Por Aldem Bourscheit
…que excepcional magnificência oferecem os montes da Terra do Fogo, os quais surgem de surpresa das águas do mar e se elevam de um só golpe ante os olhos do viajante em toda a sua imponente altura. (padre Alberto de Agostini, em Treinta años em Tierra del Fuego, 1956, página 34)
Visualizar Ilha Navarino em um mapa maior
Na sua porção mais austral, a América do Sul parece um cone invertido e vê suas terras se partirem em milhares de pedaços, formando intrincados canais e enseadas, antes de mergulhar nas águas geladas que separam o continente da Antártica. Nessa região inóspita, de frio intenso e mares bravios, cinco ilhas chilenas se destacam pelo tamanho – Steward, Londonberry, Gordon, Hoste e Navarino.
Essa última tem 1.600 quilômetros quadrados, um pouquinho maior que o município de São Paulo, e abriga o circuito de trekking mais ao sul do planeta. Foi lá onde percorremos cinquenta quilômetros de trilhas encharcadas nos últimos dias de fevereiro, quando o Brasil curava a ressaca de mais um Carnaval, para mostrar que montanhismo não vive só de grandes altitudes.
Início de jornada
Colocar os pés em Puerto Williams, capital de Navarino, não é simples. Tomando um avião no Brasil é possível voar até a argentina Ushuaia (diz-se Ussuaia) ou à chilena Punta Arenas. Dessa última cidade há vôos regulares para a ilha. Também se pode enfrentar 36 horas a bordo de um navio. Se o caminho for pela cidade argentina, rota mais usual, é possível cruzar o canal Beagle em pouco mais de trinta minutos, em catamarãs e lanchas. Os primeiros deixam os passageiros diretamente em Williams, as segundas em Puerto Navarino, posto avançado do exército chileno de onde se percorrem 54 quilômetros de estrada. O percurso recompensa com um primeiro contato com os contornos da ilha.
Enquanto Ushuaia exibe em ruas, praças, museus e outros espaços públicos as alcunhas de fim do mundo e cidade mais austral do planeta, a pequena cidade chilena repousa tranquila do outro lado do histórico canal, quilômetros ao sul. O Beagle foi descoberto em 1830 pelo comandante Fitz Roy, cujas explorações globais foram acompanhadas por um certo Charles Darwin, então um jovem naturalista e geólogo inglês. A passagem hoje francamente usada por embarcações de inúmeros países se extende por mais de 300 quilômetros, desde a península de Brecknock até o cabo San Pío, na Terra do Fogo. Na porção leste de Navarino (veja quadro No pé do continente) ainda há a vila de pescadores de Puerto Toro. Essa sim, a última população humana antes da Antártica.
1º dia / Puerto Williams Laguna del Salto
Com equipamentos revisados e mochilões preparados, pé na estrada desde Puerto Williams rumo a cascata que marca o ponto de coleta de água para a cidade. Nuvens carregadas começam a sobrepujar o sol da manhã. Alcançamos o local em pouco tempo e adentramos uma rampa de terra negra e lamacenta. O trajeto em zigue-zague corta bosques de lengas, coigües e canelos, árvores típicas da Patagônia. A carga pesada e a ladeira íngreme aquecem o corpo, enquanto a temperatura ambiente beira os 10ºC. Mantemos o passo firme até o topo do cerro Bandeira, a 550 metros de altitude. Bastaram poucos passos fora da mata para a marca do termômetro despencar a menos de 5ºC: temperatura quase constante durante os dias de jornada.
Ventania e porções cobertas de neve foram marcantes a partir desse ponto. O caminho leva por horas sobre o topo elevado e pedregoso, onde se deve ter o cuidado de seguir a marcação vermelha e de não perder altitude enquanto se mantém um rumo sul-sudoeste. Adiante, sueguimos em equilíbrio pela borda escarpada acima da linha de árvores, enquanto apreciàvamos à direita as lagunas Robalo e Palachinque. Logo após topar com um anfiteatro de rocha, descemos para as margens da Laguna del Salto.
A tarde avançava com tempo bom nesse primeiro ponto de acampamento quando avistamos na ladeira outros dois aventureiros. O casal de chilenos havia feito em sete horas um percurso programado para cerca de quatro horas, topando com nosso grupo já no fim da tarde. E pior: com mochilas de ataque, sem comida, lanternas ou roupa para noites de frio extremo. Ainda insistiram no caminho de volta à cidade pelo vale, no meio da mata. Poucos minutos ameçados pela luz minguante foram suficientes para demovê-los. O jeito foi unir forças com outros brasileiros: emprestamos comida e roupas ao desavisado casal, que sem dúvida passou uma noite inesquecível encolhido dentro da barraca de outro chileno.
2º dia / Laguna del Salto Laguna Escondida
Tempo fechado, cinzento, nos abraça no início do segundo dia de caminhada. Contornamos a Laguna del Salto pela esquerda para encarar uma súbida com quase noventa graus de lama e água. Dureza para as primeiras horas da manhã. Seguimos por um pequeno vale cortado por um riacho, mantendo direção sul. Por aquela rota cruzamos o Paso Primero, a quase 700 metros, e avançamos por um enorme campo de neve até o Paso Austrália, há mais de 800 metros de altitude. Procuramos observar pegadas antigas e manter um trajeto próximo às pedras. Tudo para evitar buracos na neve ou queda em águas enregelantes.
Quando a névoa se dissipava, aproveitávamos o andar lento desse trecho para apreciar os Dientes de Navarino, série de montanhas pontiagudas que batizou o circuito. Vencido o aclive, veio a baixada pela rampa de neve que margeia a Laguna del Paso. Um deslize renderia um perigoso e inigualável banho.
A trilha segue sobre rochas de tamanhos variados enquanto cruza a borda norte da Laguna los Dientes. Pouco antes, cuidado com a tendência natural de manter o rumo sul, descendo pelo vale em direção ao lago Windhond. Mas o trajeto correto se mantém pelo colo direito da montanha, agora no sentido oeste. Mantendo essa marcação, em pouco tempo chegamos à Laguna Escondida. Nas suas margens os pontos de acampamento são escassos. Há uma pequena península onde se acomodam apenas duas barracas. Um pouco mais atrás e acima, espaço para outra. Também é possível avançar por cerca de quinze minutos pela trilha, encontrado outros campsites.
Talvez não acreditando nos alertas sobre o poder dos ventos na região da Laguna Escondida, erguemos acampamento por ali mesmo. Bastou prender a última pedra ao redor da barraca para a natureza da Terra do Fogo revelar sua força, em treze horas ininterruptas de chuva e ventania. O barulho era tão intenso que acordamos com o silêncio, por volta das 3h30min da madrugada. A manhã seguinte trouxe um pouco de sol. Mas o clima no extremo sul do continente vive de mau humor.
3º dia / Laguna Escondida Laguna Martillo
Bastou desarmar a barraca e preparar as mochilas para a chuva que embalou a noite passada recomeçar. Apesar da força reduzida, deixava os pedregulhos mais escorregadios e dava novo figor aos lamaçais e turfeiras. Marcando o solado das botas em sentido oeste, avistamos ao longo das horas várias represas de castores. Eles põe abaixo árvores de todos os portes para demonstrar seus conhecimentos de engenharia, causando sérios impactos ao frágil ambiente da ilha (veja quadro Invasores ilhados).
Com o Cerro Gabriel à direita, mantemos o curso em direção ao Paso Ventarrón. Fazendo justiça ao nome, ele nos recebeu com saraivadas de chuva e neve, a quase 700 metros de altitude. Baixamos rapidamente pela direita, para novamente ganhar elevação ao vencer o Paso Guerrico, com elevação de pouco mais de quinhentos metros. O caminho nos conduz a uma descida enlameada que chega à Laguna Hermosa. Dali em diante, o terreno se mantém um pouco mais plano até uma rampa que dá acesso à Laguna Martillo. Rodeada de bosques atarracados, oferece vários pontos para acampamento, nenhum exatamente seco.
Com algumas horas de atraso, alcançou aquele ponto uma encharcada dupla de franceses. Explorando os mares da região a bordo de um pequeno veleiro, ouviram sobre a trilha e partiram para a aventura. Trajavam calças jeans, botas baixas e pernoitaram em uma barraca ótima, para temperaturas brasileiras. Gastaram boa quantidade de combustível para secar ao fogareiro o único mapa que portavam.
4º dia / Laguna Martillo Puerto Williams
Aproveitamos uma trégua na chuva na manhã do que seria o último dia de circuito para levantar acampamento. Dia especialmente frio. Iniciamos a caminhada com calças comuns e impermeáveis, polainas para neve e lama, roupas térmicas e anoraques impermeáveis, além de luvas grossas e gorros. A trilha avança por poderosos lamaçais e vales alagados por represas de castores, em sentido norte, até enfrentarmos a subida em meio à mata rumo às lagunas Zeta e Rocallosa. Vencido trecho extremamente íngreme, deixamos o bosque para trás para adentar uma ampla região calçada com rochas trituradas pelas geleiras. O vento e o frio são intensos, mas por sorte vêm do sul, nos empurrando no rumo certo. À nossa frente, já com a caminhada pendendo em sentido leste, uma enorme corniza de neve marca o Paso Virgínia. Não se deve caminhar sobre a formação, ela pode despencar junto com você, para mais de 300 metros de queda. Esse é o ponto mais elevado do circuito, a 860 metros de altitude.
O trajeto correto desde a morena de pedras desce pela direita, em um dos momentos mais nervosos da aventura. O frio atípico para aqueles dias de verão cobriu a trilha com neve e gelo, nos obrigando a quase uma hora de lento escavar , com botas e bastões para evitar uma queda. A tensão era amenizada pela bela imagem do vento sobre o azul da Laguna los Guanacos, a qual circundamos pela esquerda, alcançando novamente o bosque. Os guias tradicionais recomendam um novo acampamento logo após aquela laguna, mas o dia estava claro e , quente. Isso abriu a possibilidade de avançarmos.
O trecho final teria tudo para ser mais tranquilo, não fosse o repentino sumiço da sinalização. O jeito foi usar o rio que desce as montanhas até o canal Beagle como referência. Em nosso mapa, o manancial aproveita a calha do vale até a antiga empresa de pesca McLean. Já com luz rareando, por volta das seis horas da tarde, seguimos aos trancos e barrancos pelo colo da montanha. Perdendo altitude entre os bosques, atolamos as botas em presentes deixados pelas vacas alpinas de Navarino. Também encontramos arbustos de calafates, frutinha arroxeada típica do sul do continente. Pena, não estavam maduros.
Depois de cruzar outra área alagada, equilibrando-se sobre troncos caídos, pisamos finalmente na estrada que leva a Puerto Williams, distante oito quilômetros dali. Bastaram poucos minutos de descanso, regados a suco e sanduíche, para surgir uma caminhonete levando trabalhadores até a cidade. Carona! O circuito Dientes de Navarino é assim, cheio de surpresas, belezas e desafios, que se desdobram apenas para aqueles que ousam driblar os confortos urbanos e viver alguns dias sob o teto da natureza.
No pé do continente
Em linha reta, Navarino está a 650 quilômetros das Falklands/Malvinas, a menos de mil quilômetros da península Antártica e a 4,7 mil quilômetros de Brasília, nosso ponto de partida para a aventura. Abaixo da ilha há apenas o parque nacional Cabo de Hornos (Chile). Depois, é mar.
Antiga sede de fazendas de gado, a ilha ganhou em população a partir dos anos 1970, quando se acirrou a disputa entre Argentina e Chile pela demarcação das fronteiras regionais. Lá vivem cerca de 2,4 mil pessoas, metade militares. Além de registrar os cerca de duzentos montanhistas que completam o circuito a cada ano (menos de dez brasileiros), acompanham a movimentação no canal e ajudam a remover minas terrestres plantadas nas ilhas durante a Guerra das Malvinas.
Não esqueça: atravessando o canal Beagle desde Ushuaia você estará cruzando fronteiras nacionais. Logo, não poderá levar alimentos perecíveis ou combustível. Mas não se preocupe. Em Navarino há mercados, mapas, benzina branca, cartuchos de combustível e toda a infraestrutura típica de uma pequena cidade turística pousadas, banco, hospital, corpo de bombeiros. Equipamentos mais técnicos de montanhismo, nem pensar. , , ,  ,
Invasores ilhados
Parte da reserva da biosfera do Cabo de Hornos desde 2006, a ilha Navarino tem toda a sua vegetação protegida dos machados e motosserras. O abastecimento de lenha e madeira de Puerto Williams depende da coleta de árvores caídas, que existem aos milhares. Mas há quem não respeite a legislação: os castores. Introduzidos há mais de um século na região do Beagle, de início para produção de peles, espalharam-se pelas ilhas cruzando os canais a nado. O governo chileno mantém um funcionário encarregado do controle de pragas em Navarino. Além dos castores, há visons, porcos, ratos e cachorros. Sua caça é permitida e estimulada durante todo o ano. Com tantas espécies invasoras, guanacos e outros animais nativos da ilha foram exterminados. , , ,  ,
Dicas do autor
Dientes de Navarino é um circuito de alta montanha sem os males da altitude, onde as exigências físicas e psicológicas são constantes e o clima muda frequentemente ao longo do dia, mas sempre com temperaturas extremamente baixas. Logo, equipamento apropriado é indispensável para qualquer aventura na região.
Apesar dos guias oficiais apresentarem boas imagens da sinalização no estilo francês, implantada em 2001 pelo australiano Clem Lindenmayer, ela já desapareceu em vários trechos. Montanhistas apelaram para os hitos, ou pircas (montinhos de pedras), mas o governo chileno faria um belo trabalho recompondo a marcação. Depois de uma caminhada extenuante, um dos melhores locais para recuperar as forças é a Tratoria de Mateo, em Puerto Williams. Massas e vinhos imbatíveis.
Atalhos:
Guia oficial do Circuito Dientes de Navarino
Ushuaia Boating
Hostal Los Cormoranes / Ushuaia
Turismo e Hostal Yagan / Puerto Williams
Aerovías DAP