Por Jorge Soto
Como fã assumido deste montanhista veterano, considerei mais que justo dar-lhe o devido reconhecimento perante novas gerações devido ao seu inestimável legado. Segue abaixo a entrevista com este senhor que, de forma clara, simples e didática, a mais de 20 anos descreve trilhas de montanha cujo acesso e subida são fáceis, não demandando nenhuma exigência técnica. Ou como o próprio Alberto diz: “Achei que isto poderia servir de incentivo aos montanhistas iniciantes e, quem sabe, de distração aos veteranos. Na medida do possível, todas as trilhas que descrevo são acessíveis ao excursionista mediano, não requerem equipamento e podem ser feitas num só dia, desde que você não seja preguiçoso.”
1) Alberto, conte mais sobre sua vida.
Sou (ou melhor, fui) engenheiro e administrador, trabalhei no mercado financeiro, fui sócio de uma consultoria e me aposentei há três anos. Se soubesse que não trabalhar era tão bom, jamais teria começado. Casei-me (por enquanto) por três vezes e tenho três filhos – todos da primeira união, depois não repeti o erro. Quando vejo a energia que meus filhos precisam dedicar para criar seus filhos, fico pasmo da energia que tinha naquela época. Acho que tenho duas fortes conexões: com cultura e com natureza. E, cada vez menos, com a humanidade. Fiz 70 este ano e acho que alcancei uma relativa felicidade.
2) Foi através do “Mountain Voices” que tive acesso a seus ótimos textos, como ingressou no informativo do Frechou?
Conheci o Eliseu numa caminhada pela Serra dos Pilões, que saiu de Campos do Jordão e que tinha uma moça com um pé maior que o outro – a cada vez, precisava comprar dois pares de sapato para dar certo. Depois, visitei-o algumas vezes em São Bento do Sapucaí, quando morava com seu amigo Saulo. Fiz uma caminhada com cada qual: com Saulo fui a Luminárias, uma cidade onde um ancião me contou que Minas a tinha roubado de São Paulo. Com Eliseu, bivacamos no Alto do Campestre – na volta, as unhas do pé doíam tanto que tive de descer a trilha de costas. Eliseu e minha mulher seguiram em frente, pois eu caminhava muito devagar. Já estávamos num vale habitado quando vi a mochila cargueira dela encostada numa casa – levei a dela na frente e, é claro, a minha atrás. Um sufoco, o sol já ia alto quando passou um carro. Claro que vai parar, pensei, mas ele passou lotado. Mais tarde, deu carona para os dois, que iam bem na frente. Imagine que encontrei um doido carregando duas mochilas para se exercitar, comentou. Achei que uma caminhada só com o Eliseu já estava de bom tamanho…
3) O que foi que te levou a fazer caminhadas, conte um pouco de sua trajetória?
Acho que o momento crucial deveu-se a um padre italiano, chamava-se Roberto. Eu fora visitar o Paiol Grande, um acampamento de férias frequentado por meus filhos. Lá existe uma vista espetacular da Pedra do Baú. Comentei com ele que gostaria de subi-la, mas ele disse que deveria ter uma corda e me aconselhou a fazer a Ana Chata, que fica ao lado. Explicou-me o caminho, falou de uma clareira onde importunei um casal que estava transando na manhã fria. A história toda fica muito longa para ser contada, mas só vou referir duas consequências. A primeira: durante muito tempo, todo ano eu voltava emocionado a Ana Chata, como uma homenagem a minha primeira pedra. A segunda: foi esta história que me sugeriu começar a série de artigos Belas Pedras, onde comento sobre subidas fáceis de montanhas.
Não retornei lá por um tempo e um dia voltei com uma namorada – e, por acaso, encontrei o Eliseu, que levava uma galera para o Baú. Ao refazer a trilha da pedra, encontrei grampos, degraus e ferros horrendamente pintados de amarelo, num desrespeito a uma trilha que qualquer pessoa mediana conquistaria com esforço mas sem dificuldade. Que tristeza, nunca mais visitei a Ana Chata. Outro dia conto mais histórias.
4) Onde você acha melhor caminhar, no Brasil ou no exterior. Quais são as diferenças ou dificuldades que um trekkeiro encontra aqui e no fora para praticar suas atividades?
Não tenho grande experiência fora do Brasil, embora tenha visitado os locais mais óbvios – Argentina, Peru, Estados Unidos, Chile, Equador, Nepal. Ao visitar um país estrangeiro, provavelmente você fará alguma trilha clássica, portanto com grande beleza e muita estrutura. Já no Brasil, você estará exposto a trilhas menos sinalizadas e pouco conservadas. Ou seja, uma comparação desigual. Mas vejo algumas vantagens em caminhar fora: contato com outras culturas, encontro com naturezas diferentes, presença de melhores estruturas.
5) Qual a viagem mais interessante que já fez? E a que desaconselha? Qual o melhor parque nacional?
O melhor Parque Nacional que conheci foi Torres del Paine no Chile, uma estupenda travessia de dez dias pelos seus magníficos 350 mil ha de gelo, rocha, campo e água. Quando comecei a caminhada, encontrei uma guria americana deliciando-se com patê francês nas escadas do Centro Administrativo. Minha comida era contada, apenas o necessário para evitar peso excessivo – nada de finas iguarias. Passei dias pensando revoltado naquele patê, quando voltei a encontrar a moça, perto do Rio Gray. Estava exaurida, sua comida tinha acabado, passava fome e sede. Claro que foi um prazer alimentá-la – embora ela não mais tivesse nenhum patê para me recompensar.
Mas não há nada igual ao Nepal – seu povo maravilhoso, sua natureza cênica, suas montanhas emocionantes – Pumori, Ama Dablan, Nuptze e Llotse, Everest, Daulaguiri, Anapurna. E seu rio único, o Dud Koshe, que escavou aquele vale mágico e do qual me separei com uma dor que até hoje me causa lágrimas.
Bom, se o leitor ainda se recorda, ando desistindo da humanidade- e fugindo de aglomerações. Assim, evito muvuca, em especial no Brasil – praias no verão, parques conhecidos nos feriados, grupos escolares onde seja.
Com mais tempo, posso retornar a algumas histórias interessantes.
6) Você acha que o Brasil tem uma cultura avançada de montanhismo e trekking? Ou ainda estamos engatinhando?
Como me disse um fazendeiro no Pantanal: o brasileiro não gosta de natureza. Não a valorizamos, não a conservamos, não a protegemos. Nossos Parques são ridículos, seus administradores parecem detestar os visitantes e moradores e desprezar a flora e a fauna. Não vou comentar mais sobre esse assunto, apenas dizer que o único Parque Nacional nosso de nível é o da Serra da Capivara no Piauí e que o melhor Parque Estadual que conheço é o de Ibitipoca em Minas.
7) Justamente pelo fato dos teus textos incentivarem o montanhismo independente, o que acha da atual regulamentação dos parques nacionais? Me refiro á obrigatoriedade de guia, em alguns casos?
Sou totalmente a favor e vou contar uma história. Quando estive anos atrás na Chapada dos Veadeiros, o uso de guias era obrigatório. Quando voltei lá ano passado, já não era. E era visível como os montes de quartzo na entrada do Parque (onde existira garimpo no passado) estavam menores – o mineral estava sendo facilmente levado pelos visitantes. Já encontrei um grupo de bêbados perto das profundas escarpas da Cachoeira de São Francisco em Guarapuava no Paraná, prontos para cometer um involuntário suicídio. Assim como já soube de mortes nos cânions do Sul, de visitantes clandestinos. Lembro-me dos abrigos destruídos no Pico da Bandeira e na Serra dos Órgãos. Mas vou parar por aqui, apenas acrescentando que sou a favor da cobrança de ingressos.
8) Você já teve problemas com autoridades ambientais por caminhar em locais onde não é permitido nos parques? Ou algum apuro ou perrengue digno de nota?
Nunca tive de me deparar com autoridades ambientais. Claro que meu acesso já foi algumas vezes proibido – assim como já penetrei em áreas reservadas. Mas o caso mais interessante talvez tenha sido quando um guarda florestal e eu fomos ameaçados com revólver na madrugada em que iniciávamos a subida dentro da mata para o Gigante, na Serra do Alambari, no Rio. Essa montanha eu nunca mais tentei.
Já me perdi sozinho por horas nas encostas do Pico Selado, em Monte Verde, Minas. Já fui ameaçado por camponeses enfurecidos no altiplano boliviano, quando tentava retornar da trilha de Apolobamba – tivemos de atravessar pelo Peru. Uma vez, consegui escapar da Ilha de Superagüi, onde existe um Parque Nacional, numa janela de (relativa) bonança dentro de uma tempestade. E outra vez, numa borrasca no Aconcágua, só alcancei o campo base porque ainda pude escutar a voz de um norte-americano á minha frente. Lembro-me ainda dos horríveis dias passados na Floresta Amazônica á busca da Cordilheira do Currupira, da qual só chegamos no pico menor. Mas devo dizer que não sou corajoso e, portanto, não me expus com frequência.
9) Fazendo um diagnóstico do trekking e montanhismo no Brasil de hoje, qual é o prognóstico que você vê para um futuro breve?
Em alguns Estados – como Minas e São Paulo – percebo um esforço, por exemplo nos Parques Estaduais da Serra do Mar (SP) e da Serra do Brigadeiro (MG). Mas em geral acho que os avanços, quando existem, são tímidos. Acho que devíamos realmente nos indignar quando mais uma espécie desaparece, mais uma encosta é incendiada, mais uma trilha é abandonada ou proibida, mais uma floresta é devastada.
10) Existem pessoas, associações montanhistas ou centros excursionistas cujo trabalho acompanhe ou faça parte?
Não faço hoje parte de nenhuma organização, embora tivesse sido membro do CAP – Clube Alpino Paulista. Acompanho digamos a distância pela mídia o trabalho destas associações. Acho que devíamos ter uma associação nacional forte.
11) Quais são seus projetos futuros de montanha?
As montanhas não acabam nunca: o Pico do Gamarra, o Pico do Soares, a Pedra Azul, a região de Pancas, quem sabe o Carrascal, talvez os Alpes e de novo os Andes. Alguns Parques no sul de São Paulo, novas viagens ao Centro Oeste, o distante Alter do Chão, as últimas trilhas em Ubatuba. Quem sabe, encaro um longo trek na Ásia, tipo Butão, ou nos Andes, tipo HuayHuash.
12) Qual é o recado que você dá para as pessoas que estão começando?
Tenham humildade perante a natureza, agradeçam o dom de caminhar – e não parem jamais!