Dia 4 – 2h de 7/7/2025 Corocoxós x M22
Dessa vez, não facilitei para a friagem noturna, ajustando bem o quilt, e abrindo um cobertor de emergência para forrar o fundo da barraca e me cobrir. Dormi muito bem essa noite, acordando pouco após as 5h com o dia que clareava aos poucos.
Tentando não fazer muito barulho me levantei e, de pazinha na mão, busquei um local adequado para meu buraco matinal, a uns 50 metros do acampamento. Retornei e comecei a arrumar as tralhas, com todo o cuidado para garantir a máxima proteção às tralhas de dormir. O repetir do processo traz ganho de agilidade e meu arranjo das tralhas é sempre o mesmo: Isolante casca de ovo, dobrado em duas partes, na vertical dentro da mochila e o mais distante possível O cobertor de emergência foi dobrado algumas vezes, sem a pretensão de torná-lo compacto como antes. As coisas de dormir, seguiam compactadas dentro dos dois potes plásticos rígidos, com tampa de rosca. Toda vez que os guardava, colocava junto toalhas compactadas, para que absorvessem alguma umidade. Os dois potes iam dentro de um saco plástico grosso, com a boca torcida e mantida fechada por elástico, no fundo da mochila. A camada seguinte, nesse empilhamento,
era formada pela barraca, meu kit de cozinha, alimentos para jantar e lixos diversos, nossos ou encontrados na trilha que iam se acumulando na mochila até um ponto de descarte mais acessível para resgate futuro. Na camada do topo da mochila, as duas jaquetas de chuva, a segunda pele de tronco para pronto emprego, protegida por um plástico grosso. Os itens de primeiros socorros mais volumosos e de emprego menos urgente completavam o arranjo do interior da cargueira, da mesma forma que medicamentos de uso menos provável ou de guarda mais delicada. Óculos de grau, power bank reserva seguiam em sacos plásticos zip-loc. No arranjo desse dia, os óculos de sol e o chapéu de reposição do Wilson ficaram por cima de todas as camadas.
Nos amplos bolsos de barrigueira, fabricados pelo FALCAO NEGRO MONTANHISMO, que somavam mais de 3 litros de volume, mantinha os elementos de primeiros socorros de uso imediato, remédios diversos para o dia, os lanches de trilha, protetor solar, óculos de sol, power bank do dia etc. Nos bolsos das alças peitorais, a garrafa d’água principal, o celular, o comunicador/rastreador satelital. Nos bolsos laterais externos, capa de chuva descartável e poncho de emergência. Como o volume da mochila era muito superior ao que costumo usar, o arranjo das coisas era muito tranquilo de fazer, havia espaço sobrando no interior para itens adicionais, conforme necessário no dia.
Essa era a manhã de aplicarmos o repelente de carrapatos que trazíamos conosco desde a Fazenda Lírios do Vale, na cargueira do Macedo. Soubemos de relato recente da presença dos pequenos artrópodes, sobretudo nas folhas das abundantes guaricanas próximas da região da Estrada da Graciosa e do Marco 22. Não sabemos se o borrifador quebrara durante o transporte, ou já estava danificado em casa, pois não testei antes. Sem nos aborrecer com isso, utilizamos algumas toalhas desidratadas como panos para espalhar o produto generosamente dos pés aos joelhos e das mãos até os cotovelos. Não sabemos se foi o zelo com que aplicamos o produto ou o cuidado tomado em evitar roçar nessas palmeiras, mas seriam apenas dois carrapatos que encontraríamos até a conclusão da trilha: um com o Macedo e outro com o Douglas. Eu, mais uma vez, felizmente passei incólume.
Cargueira arrumada, fiquei descansando enquanto o Douglas e o Macedo terminavam o arrumar de tralhas e se colocavam em condições de partir. Nesse dia, partimos tarde, às 9h10. O caminho era relativamente curto e esse era um dia de recuperação, ou seja, quanto mais cedo chegássemos, mais tempo ficaríamos no acampamento, observando a recomendação do Élcio Douglas de trilhar a ligação Ibitiraquire – Farinha Seca com o dia claro. Caminhando sem pressa, com a cautela necessária nos lances de gretas da lateral do Araponga, alcançamos o cume às 11h e fizemos, de uma parada um pouco mais extensa, um momento de contribuir com o preservar do Montanhismo no “Iado B” do Ibitiraquire.
Com um pouco de criatividade contemplamos o guardião desse cume, um dos mais reservados da região, com um merecido check-up. Desde a travessia anterior, em junho, (relatada em Travessia Ibitiraquire: da Fazenda da Bolinha x Marco 22 MDA e ARCANJOS) quando identifiquei as más condições de saúde do Sr. Wilson que matutava fazer algo a respeito. Entramos na ACE com um chapéu de lona e um par de óculos de sol adicionais, para instalarmos durante a travessia. Chegado o momento, recolhemos o chapéu velho, bastante puído pela exposição as intempéries e substituímos pelo novo, que recebera ainda em casa, um banho com hidrorrepelente, na tentativa de que perdure por outros bons anos. Nas lentes dos óculos, aproveitando as canetas de marcação permanente que portávamos para registros nos livros de cume, deixamos singela homenagem à maior, mais árdua e mais visceral travessia de montanhas do Brasil. Sonho de muitos, privilégio suado de poucos.
Partimos do Arapongas às 11h40, primeiro na direção oeste para depois derivarmos para o sul e continuarmos a descida pela encosta sudoeste, cruzando um plácido regato onde fizemos uma parada para lanche e hidratação. Retomamos a caminhada, sempre no azimute médio de 230º verdadeiro, com uma deflexão à direita para desviar de um trecho mais escarpado, logo retornando ao azimute inicial, até, já com a maior parte da altimetria vencida, dobrar para o azimute 138º verdadeiro e alcançar a região próxima do Dique Diabásio. Nessa região, a tentativa de fazermos uma “passada elegante”, por trilha aberta, evitando varar mato por rumo, nos fez retroceder sobre nossos passos, já bem próximos do dique diabásio. Esse preciosismo nos tomaria cerca de uma hora no buscar de um caminho que talvez tenha sido tomado pela mata com as chuvas, o crescimento da vegetação e a erosão das tempestades de verão.
Às 14h47 alcançamos o dique diabásio, dobramos à direita e passamos a seguir pela margem direita até o topo do Salto Mãe Catira. Nesse ponto, cruzamos o rio e desescalamos o salto pela margem esquerda. Já na base do Salto, prosseguimos pela margem esquerda até o passo, onde retornamos à margem direita, pela qual seguiríamos a partir desse ponto.
Às 15h06, aproveitamos o sol que, aqui e ali, campeava por entre o denso dossel das copas para fazermos uma parada para lanche, hidratação e banho. Dos pretensos 15 minutos, acabamos por estender por pouco mais de meia hora, retomando a caminhada às 15h49. Sabíamos que com mais algumas horas de caminhada, chegaríamos na região de acampamento prevista, onde um dos nossos pontos de ressuprimento mais bem guarnecido nos aguardava com fartura e conforto. Logo após deixarmos a calha do rio, alguns rastros nos chamaram atenção, logo identificados em função do tamanho e geometria como de onça parda. A quantidade de ração para ceva que já observamos em trechos dessa serra, infelizmente alerta para a presença ominosa de caçadores a disputar as presas desses magníficos animais.
Seguimos pela trilha, ganhando e perdendo altitude conforme necessário e cruzando pequenas nascentes tributárias da margem direita do Mãe Catira até alcançar, às 17h25, o último trecho de rio desse dia, atravessando um tributário de maior imponência, o Rio do Cruzo. A partir desse ponto, uma eventual chuva não impede que se alcance o Marco 22, na Estrada da Graciosa. Nosso destino, para esse dia de travessia ficava próximo da trilha alternativa para as Cachoeiras Gêmeas.
Não havíamos feito o acesso à área de acampamento a partir do Rio do Cruzo, apenas a partir do Marco 22, em uma jornada massacrante para a instalação de 3 de pontos de suprimentos, denominados: Itapiroca, “Marco 22” e “Alpha-Ômega”. A instalação desses pontos, em uma viagem de 3 dias, foi uma epopeia à parte. Parti de Santos para me juntar ao Douglas no Metro 23h20 que trabalhara durante o dia e antes de me encontrar, deixara a filha na faculdade. Dali, seguimos para Cotia, pela Raposo Tavares para pegar nosso terceiro integrante paulista: o Rafael Santos. Com o trio completo e o carro entulhado de mantimentos e material de apoio, seguimos para a Fazenda Rio das Pedras. Aproveitamos uma das paradas para esticar as pernas para fazer uma arrumação prévia das coisas que seriam colocadas em cada ponto. Chegamos na Rio das Pedras de manhãzinha, colocamos as cargueiras nas costas e, após o devido registro no IAT tocamos para cima, com o Rafael porteando a cargueira mais pesada, eu algumas ferramentas e o Douglas as demais coisas de consumo, em outra mochila pesadona. Nesse ataque instalamos o ponto de suprimentos do Itapiroca e do A1, onde deixamos apenas um pote com lanches, para o ataque ao Pico Paraná.
Voltamos à fazenda Rio das Pedras, tomamos um banho e tocamos para o Jantar da Montanha no Restaurante Cascatinha. Esse evento merece um registro a parte, em reconhecimento à sua longevidade e importância para o Montanhismo no Paraná. A comida é “OK”, mas as presenças são excepcionais. São muitos os corações que batem no mesmo compasso, pelas montanhas, ali. Pessoal que acumula décadas de montanhismo se irmana com neófitos pela coisa, gente que ainda está dando os primeiros passos nessa saga sem fim de trilhar cada dia para alto, mais difícil, mais ermo, expandindo a cultura de montanha pelo Brasil e, muitas vezes, fora daqui.
Moído pelas noites insones, o Douglas petiscou algo e foi cochilar algumas horas no carro. Enquanto dormitava, a frente fria chegou, trazendo chuva e expressiva queda de temperatura. Pouco antes das 23 horas, eu e o Rafael fomos acordá-lo para prosseguirmos na missão dos pontos de suprimentos, agora em direção aos dois pontos remanescentes: “Alpha-Ômega” e “Marco 22”. Para esses trechos, teríamos o Macedo conosco, que nos encontraria em um ponto ainda incerto. O Dindo se ofertou para enfrentar o frio e a chuva conosco, o que aceitamos com alegria. Paramos em um posto na estrada para vestir as roupas de trilha e o encontramos no Portal da Graciosa. Descemos a Graciosa até o começo da estrada da Prainha, onde aguardamos o Macedo, ao lado da ponte de ferro. Dali, fizemos o trajeto até o Marumbi, antes de retornarmos para instalar o ponto do Marco 22.
Pouco antes do meio-dia de sábado, estávamos de volta no quiosque Engenheiro Lacerda para nos empanturrar de pastéis, caldos de cana, pamonhas e refrigerantes. A chuva caíra fina, intermitente e gelada durante toda a noite e manhã de sábado. Vestimos roupas secas, ensacamos as tralhas enlameadas e tocamos de volta para São Paulo, com o Macedo levando o Dindo para adiantarmos a volta.
Divaguei…. voltemos à travessia em curso. Ao nos aproximarmos do ponto de acampamento, nossos aparelhos de GPS não atualizavam nossa posição, provavelmente devido ao espesso dossel vegetal que há nesse trecho. Em função disso, trilhamos o finalzinho desse dia sob a luz das lanternas, tentando identificar uma variante que partiria para esquerda, pelo qual nós não havíamos trilhado ainda, para quando estivéssemos nele podermos encontrar nosso ponto de suprimentos, enterrado e camuflado, conosco seguindo pelo sentido contrário. Seria falsear com a verdade dizer que, nessa hora, não estávamos apreensivos.
A ansiedade nos fazia querer apertar o passo, a prudência alertava que, pior que chegarmos tarde ao ponto de acampamento era passarmos por ele sem notar. Caso isso ocorresse, nos restaria ir até o Marco 22 e retornar pelo caminho que utilizamos na instalação do ponto de suprimentos.
Já na variante à esquerda, seguimos atentos às nossas marcações e lembranças, avaliando o terreno a cada pouco, procurando identificar a proximidade do nosso ponto de acampamento. Depois de “muito” andar e não chegar, com os GPS ainda nos colocando praticamente no ponto do Rio do Cruzo, às 19h35 fizemos uma parada para comer algo e analisar melhor nossas alternativas. Pouco depois, às 19h47, ao decidirmos continuar a caminhar pois “não devíamos estar longe”, nossa posição no GPS saltou para o lado do acampamento, que identificamos pelo trecho de terreno plano e nossas fitinhas de marcação. De forma insuspeita, às 19h48 estávamos na área de acampamento desse dia.
Com espaço amplo e plano, cada um escolheu o ponto que mais lhe pareceu favorável e tratou de montar a própria barraca. Com a barraca pronta, retirei o quilt e as roupas de dormir da mochila, deixando-os abertos dentro da barraca para que fossem recuperando sua melhor condição, com as plumas se expandindo recuperei nossa pá e desenterrei os vários potes desse ponto. Em pouco tempo, os fogareiros do Douglas e do Macedo crepitavam preparando o jantar. Nesse ponto dispúnhamos de uma garrafa de 2 litros de Coca-Cola zero outra de H2O limão que mesmo apenas frescas estavam deliciosas.
Nesse jantar nosso cardápio era muito mais farto e variado que a média, pela facilidade de acesso para a instalação do ponto de suprimento. Nesse ponto havíamos deixado, não apenas alimento para o acampamento dessa noite, como também para o trecho da Farinha Seca Real. Nosso planejamento era pernoitarmos no cume do Morro dos Macacos e fazer o segundo acampamento em algum lugar a partir dos Campos do Cypriano.
Para isso precisaríamos de dois jantares, dois cafés da manhã e lanches de trilha para três dias. Com as instabilidades de tempo que vínhamos presenciando, reforçamos os equipamentos para enfrentar pelo menos um dia de tempo mais delicado, frio ou chuvoso. Nesse ponto contávamos com sacos de plástico grosso para proteger os equipamentos da chuva e da umidade. Deixei os power banks que já estavam sem energia, peguei os novos para o trecho que faríamos, testei e deixei na barraca para facilitar o arranjo das tralhas no dia seguinte. O bastão de caminhada, sem a extremidade perdida na subida do Corocoxós, também ficou guardado nesse ponto, para resgate após concluirmos a travessia.
O cardápio desse jantar teve arroz, feijoada, carne seca com legumes desidratados, milho na manteiga, queijo e salame para petiscar. Enquanto cozinhavam, separei as coisas que cada um levaria para os próximos 3 dias, procurando dosar peso e conveniência. Para os jantares, optamos por 3 miojos para cada um, reforçados, pela questão de segurança, de 4 sopas instantâneas. Os lanches de trilha, principal fonte de nutrientes durante as longas jornadas diárias, respondiam pela maior parte do peso.
Bem alimentados e com as barracas instaladas em terreno muito favorável, pouco depois das 22h nos recolhemos para dormir uma das noites mais confortáveis dessa travessia.
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