Eu, o Johny e o Émerson nos encontramos com o Natan, a Michele e a Grassy no portal da Graciosa para depois deixar os automóveis aos cuidados do Espalha Brasa na Casa Garber. Às oito em ponto iniciamos a subida do Morro Mãe Catira com as pesadas mochilas cargueiras nas costas. Acima do primeiro mirante dessa montanha há uma confusão de caminhos no capinzal que não conduzem a parte alguma. Um deles, porém, esconde uma descida abrupta que após cruzar um riacho de águas cristalinas numa profunda grota, dá acesso ao Pequeno Polega. A subida oposta não representa problema e o cume é bastante inóspito apesar da vista privilegiada dos abismos que o separam do Morro Sete. Mais abaixo há um labirinto de pedras, onde existe uma ossada de gato do mato, que oferece excelente abrigo para uma breve parada.
Em frente, o terreno se verticaliza e apresenta lugares perfeitos para múltiplos pacotes cinematográficos com possibilidade de fraturas horrendas nos mais desajeitados. Não é lugar para amadores. A subida do Casfrei, no entanto, é curta e suave onde o Johny com o Émerson tomam grande dianteira. No primeiro cume do Esporão do Vita o sol castiga com força e percebo um movimento atípico sobre o cânion do Rio Taquari, a nossa direita. No silêncio consigo mostrar aos demais a farra de um bando de bugios sobre a copa das árvores que encobrem a mais horrenda grota deste lado da montanha.
Reunimos o grupo num recanto do rio e seguimos juntos até a nascente antes de escalar a encosta leste do Tapapuí e despontar nos campos de altitude com vista desimpedida para todo o trajeto percorrido e a ainda a percorrer neste dia.
Sem moleza descemos à nascente do Rio do Meio e por seu leito avançamos por aproximadamente trezentos metros antes de tomar a encosta à esquerda e subir para o campinho no cume do Tanguiri onde esperava chegar antes das nuvens para mostrar o espetáculo dos paredões a prumo do Esporão do Vita lançando-se sobre o abismo da Graciosa, mas o mar de nuvens subindo do oceano foi mais rápido.
Nos campos do Farinha Seca esperamos e descansando. O Natan, inclusive, matou suas saudades do cume ao procurar e resgatar o tubo que depositou ali em 2007 quando passou na travessia dos NNM. O caderninho dentro de um plástico que mais parecia uma embalagem de picles devido à quantidade de água verde que se acumulava dentro seria seu parceiro até o fim da travessia. Nos apressamos em descer para o vale, receosos de que alguém sugerisse acampar por ali mesmo e no outro dia batesse aquela preguiça de continuar.
No fundo do vale aproveitamos para estocar água para a noite que já se aproximava e tratamos de subir para o Morro dos Macacos em ritmo bastante lento devido ao cansaço acumulado e o peso extra da água nas mochilas. Ainda dentro do mato, mas bem próximo ao cume, o Natan parou para montar o acampamento para suas duas protegidas. A nevoa úmida já penetrava no bosque e encontrou duas árvores fortes onde amarrou suas redes de selva com três andares protegidas por um toldo. Nós seguimos direto para o campo no cume onde armamos o bivaque ao lado da macega após onze horas de caminhada tranqüila e agradável.
Com a neblina espessa e alguns borrifos de garoa, bastaram poucos minutos para tudo ficar encharcado e tratamos de preparar a janta em meio a muita gozação. O Émerson compareceu com alguns goles de vinho fajuto para descontrair ainda mais o ambiente e tratei de ferver água para preparar uma macarronada com champignon ao molho de ervas finas. Muito queijo parmesão, salame italiano e outra iguarias nos mantiveram entretidos por bom tempo até o Natan aparecer e estender o papo por mais algumas horas.
Na madrugada acordei cozinhando dentro do saco-de-dormir e enquanto tirava o excesso de roupa pude ver algumas estrelas por entre as brechas do nevoeiro que me renovaram a esperança de um belo amanhecer. Ao despertar colocamos os sacos-de-dormir ensopados para secar ao vento enquanto preparava um cappuccino pelando de quente para definitivamente acordar pra vida. Aos poucos apareceram a Michele e a Grassy que sentada sobre a mochila resolveu retocar a maquiagem. O Natan foi o último a surgir do mato com cara de quem se livrou do peso inútil.
Descemos pelo campo na direção do oeste até a macega e pouco a frente por uma vala seca que mais abaixo vertia água corrente em boa quantidade. Foi o último abastecimento de água potável antes da descida do Balança. O rastro fresco deixado pelo Elcio facilitou a caminhada, apesar da grande distância, e facilmente atingimos o cume onde encontramos a garrafa pet e o saco de lixo abandonados.
O próximo morro da caminhada é coberto por densas florestas que não permitem qualquer orientação visual. Quando os rastros sumiram por completo, com preguiça de subir nas árvores, o Johny fez contato por celular com o Elcio que minutos depois nos enviou as coordenadas do ponto em que o Jurandir e o Pedro pernoitaram nos limites do 'Jurape'.
Seguimos avançando por uma quiçaça infernal, espinhos, cipós, unha-de-gato, caraguatás e muito sobe-desce pelas cristas até começar a se desenhar um profundo selado a nossa direita. Acompanhando a depressão chegamos ao ponto marcado por uma grande pedra na encosta oposta onde ressurgiram os rastros. Lugarzinho sinistro, escuro e úmido que os dois arranjaram para se protegerem da tempestade. Depois de uma subida curta e tranquila começou a longa crista do cume onde finalmente consegui responder afirmativamente à pergunta que me foi insistentemente repetida.
– Aquele é o Balança?
– Sim, aquele é o Balança!
Uma última silhueta antes do vazio profundo, bem pertinho, logo abaixo e os passos se apressaram em sua direção. Acabou-se o cansaço e rapidamente descemos a encosta para mergulhar os pés no pântano e cruzar o mar de caraguatás até a macega do outro lado. Na depressão do 'Alto Alegre' deixamos as mochilas para atacar o cume e só então percebi que onde bivacamos não era menos deprimente do que o buraco do outro lado do 'Jurape'. No cume, a festa foi de chegada, mas tratei logo de jogar água fria na fervura lembrando que ainda faltavam quase 1000 metros verticais antes da comemoração. Descer dali seria pedreira!
Depois de muitas fotos e um longo descanso recomeçamos a nos mexer. Braços e pernas empenhados em não rolar morro abaixo até a base do paredão onde acompanhamos a úmida canaleta até o chuveirinho. Longa e forçada pausa para encher os cantis com os pingos que brotavam da pedra e nova parada na base da cachoeirinha seca para fazer um suco em pó e matar a sede feroz. Muita ansiedade na crista para ver de frente os paredões da pirâmide final e no local do primeiro bivaque já se ouvia o Rio Ipiranga rugindo raivoso no Salto Rosário e Feitiço que não tardariam em se mostrar.
Comecei a azucrinar com a Michele dizendo que teríamos que atravessar o rio a nado, mas ela não se amedrontou ou pelo menos soube disfarçar. E dá-lhe piramba que não acaba mais, forçando os joelhos e as panturrilhas prá lá da conta. No tobogã pudemos sentar no limpo, reunir o grupo e descansar as pernas, mas ao escalar o barranco oposto colocamos em fuga um bando de jacus que se preparavam para dormir. Dali até o rio a descida era suave, um alívio para as pernas cansadas.
No Rio Ipiranga mostrei o 'pulo do Moisés' sobre as pedras para ninguém precisar molhar as botas, mas mesmo com o exemplo o Émerson preferiu não arriscar no salto e a Michele forçou o maridão a dar uma longa volta por dentro da água. Na trilha do Salto Rosário foi aquela tranquilidade de sempre, terreno plano e bem marcado. No Rio São João até pensei em seguir para o estrangulamento e pular a pedra, mas diante da sujeira geral achei por bem cruzar pela água e lavar as botas com tudo mais que estava urgentemente necessitando. Na outra margem o Natan perguntou:
– Acabou?
– Fim de festa – foi a resposta.
Na estrada até o IAP as butucas queriam nos comer vivos. A cada tapa abatíamos meia dúzia. Dois dias pelo mato bravio sem um pernilongo sequer e chegando no limpo encontramos um inferno de butuca. No estacionamento do IAP encontramos uma Carol trancada no carro soltando fogo pelas ventas. O Otaviano foi chamado para prestar socorro a 'mais um sem noção' e a deixou servindo de banquete aos borrachudos. Sobrou para mim enfrentar o plantonista:
– De onde estão vindo? – perguntou.
– Da Casa Garbers – respondi sem maiores explicações.
Ele ficou me olhando com a caneta na mão sem saber o que escrever.
– Fizeram registro?
– Não, na Garbers não tem registro, ou tem?
Foi um longo silêncio enquanto me fazia de bobo e por fim, quase 5 minutos depois, continuou:
– Casa Garbers?…só conheço a Casa de Pedra…
– É a mesma coisa – respondi – entramos sábado pela Casa de Pedra, cruzamos pelo alto da serra e chegamos agora pouco no Salto Rosário.
Ele pensou um pouco e deixou a caneta cair ao lado do livro quando perguntei:
– Vai anotar?
– Não! Sem entrada não tem porque registrar saída!
Tem lógica, pensei com meus botões, e a Carol já estava se mandando com o Johny e o Natan dentro do carro, corri para não perder a carona e já fui entrando quando ela me botou para fora:
– Você não! – foi dizendo – Fica aí esperando meu marido.
– Se nem você quer aquele traste porque eu é que vou ter de esperar?
Uma hora inteira alimentando os borrachudos e apareceu o Otaviano numa picape do IAP, toda vomitada, com uma gorda mais morta do que viva. Muita conversa depois pulamos na caçamba e enquanto acabávamos com o estoque de bananas do motorista seguimos sacolejando até Porto de Cima. Lá encontramos o Johny e o Natan que retornavam com os automóveis e seguimos para Morretes comer um bem-vindo Barreado.
Na porta do restaurante, um mendigo não se prestou nem a pedir esmola, só demonstrou indignação quando entramos sem sermos enxotados pelo garçom. Por pura maldade seguimos direto pra mesa da cachaça!
Fotos de Emerson Stange
Links para textos complementares:
1. Circuitão de Fim de Ano
2. Batismo de Fogo no Tapapuí
3. Farinha Seca
4. O Mistério do Balança
5. Mãe Catira – Farinha Seca
6. Rio do Meio, UHM, Porto de Cima e Morretes
7. Travessia da Farinha Seca em 24 Horas