Dia 3 – 2h de 6/7/2025
Nosso terceiro dia começou gelado no cume do Siririca e, nas horas vindouras, antes que o sol voltasse a aquecer a serra, a temperatura cairia ainda mais. Talvez tenha sido a noite em que passei mais frio, por estar parado e com o saco de dormir (quilt) mal-arranjado. Eu ainda não atinara em fechar a parte inferior do quilt e atribuí, erroneamente, a intensa sensação de frio, à uma perda da capacidade de isolamento do quilt, em função da umidade que teria absorvido. Durante a noite anterior, condessara um pouco na parte superior e na região dos pés essa condensação se somara a água empoçada no piso da barraca, com resultados preocupantes. Por sorte, o Macedo ao me emprestar o power bank, o fez com um pé de meia de lã para proteger o aparelho de descarregar em função do frio. Perguntei se o par estava ocioso e, frente à resposta, o vesti, muito aliviado. Sem esse par, a noite teria sido bem mais sofrida.
Durante a noite, alternei o tremer de frio com breves cochilos ao longo de uma escura e gélida noite, que parecia infindável. A menor altitude desse cume, 1705 m NMM quando comparado com a altitude de 1805 m NMM trazia a esperança de uma temperatura mais amena, mas a evolução da massa de ar frio que tornaria o tempo ensolarado e firme, também derrubara a temperatura em toda a região. Talvez pela displicência no uso do quilt, sem fechar a parte dos pés, talvez por não permanecer com a parte da costura para baixo, ao me virar durante a noite, essa foi a noite em que senti mais frio. Durante a noite vesti todas as minhas roupas secas em sucessivas camadas.
O dia despontou sol tímido frequentemente obscurecido com as nuvens arrastadas pelos ventos. Na expectativa que o tempo firmasse em sol, propus arrumarmos as mochilas de forma que as coisas de dormir, de forma excepcional ficassem mais próximas do topo e que, as deixássemos expostas ao sol, enquanto fizéssemos o ataque aos cumes do Agudo Lontra e do Agudo Cotia. Considerando que o tempo poderia invernar decidimos aproveitar o tempo aberto para espalhar as tralhas e buscar que secassem, presas à vegetação. Após nascer às 7h40, o sol incidia com mais intensidade na laje rochosa da segunda placa e, em sucessivas viagens tratamos de levar todos os equipamentos para lá. As barracas, por serem autoportantes foram transportadas montadas e ancoradas à vegetação ou lastreadas com pedras. As roupas e equipamentos de dormir expostos ao sol prometiam que, desde que cuidássemos deles, nos retornariam a gentileza no frio noturno. Torci as roupas de trilha, tentando extrair dela tanta água quanto possível e facilitar o trabalho do sol. Com o sol brilhando, mesmo sob a brisa fria, o dia estava bastante agradável e a temperatura tolerável. Porém, quando o vento trazia uma nuvem mais cerrada, a sensação térmica despencava e não havia ninguém que passasse sem considerar que estaríamos melhor em movimento. A partida havia sido pensada para 8h30 e depois reprogramada para 9h30. Depois de apreciar o sol e congelar na penumbra ventosa por um tempo, avaliei que, com a alternância de sol e nuvens o risco de molhar as coisas era maior que o potencial de ganho e tratei de arranjar minha mochila. Com a cargueira pronta, tratei de abrigar do vento atrás da sapata de alicerce da placa, enquanto aguardava que os companheiros completassem a arrumação de suas cargueiras.
Partimos ou melhor, fugimos do cume ventoso, tarde, 10h40. Descendo com cuidado pela face sul do Siririca, em pouco tempo alcançamos o primeiro lance de laje rochosa mais exposto que superamos com auxílio de corda fixa. Pela minha contagem, são 4, talvez 5, lances desse tipo. Há um ponto em que a laje rochosa recebe um pequeno filete d’agua, onde me parece que a combinação de baixa aderência, ângulo da laje e exposição produz considerável risco. Nesse ponto, caminhamos à direita, bem próximo da vegetação.
Na descida, enquanto aguardávamos que o Douglas vencesse um trecho de corda mais extenso, o Macedo me confidenciou que caíra ali, uma vez. Ainda antes de instalarem a corda, aquele lance era superado com o auxílio da vegetação à margem da trilha. O galho em que se apoio, logo no início do lance, rompeu-se e ele sofreu uma longa queda até um pequeno patamar, uns 15 metros abaixo, onde a vegetação impediu que “vazasse” a tênue cortina que existe logo atrás e, abaixo. Não fosse essa sorte, o acidente poderia ter sido de muito maior gravidade. Felizmente, fora alguns hematomas e cortes menores, não se feriu. Perdeu parte da honra, durante a queda. Ganhou maior respeito pelos lances de exposição, certamente. Assim, também, o bom montanhista evolui, aprende. Na carne. Escutei a história e procurei, durante a descida, manter-me atento ao lance. Em função da confidência, ao terminar o lance, decidi aguardar que ele também o fizesse. Vai que, não é? A gente nunca sabe quando o outro está sob pressão ou na iminência de travar.
Passamos pelo trecho de charco, onde há sinal de celular e continuamos a perder altitude até o Cruzo Agudo Lontra baixo, onde fizemos uma pequena parada. Aproveitei a pausa para tirar a mochila e buscar o antibiótico para o Macedo, nos medicamentos que exigiam maior cautela na guarda. Erroneamente, eu supunha que já deixara com ele, quando na verdade, por precaução a gente havia decidido que eu continuaria a fazer a guarda deles, em conjunto com demais medicamentos de uso comum. O sol que durante a descida da encosta do Siririca fora intermitente, agora brilhava forte e procuramos nos manter hidratados, preparando sucos instantâneos nos pontos d’água. A partir desse ponto, supúnhamos que tocaríamos para cima, para o Lontra e depois, pela interligação Lontra – Cotia continuaríamos a travessia. Porém, ali o track de referência dobrava à direita, descendo para o vale ao pé do Colina Verde, preservando a história da travessia inaugural. Cruzamos o vale, atravessando dois pequenos cursos d’água que se unem às outras nascentes mais elevadas do Rio Forquilha e começamos a subir em direção ao Agudo da Cotia. Na subida, entendemos que o Lontra era um cume de derivação, que o ataque nos tomaria cerca de uma hora, o horário avançado horário em que deixamos o Siririca e o que ainda pretendíamos caminhar no dia, decidimos não atacar esse cume. Tocamos para cima, deixando as cargueiras no cruzo para o Cuíca, já no ramo do acesso ao mesmo. Esse cuidado que tentamos nos recordar de tomar sempre, busca evitar que, ao retornar do ataque, por engano se tome o caminho errado no cruzo. Acredite, esse engano acontece com insuspeita frequência e, a depender do local e momento, minar o ânimo do grupo ou até resultar em perdidos ou acidentes mais sérios.
Às 14h10, no cume do Agudo da Cotia constatamos que não houvera passagem de montanhistas, ou pelo menos registro de sua passagem, posterior a troca do livro que efetuamos no mês anterior. Em uma pequena parada, fizemos os devidos registros, acrescendo uma toalha desidratada como desumidificador e duas canetas novas. Quando da troca dos livros, durante a travessia Bolinha X Marco 22, não dispúnhamos de canetas para ressuprir as caixas e apenas coletamos as que estavam inservíveis, para descarte.
Retomamos as cargueiras e seguimos para o Cuíca. Na subida, o Macedo parecia ainda mais abatido que na véspera. A tosse fora contida ou revertida pelo antibiótico, mas a saúde cobrava o preço nas frequentes saídas do trilho para o cavar de buracos. O Douglas me fez um sinal estranho que, por ignorância e cautela, entendi como “fale muito e tente incutir ânimo no Macedo”, de forma que passei a tagarelar muito mais que meu proceder mais usual. As provocações e brincadeiras foram se amarrando umas às outras: “vi um adesivo de um tal de Trilheiros do Sul do Brasil, já ouviu falar?” … “é aquele grupo que tem uns malucos que peitaram a maior AC da história?”… “esses mesmos. Tem um Cláudio ali que, não obstante a loucura de descer a Face Leste do Ferraria, subir o Jacutinga e os Sacis, ainda inventou um de atalho para retornar: por dentro do vale do Rio Cotia, num trajeto inédito de cargueira” … “tudo loucos, Malucos, mesmo”.
“Pelo que eu ouvi, ele criou a base daquela música ‘eu não vim até aqui para desistir agora’ e franqueou para aquele grupo gravar, lembra? Os tais Engenheiros”. Fatos e invencionices quebrando o silêncio da serra e trazendo, ainda que de forma fugaz, distração ao Macedo e pequeno alento frente ao seu desconforto.
Nesse trecho, eu e o Douglas seguíamos na dianteira do trio, dosando nossa velocidade para manter a distância adequada ao misto de privacidade, segurança e acolhimento que nosso combalido montanhista fazia jus.
Alcançamos o cume do Agudo da Cuíca às 16h10, fizemos os registros e tocamos em frente, procurando otimizar a caminhada durante o dia, sabendo que o trecho entre o Agudo da Marmosa e a Garganta 235 seria de navegação mais delicada, por ser transcorrido à noite. Pretendíamos fazer uso do tal “atalho/otimização” que o Élcio sugerira, ligando o ponto de coleta d’agua para acampamento no Corocoxós e a trilha da crista do Tangará. Esse acesso busca otimizar o trajeto, poupando uma caminhada pouco funcional pela encosta do Tangará até a Garganta 235.
Alcançamos o cume do Agudo da Marmosa às 17h25, fizemos os registros e retomamos o caminhar, agora já com entardecer findando sob uma espessa camada de nuvens que o vento soprava na direção do Corocoxós e que envolvia, como manto de algodão, as montanhas que ainda restavam em nosso caminho, antes que pudéssemos dar o dia por concluído.
Cerca de uma hora antes que o sol se ponha ao longe, nas matas já escurece e com a densa nuvem que tocava o solo, a navegação ficou sensivelmente prejudicada. No começo da descida do Marmosa, já havíamos vestido as lanternas, mas com a luz refletindo nas partículas d’agua em suspensão, a iluminação não vencia mais que uma dezena de metros, se tanto. Para contornarmos essa dificuldade, adoramos a estratégia de mantermos uma distância de 20, 30 metros entre o “ponta” e a dupla remanescente, que permaneceria sempre na trilha “já confirmada”. De tempos em tempos, o encontrar das fitas era festejado pois comprovava que naquele lusco-fusco que tanto prejudicava o avanço, ainda estávamos no caminho certo.
Cogitamos acampar em qualquer área aberta e partir no dia seguinte, mas como o trabalho em equipe ainda permitia que navegássemos na quase total falta de visibilidade, fomos avançando aos poucos, com perdidos pequenos, de poucos minutos até que, às 19h25 alcançamos o trecho de campo do cume do Tangarim, onde o rastro no capim era bastante evidente e permitiu algum ganho de celeridade na progressão. Cumeamos o Tangarim às 19h30, e iniciamos a descida em direção ao colo Tangarim – Tangará, sendo novamente envoltos pelo nevoeiro que tanto nos dificultara o avanço desde o Marmosa.
Seguindo esse proceder de ter um “ponta” à frente, caçando o caminho e os outros colaborando no verificar de eventuais perdidos ou mudanças de direção continuamos avançando até alcançar, às 19h46, o ponto d’agua da encosta do Tangará. Fizemos uma parada para hidratação e lanche, coletando também água para o pernoite e a caminhada da manhã seguinte até o ponto d’agua após o Arapongas.
Partimos às 20h, atentos à rastros de passagens anteriores à esquerda, encosta acima, várias tentativas tornavam confuso o ponto de acesso. Caminhamos algumas dezenas de metros antes que eu percebesse, às 20h27, que havia esquecido o bastão de caminhada no ponto d’água. Combinamos que o Douglas e o Macedo aguardariam num ponto onde nos parecia viável para o acesso e eu retornaria para buscar o bastão. Acreditávamos que isso tomaria 5, 10 minutos, se tanto. Mas na serra, à noite, muitas vezes ocorre grande hiato entre o planejado e o realizado. Para buscar o bastão, eu precisava retornar ao ponto o que foi bem mais simples pensar que fazer. Como era um trecho muito curto, deixei minha cargueira com a dupla e iniciei o retorno, e na pressa, por 2 vezes cometi algum erro de navegação que me levou a dar voltas desnecessárias, num trecho pequeno, de uns 50 metros, se tanto. A lanterna se soltara da tira de cabeça, e eu seguia com ela como lanterna de mão. Depois de “muito bater cabeça encontrei-me no curso d’agua, uns 10 metros acima, e com a lanterna do Macedo a iluminar as pedras do curso d’agua, tratei de me desvencilhar do espinescente cipoal que protege a grota e fui descendo lentamente até alcançá-lo, às 20h42.
Com a iluminação do Macedo, fixei novamente a minha lanterna à fita, recuperando totalmente a sua funcionalidade. Em passo apertado, alcancei o Douglas, protagonizando uma das 3 altercações da nossa travessia. De cabeça quente, minha fala que tinha pretensão de ser objetiva foi rude. Pelo que ao perceber, me desculpei com os dois, inúmeras vezes. Faço-o aqui, mais uma vez.
Avaliamos a alternativa de fazer o vara-mato encosta acima, pelas condições que a navegação noturna estava apresentando, mesmo em trechos com frequência muito maior. Estimamos que “dar a volta”, descendo até a Garganta 235 e retornando, de ataque consumiria cerca de 30, 40 minutos adicionais ao melhor prognostico de subirmos a encosta varando mato com as cargueiras. Às 21h04 abandonamos a subida da encosta e tocamos direto para a Garganta.
Alcançamos a Garganta 235 às 21h30, colocamos nos bolsos o material que entendemos necessário: lanternas extras, rastreador, celulares, canetas, lanches para ida e volta e, às 21h40, com as cargueiras protegidas de uma eventual pancada de chuva iniciamos o ataque ao Tangará. No cume, alcançado às 22h18, fizemos os devidos registros, acrescemos uma toalha compactada para ajudar a proteger o livro da umidade, deixamos uma caneta extra e tocamos de volta. Tanto na ida, quanto na volta notamos uma fita diferente, à esquerda (ida) e à direita (volta) em um pequeno platô/ colo que acreditamos que seja onde o acesso a partir do ponto d’água alcance a trilha já consolidada ao cume.
Às 23h04, novamente na Garganta 235 fizemos uma parada para registrar adequadamente a passagem, uma pequena manutenção no tubo de cume, melhorando a fixação com fitas Hellerman e a aposição da toalha desidratadora. Partimos 23h17, galgando a encosta do Corocoxós lenta e cuidadosamente. Atento ao colocar de mãos e pés, não percebi que a trava do bastão abriu e parte do bastão ficara para trás. Saberia depois que, na passagem da próxima equipe ACE, o Jailson encontraria essa parte e a levaria até o livro de cume do Corocoxós. Talvez algum montanhista que ler essas linhas, recupere a ponteira e a faça chegar até a mim. No mínimo, fica menos lixo na serra. Alcançamos o cume do Corocoxós às 23h53, rapidamente tratamos de preparar acampamento e ainda antes da 1h da madrugada, todos descansávamos de um dia de navegação mais exigente, não pela trilha, mas pela neblina que prejudicava bastante a visibilidade.
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