Certa vez a piazada dos NNM (Nas Nuvens Montanhismo) me confidenciaram o desejo de escalar a Agulha do Diabo (2050m) no Rio de Janeiro. Grande coisa! Qual montanhista não quer? Só que estes endiabrados nunca ficam apenas no desejo e não tardou para me convidarem para a empreitada. Opa! Será que é desta vez?
Comecei a me interessar pela Agulha do Diabo depois de escalar o Dedo de Deus pela variante Maria Cebola ainda nos idos do século passado, mas fui postergando. A tal malemolência, onde a feiúra da palavra faz jus ao significado. A primeira surpresa foi constatar que minha cadeirinha encolheu durante seu tempo de aposentadoria, mas desta vez não deixaria um pequeno detalhe servir de desculpa, afinal os anos passados pesam em progressão geométrica e talvez esta fosse minha última chance.
A Agulha do Diabo é uma das poucas montanhas que preservam sua linha original ainda no domínio da aventura com aproximação exaustiva, poucos grampos e cordadas adrenantes. Sua conquista remonta o ano de 1941 por integrantes do Clube de Excursionistas Carioca (CEB) que labutaram por 3 anos antes de por os pés no cume. Sem dúvida, com as dificuldades da época, foi um feito notável, mas hoje não se pode considerá-la difícil se bem que de graça também não é, principalmente para um sujeito massudo e muito longe dos seus melhores dias como eu mesmo.
Junto com o Natan e o Juliano, partimos de Curitiba ainda pela manhã de sábado, 09/08/2015, para somente ao anoitecer bater na porta de um hostel em Teresópolis e iniciar a escalada. Da rua ao dormitório precisamos vencer uns trocentos degraus com toda a tralha nas costas. Terminado o registro espalhamos o equipo pela sala e montamos as mochilas, aliás, o detalhista do Juliano remontou a dele 3 vezes até concluir que estava perfeita e só então se esticar na cama. Começou a roncar antes mesmo de encostar a cabeça no travesseiro e silenciou apenas ao despertar na manhã seguinte.
– Bom diaaa, Doutorrr Fióóóri.
E a senhorinha nos serviu um café da manhã com geléia de beterrabas.
Os moleques, que sabem tudo, encomendaram quatro sandubas gordurentos para a caminhada do dia. Pão, queijo derretido e 3 lingüiças tostadas na chapa por unidade. Cortei minha ração pela metade assustado com o teor calorífico daquela verdadeira bomba. Parece que a maldição dos NNM nos seguia até Teresópolis que amanheceu coberta de neblina e asfalto molhado na descida da serra, mas felizmente não piorou no decorrer da tarde.
Já no PARNASO a zoeira foi total quando a recepcionista me dispensou do pagamento informando que menores de 6 e maiores de 60 anos tem entrada livre. O mundo está perdido mesmo, esta juventude não preserva mais o mínimo respeito para com os idosos. O pior é que, enganada pelas aparências, nem ao menos pediu meus documentos. Matusalém é teu… Deixa pra lá, economizei 14 pilas!
E dá-lhe pau pela encardida Trilha da Pedra do Sino. Zig-zags infinitos para ganhar meio metro no altímetro. A muito livre dos turistas, estacionamos no que sobrou do Abrigo 3 já com o estômago grudado nas costas. E como desceu redonda aquela bomba adquirida na padaria. Aproveitei o tempo sentado para fazer um curativo na palma da mão direita e protegê-la com uma luva. Apenas uma gaze dobrada e fixada com esparadrapo. O fato é que por muito pouco não fico de fora desta pernada. Em meados do ano passado me surgiu uma pequena elevação na palma da mão que foi crescendo aos poucos até que em junho do corrente já se assemelhava a um amendoim por debaixo da pele. Durante a última Travessia Alpha-Ômega recebeu inúmeras pancadas e inflamou, dobrando de tamanho e a cirurgia se tornou inevitável. Pensei que era coisa pouca, mas me apagaram por 2 horas e substituíram a protuberância por um buraco de igual tamanho acompanhado por meia dúzia de pontos fixando um corte em meia lua distante 2 centímetros do panelão. Quatro dias antes de viajar eu mesmo retirei os pontos e menti pra todo mundo que tudo estava bem.
O sanduba forneceu o gás que faltava e num piscar de olhos estávamos na cota 2000 de frente para a entrada de uma trilha derivando da principal, descendo o barranco pouco antes de uma grande pedra. Nossas precisas referências informavam que devíamos percorrê-la até encontrar uma “pedra de bom tamanho” para então seguir a direita numa bifurcação. Atente para a precisão da informação, e ali se inicia o Caminho das Orquídeas que dá acesso ao Acampamento Paquequer exatamente ao lado do riacho homônimo.
O “acampamento” é apenas uma larga clareira debaixo das árvores, quase dentro do rio aonde chegamos perto das 16 horas com tempo suficiente apenas para esticar as redes antes do anoitecer prematuro naquele grotão. Esquentamos o rango a luz das headlamp e quando procurei o mapa da via só encontrei o espelho da passagem aérea de retorno. Ficou sobre o beliche no hostel e na manhã seguinte teríamos que nos virar com a cópia daquele relato ancorado em descrições tão precisas como a “pedra de bom tamanho” de posse do Juliano que naquela altura do campeonato já espantava as onças roncando ferozmente na sua rede de selva.
Que friaca! A umidade subindo do rio transpassava os sacos de dormir e nos congelava até os ossos. Acordávamos trêmulos a intervalos regulares para cuspir, regar as moitas e praguejar contra o frio, mas descansar era fundamental e a coisa aliviou para o meu lado só quando tive a idéia de enfiar as pernas dentro do anorake. Oh noite de cão!
O dia despertou radiante e nosso astral se elevou durante o fugaz café da manhã. Separamos o equipo e vazamos em direção às montanhas que a neblina nos impediu de ver no dia anterior. Da Agulha nem sinal, mas o diabo me esperava de tocaia na saída do mato. Momentaneamente distraído com a aparição do Verruga do Frade a nossa esquerda pisei em falso e CREEK! Senti a fisgada, forte torção no tornozelo direito. Choôô urucubaca, o negócio é comigo, mas se deixo o tornozelo esfriar não consigo mais andar, então vamos para cima sem reclamar até que o Mirante do Inferno nos brinda com uma vista emocionante. Do meio da encosta se levanta a torre delgada e desafiadora, incomparável. Aos nossos pés o Caldeirão do Inferno descendo até o fundo da grota e subindo até os alicerces da Agulha. Muito chão antes de começar a escalar e a adrenalina fluiu pelos vasos sanguíneos.
Descendo por dentro da canaleta estávamos novamente em casa, no tipo de trilha que estamos acostumados; íngreme, escura, instável, úmida e praticamente sem nenhum vestígio humano. No fundo da barroca vários filetes d’água correm sob os detritos de um grande deslizamento recente e iniciamos a subida pela canaleta oposta, mais estreita, mais íngreme e muito mais inóspita. Já um trepa pedra forrado de musgo por onde escorre a umidade até adentrarmos na pequena Gruta da Geladeira e sair por um buraco no teto. Pouco adiante encontramos um platôzinho de terra seca e as primeiras ancoragens num misto de diedro e fenda.
Nunca entendi esta tara que todo conquistador tem em iniciar uma via com um lance meio cabuloso que parece fácil, mas sempre te faz dançar. E o Juliano começa a escalada alternando trepa pedra, trepa mato, grutas, travessias e escalaminhadas desprotegidas com lances longos, laçando troncos e grampos muito espaçados até uma chaminé bloqueada por pedras roladas que dificultam a progressão. E vem o sofrimento.
O Natan guia a cordada subindo pela chaminé e desaparece espremido por um pequeno orifício luminoso entre as pedras. É minha vez, imito a manobra girando o corpo para apoiar as costas na pedra, estico o braço direito para segurar a agarra e forço a cabeça para dentro do buraco, mas entalei. Com dois sacudões consigo retornar.
– Vai você – sinalizo para o Juliano – morri na praia.
E o Juliano repete a manobra também entalando. Subo para puxá-lo pelas pernas e a criança despenca. 104 quilos de puro “músculo” crescem rapidamente pra cima de mim que tenho mais uns 2 metros para cair antes de ser esmagado. Nunca gritei um QUEDA!!! tão urgente e apavorado. Recomeça o calvário e com inusitado contorcionismo o Juliano passa. E lá vou eu novamente, mas desta vez enfio os dois braços para frente e entalo de ombro. Fico imobilizado sem chance de retorno e o Juliano aparece para me salvar com um puxão, mas entalo novamente por excesso de circunferência abdominal. Com as pernas balançando no vazio de um lado e os braços de outro me senti uma tartaruga capotada. Alguém trouxe um pote de vaselina? A fera é forte e deixei metade do couro da barriga grudado nas pedras depois do segundo puxão.
A chaminé seguinte tem uma saída bem esquisita e fincamos o pé no Platô da Unha. Enfim uma boa alongada enquanto o Juliano, ancorado numa árvore, dá segue para o Natan passar pela fenda do Cavalinho. Uma neblina densa nos envolve e o vento forte começa a congelar. Três numa cordada é sempre aquela lesma lerda. Levou uma eternidade para o Natan chegar à Unha e liberar a via.
Duzentos metros de queda livre e só consegui entalar o pé e metade do joelho. Pelas fotos na internet parecia nivelado, largo e profundo, mas pessoalmente era inclinado para cima, estreito e afiado. Corpão inteiro no vazio e só parei para olhar pra baixo na entrada da Chaminé da Unha.
– Tem que entrar nesta fresta? – achei impossível.
– Vem andando até o fim para começar a subir – gritou o Natan.
Então tá, e fui fondo. Um passinho para dentro e entalei de tal forma que não conseguia nem respirar. Desinflei o peito e pulei para fora escalando dois metros pela borda antes de iniciar uma diagonal dentro da estreita chaminé na direção da primeira costura em algum lugar depois da curva. Um pêndulo me deixaria mais esfolado que um tomate pelado.
– Gire os pés para fora e suba como uma mulher de pernas arregaçadas – o Natan repetia insistente.
Este cara só pode estar de sacanagem, pensei comigo mesmo.
– Trave nos joelhos para descansar.
Agora tinha certeza, era sacanagem da grossa. E cheguei na Unha me agarrando à aresta pelo lado esquerdo mesmo com o Natan ralhando para seguir em linha reta com a costura. O frio e o vento estavam quase insuportáveis e nós só de camiseta sentados naquele poleiro enquanto o Juliano se esfolava todo lá embaixo. Primeiro no Cavalinho e depois na chaminé.
– Natan, esta m_rda vibrou!
– Cê tá lôko, Juliano gire os pés para fora e suba como uma mulher de pernas arregaçadas.
– Para de sacanagem com o cara.
– Não é sacaaa…naaa, verdade, esta p_rra tá tremendo!
Olhar para aquele cabo de aço enferrujado causaria pânico até num louco de pedra. Começava em pé, se tornava vertical e fazia uma barriga pra dentro antes de sumir na curva da pedra acompanhando o fio da aresta.
– Vou nessa!
– Não – interferiu o Natan – deixa que o Juliano guia costurando.
Muy amigo, só pensei! Vesti o anorake para parar de bater os queixos, os dentes e os joelhos e segui na cola do Juliano. Naqueles dois ou três metros verticais de verdade é que lembrei do curativo na mão quando o esparadrapo se soltou e a gase escorregou por debaixo da luva. Só não me borrei por falta de mercadoria no estoque.
Enfim os três no cume. Cansados, esfomeados e mortos de frio, mas felizes como pinto no lixo. A ventania queria nos varrer lá de cima, mas teimamos em fumar um charutinho, tirar uma bateria de fotos e soltar uma ou duas cusparadas. Tempo de escrever nossos nomes e data no caderninho com as mãos trêmulas de tanto frio. Nem uma árvore plantamos lá em cima!
Rapel de 50 metros passando direto por cima da Unha, desceu primeiro o Natan e o segui na cola até o Platô da Unha. Só então se pensou na possibilidade da corda enroscar e, aos berros, o Natan solicitou que o Juliano dividisse em duas a sua descida. Oh boca santa! Conforme previsto a corda enroscou e lá retornou o Juliano a escalar com segurança de baixo para soltar a corda. 104 quilos acima três metros da única costura numa ponta da corda dinâmica distante 25 metros da extremidade oposta com apenas 80 quilos de contrapeso. Melhor nem pensar em cair.
Os dois últimos rapéis foram realizados a noite, a luz das lanternas e da mesma maneira cruzamos todo o Caldeirão do Inferno até o Acampamento Paquequer onde rapidamente cozinhamos um medanôjo, ensacamos as violas debaixo de um frio glacial e caímos fora, subindo para a cota 2000 na Trilha do Sino. Começa o martírio.
Quilômetros percorrendo zig-zags infinitos, horas monótonas e as luzes da cidade sempre preservando a mesma distância. A planta dos pés cozinhavam dentro das botas, o tornozelo torcido mais parecia uma batata de tão inchado, joelhos estourados, quadris doendo e as costas em frangalhos não me deixavam esquecer o quanto faltava descer para encontrar a cama.
– Qual a altitude?
– 1660…
Infinitas horas mais tarde…Trocentos zig-zags abaixo…
– Qual a altitude?
– 1650…
Quando fico injuriado é melhor esquecer que existo. Desapareço da vista para não precisar conversar com ninguém. Este caminho do inferno me tira do sério. Desnível de 900 metros contados de 10 em 10. As duas da madrugada chegamos ao carro e as três no hostel para pagar promessa subindo as escadarias. Dia seguinte já no Rio almoçamos na Urca e depois direto para o Santos Dumont onde me despedi do Natan e do Juliano que retornaram a Teresópolis em busca de outros desafios, mais montanhas.
Tenho meia hora e tem placas de proibido fumar até debaixo das marquises com cinco metros de altura. Vou para o meio da rua e então procuro um cinzeiro ou uma lixeira. Nada até onde a vista alcança e só restou adubar o canteiro. De trás do poste ou de dentro do bueiro se materializa um guardinha.
– Ehh parrceiro! Não é do Rrrio, é? Vi jogarr a guimba no canteiiro. Infração gravíssima e vou prrrecisaaar notificá-lo.
E das sombras surge o fiscal do fiscal, estou cercado a quinze minutos da última chamada, melhor não discutir pixuleco ou terei que comprar a corporação inteira. Por aqui, para se livrar das forças da ordem só fazendo “arrastão” ou esfaqueando ciclista.
Mas tudo bem, retribuo a gentileza em Curitiba quando seu prefeito desembarcar por lá atendendo ao convite do Juiz Sergio Moro.
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