02h de 5/7/2025
O início do nosso segundo dia nos encontrou abrigados, dentro das barracas e dos sacos de dormir. Acredito que posso dizer que nenhum de nós passou essa noite totalmente tranquilo. Eu, utilizei nos pés as meias secas de trilha em dupla camada, porém esqueci de fechar o cordão do meu quilt (saco de dormir minimalista e técnico). Pelo que os colegas disseram, foram 3 horas de gemidos de frio e roncos. O Macedo, constatando que o isolante inflável estava totalmente encharcado, entendeu mais prudente dormir apenas sobre o ETAFLOW 2 mm que levava para cobrir o piso da barraca. Em função da friagem noturna acordaria com uma tosse debilitante, que nos pareceu prenúncio de algo mais grave. O Douglas fora dormir de “barriga vazia”, depois de sonhar por boa parte do dia com a saborosa comida que havíamos armazenado ali. Como aquiescera à recomendação de redução de peso, para que tivéssemos a melhor velocidade possível, também não portava nesse primeiro dia, cartucho de gás, contando com o que havíamos deixado para pegar quando passássemos pelo primeiro ponto de ressuprimento. Com o gás poderia ter aquecido o interior da sua barraca, medida que entendo como emergencial e procuro ao máximo evitar, pelos riscos associados. De qualquer modo, como dispensou a sopa quente que o Macedo ofereceu, lhe sobrou a porção de queijo coalho assado e doce de leite, que eu mantinha ainda para uma eventualidade.
Durante a madrugada, próximo das 4h passou por nós um grupo que que acredito que fazia a travessia Fazenda Pico Paraná x Fazenda da Bolinha e que, ao nos perceber acampados, deu mostra de empatia e montanhismo bem praticado: bastou constatarem nossa presença para um “pessoal, tem gente acampada aqui, silêncio” interromper a animada conversa que só retomaram já distantes. Nenhuma palavra de nossa parte. Apenas o bom senso de quem divide as montanhas com educação. Fica aqui nosso agradecimento à gentileza com que nos brindaram.
Em casa, ao analisar os dados do primeiro dia, ainda que superficialmente, pude perceber de forma inequívoca, o quão perto passei de um perrengue mais sério. Focando na parte final desse primeiro dia, observa-se que durante a subida ao PP, o corpo mantinha a temperatura na região do relógio/GPS em 16/17°C. Nesse momento como estaríamos expostos ao vento na maior parte do tempo, eu estava com 4 camadas de roupas sobrepostas (segunda pele, blusa de trilha, jaqueta e jaqueta de chuva), um poncho de emergência e uma capa de chuva. Ao fazermos o esforço para o Itapiroca, com as cargueiras, a temperatura nessa região alcançou 19°C. Assim que parei, na primeira área de acampamento que pensamos, despencou até 12°C. Ao acamparmos, enquanto armava barraca e retirava as roupas encharcadas, oscilou na faixa 13/14°C. Depois, deu uma boa recuperada, alcançando 27°C antes de começar a cair novamente, momento em que vesti a jaqueta de pluma e caí para dentro do saco de dormir. O chocolate quente também ajudou muito.
Acordei, como de praxe em trilhas, às 6h, vesti meias e tênis e fui buscar uma boa área para meu buraco matinal. Aliviado, interpretei as marcações que fizera quando da instalação do pote de suprimentos e, com facilidade encontrei nosso segundo ponto de suprimentos, esse realmente abastado de mantimentos, não apenas com lanches, como o anterior, nas vizinhanças do A1 que nos ofertara conforto e energia para o ataque ao PP e a derradeira caminhada da véspera, entre o A1 e nosso ponto de pernoite, no Itapiroca. Fiz umas viagens entre o ponto de suprimentos e o acampamento, cuidando para não sujar ou molhar as roupas, levando os recursos para perto de nós e caí para dentro da barraca, com as pernas para fora. Com o canivete e paciência, cortei as proteções que havíamos aplicado aos potes e acessei o tesouro de fartura que nos vergara as costas quando da instalação do ponto de suprimentos. Arroz, feijão, macarrão, sopas… capas de chuva. Lanches de trilha, em quatro pacotes individuais. Separei as coisas em pilhas, já adiantando o preparo para o acondicionarmos nas cargueiras mais tarde. Nosso próximo pernoite, no Siririca, também contava com ponto de suprimentos instalado previamente, de forma que andaríamos leves, apenas com os lanches de trilha, um par de sopas e um miojo para cada um, por questão de segurança. Encontrados nossos suprimentos e com o nascer do dia, sem chuva e sob tênue sol que tentava se firmar, o entregar de pontos da véspera foi revisto de forma unânime. Eu havia providenciara uma nova previsão de tempo, através do comunicador/rastreador satélite. A previsão que o GARMIN IReach nos trazia era condizente com o que víamos ao vivo e razoavelmente positiva para os dias vindouros. Fizemos um café da manhã super reforçado, para repor o desgaste da véspera. Sabíamos que, mesmo partindo “tarde”, daríamos conta de chegar no Siririca e acampar numa jornada menos extensa que a do primeiro dia e a menor exigência física nos permitiria recuperar um bocado das forças enquanto caminhássemos. Retornamos às previsões de acampamento para os pontos iniciais, abandonando a ideia de cruzar as três serras em 7 dias e 6 noites e reconhecendo que para nossas condições físicas, seria por demais desgastante tentá-lo. As novas previsões de tempo nos sinalizavam que não seria necessário, então faríamos a travessia em paralelo com o recuperar de forças do dia 1. O planejamento inicial, de pernoitar no Itapiroca, Siririca, Corocoxós, “M22”, Macacos, Cyprianos, Itupava e Pelados nos permitia completar o desafio em 9 dias, com 8 acampamentos. Fora reservado um “dia extra/suplementar” em razão dos trechos que não havíamos trilhado ainda, basicamente nas ligações entre a serra do Ibitiraquire e a serra da Farinha Seca e entre a Farinha Seca “clássica” e a serra do Marumbi. Trechos que convertiam a travessia da Farinha Seca “Clássica” em Farinha Seca “Real”. Havíamos instalado pontos de suprimentos em 4 desses pontos, de forma a alternar dias de “cargueiras leves” com dias de “cargueiras pesadas”.
Partimos do acampamento no Itapiroca às 11:40, comigo à frente, ansioso por alcançar a área próxima ao livro de cume, onde o sol batia mais intenso. A tosse do Macedo nos preocupava, principalmente quanto reclamou de dor nas costas e no peito, ao tossir. Após uma reflexão mais dedicada, lembramos que todos dispúnhamos de antibióticos para eventual emprego. Um de ação ampla, que cobria as vias aéreas superiores e outro, também de amplo espectro, que cobria ferimentos na pele, trato urinário etc.
Aproveitamos o sinal no cume do Itapiroca para mais uma conferência com nossa rede de apoio e avaliação e ele, entendeu adequado o uso do antibiótico em comprimidos de 750 mg, uma vez ao dia. Para ajudá-lo a não esquecer a hora de ingestão, padronizamos às 13h. No aproximar desse horário, instávamo-nos mutualmente no ingerir dos medicamentos do dia. Eu tomava FLANAX 660 mg a cada 24 horas para as dores recorrentes nos tornozelos e joelhos. Também estava consumindo GLIFAGE XR500 e JARDIANCE 25mg para o controle da glicemia em função da diabetes. Visando não piorar o quadro dos joelhos, que já não são de garoto há uns anos, ARTROLIVE 1500 mg.
O Macedo passara a tomar o antibiótico LEVOFLOXACINO 750 mg e FLANAX 275 mg conforme a necessidade. Por erro, não tomara o protetor de estômago OMEPRAZOL 20 mg usualmente associado ao antibiótico, que dispúnhamos. Esse engano traria consequências ao lhe descompensar a flora intestinal e obrigá-lo a fazer paradas e se servir da pazinha mais vezes que o habitual.
Descemos a vertente sudeste do Itapiroca, subimos o Cerro Verde até a bifurcação de acesso ao cume e deixamos as cargueiras ali, para acessar o cume. Feitos os devidos registros, retomamos as cargueiras, e depois de alcançarmos o cruzo para a Variante Mandela, dobramos à esquerda, a caminho do Meia Lua.
Através da Variante Mandela, passamos pelo Meia Lua e logo estávamos a caminho do Luar, onde registramos a passagem no livro de cume que o Marcelo do CPM deixara durante a passagem pelo Ibitiraquire de sua ACE em solitário. Deixamos uma caneta, das que transportávamos para repor nos livros de cume, no caixa de cume que permanecia sem caneta desde a nossa passagem por ali em 19/6 quando realizamos a travessia entre a fazenda da Bolinha e o Marco 22 (Travessia Ibitiraquire: da Fazenda da Bolinha X Marco 22 MDA e ARCANJOS).
Caminhando em passo normal, escutamos um grito de “frannnnnngo” quando descíamos para o vale entre o Luar e o Siri. No vale, tivemos a grata surpresa de encontrar os amigos do MDA (Vilmar) Dindo e Erick.
Como dispunham da nossa localização via rastreador, eles haviam entrado pela fazenda da Bolinha, acessado o Siririca pela trilha “de baixo”, que passa pela Cachoeira do Professor e caminhavam para retornar à fazenda, após cumear o Luar, Tucum e Camapuã.
Após nos despedirmos da grata surpresa, revigorados pela confiança dos amigos, coletamos água para o acampar no Siririca e tratamos de subir em direção ao Siri, que nos daria acesso, em colo alto, ao Caraguatá (Sirizinho) e finalmente, também em colo alto, ao próprio Siririca.
Cheguei, em dupla com o Douglas, à primeira placa às 21h30. O Macedo nos precedera e já avaliara as áreas de acampamento do cume, de forma que sabíamos ter a montanha quase vazia. Poderíamos escolher onde montar nosso lar para aquela noite. A preferência era alguma região plana, que nos trouxesse conforto e, dentro do possível, parcialmente exposta aos ventos durante a noite, para ajudar a secar o equipamento.
Recolhemos os materiais que havíamos deixado previamente no cume, em 6 potes plásticos rígidos. A partir desse momento eu transportaria comigo os próprios potes, utilizando-os como travesseiro à noite e como proteção definitiva para as coisas de dormir, durante o dia.
Os meus potes contavam com um valor adicional aos produtos que encerravam: ambos são lembranças do meu irmão, falecido há alguns anos. Em casa, quem era particularmente afeito às andanças no meio do mato era ele. Eu o acompanhava e, com ele, aprendi muito do que até hoje sigo no montanhismo. De certa forma, era como se parte dele estivesse ali, comigo. Esse amparo emocional fortalecia minha determinação em superar a empreitada a que me havia desafiado. Eu trilhava absorto, muito preocupado com a questão da minha glicemia, por desconhecer quanto poderia abusar e não incorrer em sequelas mais sérias. Sabia que com a diabetes fora de controle, a circulação periférica ficava prejudicada e a cicatrização, também. Fora displicente no colocar da meia esquerda e a cada passo, o dedinho desse pé gritava em protesto. Tratara com RIFAMICINA os ferimentos nos pês e nas mãos e o resultado parecia promissor.
Por definição, não existe nada perfeito. E com nossa área de acampamento não foi diferente. Entre o conforto e a conveniência, optamos pelo primeiro, acampando numa área plana e abrigada, à direita da segunda placa. Posicionamos as barracas em um arranjo tipo ferradura, ou “C”. Às 22h, estávamos com o acampamento montado e enquanto Douglas e Macedo cozinhavam, separei os mantimentos para os próximos dois dias. Era apenas um jantar e um café da manhã, a serem preparados no Corocoxós. Já lanches de trilha e capas de chuva para dois dias, pois não queríamos arriscar. Para minimizar peso, os jantares em pontos de acampamento afastados dos pontos de suprimentos, foram padronizados para dois miojos e 4 sopas instantâneas para cada um. Mesmo já bastante frugal frente ao que dispendíamos de calorias diariamente, faríamos nova redução nessa dieta, com o avançar da travessia. Além do peso poupado, praticamente desprezível, a verdade é que faltava tempo e apetite para refeições mais elaboradas ou substanciais.