a represa pela sua margem esquerda, sempre sentido nordeste, eventualmente adentrando em suas pequenas e sinuosas “baias”. A vegetação em volta é abundante mas eventuais frestas permitem vislumbre dos remansos plácidos do espelho d'água da mesma, onde garças e outras aves fazem a festa.

A pernada é agradável e tranquila, e segue nesse ritmo compassado por um bom tempo, onde raros veículos ou bikers cruzam nosso caminho. Os destaques neste trecho que bordeja a represa ficam por conta dalguns resquícios de construções (pórticos) abandonados, uma chácara ou sitio aqui ou ali, os imponentes e verdejantes contrafortes da Serra do Porto, um trecho de reflorestamento de pinnus com belos rochedos a beira da via, mas principalmente vestígios de romarias ao longo de toda estrada, no caso, cruzeiros dispostos a cada 2km representando em ordem decrescente as estações do calvário de Jesus.

Pois bem, após passar pela entrada da Faz. Cacique e a Comunidade Refúgio em Jesus, lá pelo meio-dia e pouco a estrada passa pro outro lado do reservatório pelo que parece ser um largo e compacto aterro que separa as águas do Tietê. Daqui já se tem o primeiro vislumbre do abaulado domo dourado da Serra dos Cristais, elevando-se significativamente a leste. Um pouco mais adiante tropeçamos com a capelinha de Sto Antonio, cujas cores roseadas a tornam mais simpática. Ali, abandonamos a via principal ( que toca pro bairro do Ponunduva) pra tomar outra mais discreta á direita, que vai em direção ao sopé da Serra dos Cristais, agora na direção sudeste. O local é inconfundível devido a um pé-de-ameixa repleto do fruto, que fez a alegria da Lau.

A pernada então prossegue tranquila no mesmo compasso, bordejando a base da serra almejada com pouca variação de desnível. A estrada é bastante precária e está repleta dum sem-número de cruzeiros, minúsculas capelinhas e até estatuas de São Jorge em sua margem esquerda. Mas uma bifurcação não demora a surgir, onde uma faixa remanescente d´alguma peregrinação (“26ª Romaria da Serra dos Cristais rumo a Pirapora do Bom Jesus”) confirma que estamos na direção certa. Neste cruzamento abandonamos então a via palmilhada, que desce forte pro sul em direção ao fundo vale do Ribeirão Ponunduva, e tomamos o ramo da esquerda que vai na direção desejada, isto é, subindo suavemente a serra pro leste.

Fazendo visivelmente uma curva, logo percebemos que a via aparenta retornar pro vilarejo rural de Ponunduva, mas é ai que tomamos um caminho que toca em direção ao alto da serra. Um descidão seguido duma forte subida marca este inicio de ascensão da serra, sempre bordejando sua encosta forrada de mata. Latidos estridentes na última chácara (entocada irregularmente na encosta) nos dizem adeus a civilidade e assim começamos a subir de fato a encosta serrana em largos e íngremes ziguezagues, que logo demandam fôlego extra da Lau.

A estrada a muito já deu lugar a uma picada que, erodida a não poder mais, ora se alarga ou estreita. Conforme ganhamos altitude a vegetação diminui de tamanho e permite vislumbres generosos ao redor. Mas a exatas 14hrs dou um desconto pra Lau que, exausta, sente o peso da ininterrupta caminhada até então. Escolho pra pit-stop um trecho "lajotado" da trilha que, com jeitão de mirante mesmo, revela uma grandiosa panorâmica do quadrante oeste da td aquela região: Serra do Voturuna, Morro do Capuava, Pirapora do Bom Jesus e braços do reservatório homônimo, a Serra do Porto, etc.. ou seja, avista-se todo caminho feito até então, inclusive a capelinha cor-de-rosa de Sto Antonio, pequenina, lááá embaixo!

Após dar uma rápida sondada ao redor enquanto a Lau descansava e beliscava alguma coisa, retomamos a caminhada de modo a subir o que restava da serra. Aqui há varias trilhas que tocam em varias direções, mas todas se encontram inconfundivelmente uma hora ou outra, não tem erro. Perguntei pra Lau  se desejava prosseguir por uma picada que tocava direto pro alto através duma pirambeira bem íngreme e empoeirada, ou pela sua variante suave que ladeava a encosta de capim. Claro que optou pela segunda opção. E assim fomos bordejando a suave encosta norte da serra, que descortinava um outro panorama a nossa volta, principalmente a sequência de escarpas serrilhadas da Serra da Sapoca, Guaxinduva e Japi, que basicamente preenchem todo aquele quadrante.

Em questão de poucos minutos emergimos no abaulado topo da Serra dos Cristais, onde a vista realmente justifica toda camelagem até ali. Na verdade o topo da serra é numa enorme e larga crista de pasto e capim dourado varrido pelo vento, dominada por 3 corcovas maiores, sendo que a maior tem quase mil metros de altitude (pela carta). A paisagem lembra muito a de qualquer pico na Serra do Cipó (MG) ou dos campos do Quiriri (SC). Sim, o desnível em relação a Pirapora é baixo (coisa de 300m), mas é significativo se levar em consideração a topografia da região.

Uma vez no alto bastou apenas caminhar tranquilamente ao largo de toda crista da Serra dos Cristais, sentido leste. A trilha é obvia e bem evidente, não tem erro, e nalguns trechos é possível encontrar lascas do minério que empresta o nome á serra. Num sobe e desce tão brando quanto agradável naquele mundão de descampados, é preciso ter cautela (não fazer barulho!) apenas ao atravessar alguns focos de arbustos devido a presença de colméias. Mas uma vez no ponto mais alto daquele belo e espichado serrote, é possível ter uma generosa panorâmica de 360 graus com direito a todo quadrante leste e sul, de onde destoa principalmente a inconfundível “orelhinha metálica” que coroa o “Morro da Placa”.

Percorrida toda a crista da serra é chegada a hora de descer, e é ai que analiso visualmente qual o melhor caminho p/ isto. Reparo em bifurcações na direção sul, descartadas justamente pela distancia que ainda nos separa de Cajamar. E assim busco alguma variante na direção norte, sentido bairro de Ponunduva, onde é possível tomar condução de volta. Após descer um tanto atrás duma vereda que ganhe um estradão a leste, sem sucesso, decido retornar até o cocoruto maior da serra onde consigo avistar um corte partindo dele que vai no sentido desejado.

E tome novamente subida, pra sufoco da Lau, mas aos trancos e barrancos bordejamos a encosta sul da serra até dar na tal picada avistada. A vereda de fato desce e segue pro norte, onde é possível ver todo seu sinuoso trajeto ate dar no bairro desejado. Contudo, metade deste caminho inicial é praticamente verticalizado, demandando cautela e cuidado. E assim, aos poucos, vamos descendo por aquela trilha de terra, pó e capim, terrivelmente escorregadia, onde qualquer vacilo significa deslizar serra abaixo! Se a subida foi sufoco pra Lau, que sentia o peso do descondicionamento, imagina este descidão vertical! Mas como ela já encarou noutros carnavais coisa bem pior, esta pirambeira foi tirada de letra, ora descendo de lado ou sentada mesmo! Muié retada essa, sô!

Uma vez lá embaixo, bastou tocar o restante dos cocorutos menores de pasto, cruzar alguns focos de mata e pronto, já estávamos nos fundos duma caixa d'água que nos da as boas vindas ao bairro do Ponunduva, no caso, nos fundos do loteamento Santa Inês. Uma última olhadela de adeus a Serra dos Cristais por sobre o ombro, agora ganhando tonalidade avermelhada com o sol do entardecer, e seguimos em frente. Caímos então numa estrada maior  até dar num minúsculo botequinho, as 16:15hrs, onde pegamos alguma info. Pra variar, o busão que cobre aquele cafundó tem horários bem irregulares, mas o entregador de bebidas do moquifo (que ali estava, no momento) nos ofereceu carona pra Jordanésia em troca de míseros "Deiz Real!", negócio que eu e a Lau não pestanejamos em aceitar! Mas, claro, somente após tomar uma cerveja litrão no estabelecimento! Afinal, somos todos “Filhos do Homi”, né?
 
Como foi dito na introdução, a Serra dos Cristais é programa breve e tranquilo, e o roteiro deste relato só foi vitaminado de modo a preencher um dia inteiro, a partir de Pirapora. Contudo, o melhor acesso direto aos morros é a partir de Cajamar, via Estrada Flávio Beneducci. Há condução pro bairro do Ponunduva, mas como foi já dito é bem irregular. Mas aí é só questão de se informar. Ou aproveite o dia num rolê mais exigente emendando o “Morro da Placa” e a Serra dos Cristais, pois são elevações bem próximas. Você decide. Dessa forma é confirmada mais uma vez que nesta região os atrativos vão bem além de suas tradicionais romarias e peregrinações, e suprem a contento quem busca uma descompromissada chinelada por picos menos (ou nada) conhecidos.

Jorge Soto
http://www.brasilvertical.com.br/antigo/l_trek.html
http://jorgebeer.multiply.com/photos
 

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Sobre o autor

Jorge Soto é mochileiro, trilheiro e montanhista desde 1993. Natural de Santiago, Chile, reside atualmente em São Paulo. Designer e ilustrador por profissão, ele adora trilhar por lugares inusitados bem próximos da urbe e disponibilizar as informações á comunidade outdoor.

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