Estas palavras escritas a 29 de Fevereiro de 2008, num post que designamos por Simplesmente Ursa, traduzem bem o que sentíamos quando ficávamos a sós com aquele penedo, situação que o mar nos impunha quando a maré subia e ficávamos felizes a viver aventuras na ilha em que a Ursa se transformava.
Como era…
As escaladas naquele pináculo de calcário pautavam-se pela originalidade. Os dias eram forçosamente escolhidos de acordo com os horários da maré. Se a maré baixa ocorria de manhã cedo e a meteorologia o permitia, então arrumava-se o material para passar um dia sempre inesquecível na Ursa.
A primeira via que escalei na Ursa, foi a Via Normal. Nesta primeira aventura, fui levada pelas mãos do Paulo Alves.
Numa data perdida no tempo, recordo escalar também com o Paulo Alves a via Ovelhas Negras, aberta pelo Paulo Roxo e Miguel Grillo Outubro de 2004. Na altura, à saída de um tal Portal Cósmico comentei a dificuldade que seria retirar o friend que constituía a primeira protecção, a protecção que iniciava uns quantos passos de artificial à saída daquele túnel peculiar que nos colocava sobre o Atlântico. Desde aí, na fenda onde entraria o friend, passou a residir uma cordeleta entalada, que o Paulo Alves inteligentemente se lembrou de colocar a servir de protecção.
Daniela e Paulo Alves, entre o 3º e o 4º lance
Imagino o quanto se divertiram o Paulo Roxo e o Miguel Grillo na abertura da via.
Foram inclusivamente eles, que atribuíram ao típico túnel o nome de Portal Cósmico Nas palavras do Miguel…
Uma enorme e rara travessia, inicialmente por terreno fácil, depois pelo interior de um grotesco e húmido túnel, finalizando sobre uma impressionante e exigente travessia extra-prumada directamente sobre as ondas do mar até se alcançar a suspensa reunião. No momento de entrar para as profundezas daquele característico túnel, tive a estranha sensação de estar perante um irreal portal cósmico que uma vez transposto nos levaria para uma outra dimensão espacial e mesmo temporal. Suspeitava, mas estava longe de imaginar que de facto estávamos perante um inesquecível e único dia de escalada. Somente de duas coisas tínhamos a certeza: a primeira era que após a passagem de este túnel que dá acesso directo à face Sul, estaríamos expostos a um grande isolamento e compromisso sob mais de 100 metros de desconhecido e descomposto terreno vertical, de difícil retirada onde nada poderia correr mal, a segunda, esta mais reconfortante (ou não!) era de que dispúnhamos de bastante tempo para esta nova abertura, mais precisamente de cerca de 12 horas. Nem mais nem menos, pois como é sabido que a Ursa apenas tem acesso terrestre (sem direito a banho) na fase de maré baixa. Como tal, apenas por volta das 8 horas da noite voltaríamos a ter acesso seco para regressar. Em todo este período, estaremos embarcados num extenso mar de rocha em pleno azul Atlântico.
Cerca de um mês depois, com um entusiasmo fervilhante, em Novembro de 2004, nascia a via O Último Assédio. Mas esta não saiu à primeira tentativa!
Certo dia, juntamente com o Paulo Roxo e o Miguel Grillo, decidimos não ter em conta um aspecto importante, a meteorologia. Arriscamos entrar na Ursa num dia de inverno em que as previsões apontavam para a ocorrência de aguaceiros. A ideia era abrir uma via, mas aquele Sábado não estava destinado a correr bem. Entramos na Ursa e escalamos o primeiro largo a acedendo assim ao Portal cósmico. Lembro-me de estar naquele curioso buraco com o Miguel Grillo, e o Paulo já com cerca de 10 m escalados do segundo largo, quando de repente o céu negro confirmou os meus receios: chuva! O Paulo gritava palavras irrepetíveis a plenos pulmões, agarrado ao calcário escorregadio. Eu e o Miguel perguntávamos se conseguiríamos sair do rochedo antes da maré voltar a subir! Apesar dos esforços, o resultado foram longas horas à chuva e ao frio, esperando a próxima maré baixa para conseguir escapar às mandíbulas da Ursa. Logo no dia seguinte, chegamos mais uma vez ao amontoado de blocos do topo da Ursa acrescentando um pouco mais à história do penedo.
Algures em Março de 2007, num outro assédio à Ursa com o Paulo Roxo e o Miguel Grillo, repetimos a via Directa Integral da Face Leste, uma clássica aberta em Junho de 1980 pelo Paulo Alves, Vasco Pedroso e Fanã. Esta bonita via deu ao Paulo Roxo alguns momentos de reflexão:
A maré sobe. Tenho de ser rápido para que todos tenhamos tempo de entrar na via. Mas, como ser rápido neste terreno e com esta exposição?
Consegui colocar dois friends e um entalador. O primeiro friend e o entalador encontram-se juntos e constituem protecções razoáveis. O segundo friend, uns bons três metros mais acima não serve sequer como consolo psicológico. Agora tenho alguns metros de escalada comprometida e rocha duvidosa, sem possibilidades de proteger. Olho para baixo e apercebo-me da forte possibilidade de uma queda no caótico chão de blocos. A maré sobe. Hesito. Tenho de fazer algo.
Minutos antes e alguns metros mais abaixo protegera num piton completamente corroído. Este pequeno artefacto representa uma prova moribunda da primeira ascensão desta via… ,
Agora, à medida que escalava o primeiro largo não parava de pensar na audácia do Paulo Alves, quando se meteu, à vista, nesta mesma linha vertical, há mais de 25 anos, munido apenas com alguns pitons e quatro entaladores bicoins (!)
Nós, estamos munidos com bons pés de gato, vários friends de última geração e cordas de resistência mais que comprovada. Ou seja, material recheado de homologações Europeias.
Mesmo assim, não sei bem o que fazer nesta passagem perigosa.
… No croqui descritivo o Paulo Alves refere a existência de pedra solta e rocha em pó nalguns locais. Escreve também: escalada bastante vertical, exposta e interessante.
A sua apreciação geral retrata em três simples palavras todas as vivências, emoções e características desta ascensão.
Vivências e emoções garantidas a futuros repetidores
Outra situação caricata foi no dia em que o Paulo Roxo e eu abrimos a via Adeus Ó Hilti, algures no mês de Abril de 2007.
Chegámos de novo ao carro já entrada a noite. No porta-bagagens voltámos a separar as peças encharcados pelo mergulho involuntário.
Horas antes, enquanto a Daniela se encontrava no topo do lance, num dos extremos da corda montada em slide, eu retirava freneticamente todo o material do interior da mochila, recentemente submersa no mar revolto do Cabo da Roca.
Já me encontrava na base da agulha de pedra, fora do alcance das ondas da maré cheia que transformara a Ursa numa ilha.
A Daniela descera-me pela corda previamente fixa na diagonal, realizando uma manobra de slide controlado. O plano consistia em fazer descer, pela mesma corda, a mochila e o restante material.
Uma cinta torcida e um mosquetão (sem segurança) aberto, enviaram ao vazio a mochila, com a câmara digital, a chave do carro e a máquina de furar Hilti baterias incluídas! Atónitos, observámos como todo o material entrava de chofre e, num simples segundo, nas águas frias do Atlântico. FO ! CAR ! gritei a plenos pulmões. Ainda calçado com os pés de gato, corri por entre os blocos e enfiei-me dentro de água para aceder a uma grande pedra e, desde aí, tentar resgatar o equipamento. A mochila lá estava, a boiar ao sabor das ondas. Conseguia avistar a Hilti a brilhar no fundo. A mochila ia e vinha, trocista, num jogo do apanha-me se puderes. Por sorte, a onda seguinte empurrou-a na minha direcção. Num ápice, icei também a máquina e afastei-me para terreno seco. Lindo pensei. Adeus ó Hilti! pensei a seguir.
A proa saliente e extra-prumada referida é que hoje já não se avista! Encontra-se agora desfeita em mil pedaços, descansando no chão junto à base da Ursa.
 , Apesar da derrocada, a Ursa continua no seu lugar, com aspecto um pouco diferente, para quem a quiser contemplar.
Das escaladas ficarão as boas memórias, os momentos bem passados na companhia dos amigos, esses, que estão sempre presentes. Daniela Teixeira, 11 de Maio de 2011