I
Bichos estranhos são os morcegos, mamíferos que voam e voadores que não são pássaros. Seu nome significa em grego ratos cegos, mas não são roedores e nem são cegos. Morcegos me atraem, e por isso escrevo agora sobre eles.

Batman usou a simbologia do morcego para combater o crime em Gotham.
Símbolos sombrios e noturnos de fantasmas, associados às almas perdidas, aos espíritos do engano ou, inversamente, às vidas sagradas, longas e felizes, os morcegos são com frequência aparentados aos horrendos vampiros.
Morcegos são criaturas múltiplas, compondo quase um milhar e meio de diferentes espécies. É impressionante como mais de 1/5 de todos os mamíferos do mundo são morcegos.
Isto significa que são altamente adaptáveis, existindo em todos os continentes exceto a Antártida e sob as mais variadas formas e tamanhos. Em toda a natureza, só os roedores possivelmente apresentem um maior número de espécies.
Claro que têm um nome científico complicado: são chirópteros, nome que deriva das palavras gregas para mão e asa, pois neles a segunda deriva da primeira. São divididos em duas grandes ordens, micro e megachiropteros, conforme o seu tamanho.

A grande variedade dos morcegos.
Os megachiropteros da Ásia e da África não são tão interessantes: muito grandes, chegando a 2 metros, são comedores de frutas e pouco recorrem à ecolocalização. Os microchiropteros da América são pequenos, às vezes medindo apenas 5 cm, e praticam uma dieta variada, incluindo flores, insetos (este sendo de longe o cardápio preferido) e até mesmo sangue.
Sabe-se pouco sobre a origem dos morcegos, já que seus esqueletos pequenos e delicados não fossilizam bem. Sua origem data de 50 milhões de anos atrás e as duas ordens atuais descendem de um voador comum.
Uma das características mais notáveis do morcego são suas asas, formadas por uma fina membrana de pele esticada a partir de seus dedos alongados. Já os dedos posteriores possuem garras, que permitem pendurarem-se dos galhos. Apresentam em geral olhos pequenos, grandes orelhas e dentes afiados. As formas destes variam conforme o alimento, por exemplo néctar, fruto, sangue ou semente.

Esqueleto do morcego, mostrando seus enormes dedos dianteiros, que estruturam a membrana da asa.
No tempo frio, os morcegos enrolam-se em suas próprias asas como num casaco. No calor, eles as expandem para refrescar seus corpos. Possuem normalmente uma só cria, por ser difícil de carregar durante o voo. São animais de voo rápido, o mais veloz deles chegando a 160 km/h.
Os morcegos funcionam em geral com machos dominantes mantendo o controle do seu harém, enquanto morcegos rivais lutam para atrair secretamente as fêmeas – algo que você já encontrou entre os humanos. Um fato notável é sua longevidade em relação ao tamanho, pois chegam a viver 35 anos.
Quase todos os morcegos são ativos ao crepúsculo ou à noite. Os seus sentidos de olfato, paladar e audição são excelentes e, ao contrário do que se pensa, possuem boa visão. A maioria apresenta um sexto sentido, aliado aos cinco que nós e eles possuímos: a ecolocalização, ou seja, a orientação pelos ecos.
O morcego emite ondas ultrassônicas, inaudíveis para os humanos, que atingem obstáculos á frente, onde sofrem reflexão e retornam como ecos. Estes são percebidos pelos morcegos com uma frequência maior do que a original, devido à sua aproximação dos obstáculos.
Com base no tempo de resposta, na direção e na frequência dos ecos, os morcegos entendem com rapidez e precisão as distâncias, formas e velocidades dos objetos.
Alguns dos ancestrais dos morcegos já possuíam um sistema de ecolocalização rudimentar. Os morcegos desenvolveram seu sistema sofisticado como uma novidade evolutiva. Outros conjuntos semelhantes evoluíram de forma independente em golfinhos, baleias e andorinhões.

Morcego que se alimenta de flores, com seu focinho e língua alongados.
Morcegos vampiros (dos quais só existem três espécies, portanto são bem raros) têm ainda um sétimo sentido, a termopercepção. Seus focinhos são capazes de perceber ondas de calor e selecionar os vasos sanguíneos na superfície da pele a ser atacada.
Deste modo, dão mordidas menos doloridas e evitam acordar as presas. Possuem saliva anticoagulante, que retarda a cicatrização da ferida, permitindo que se alimentem por mais tempo. Portanto, vampiros delicados.
Alguns morcegos são capazes de usar o campo magnético da Terra para se orientar durante voos longos. É o mesmo sentido usado por outros animais migratórios, como pombos e tartarugas, tordos e baleias.
Além deste oitavo sentido, possuem dois outros, ligados às percepções química e identitária. Há hoje bastante pesquisa dos morcegos, para desenvolver drogas ou detectar genes vantajosos.
Morcegos são animais úteis. Realizam o controle populacional de espécies capazes de transmitir doenças ou causar prejuízos, como ratos, mosquitos, e pragas. Além disso, graças a eles há a polinização de diversas plantas e a dispersão de variadas sementes, fundamentais para a existência da vegetação.

O morcego popularmente mais temido é o hematófago, que se alimenta de sangue.
Essas redes entre morcegos e plantas são diferentes das redes das aves, operando de forma complementar às delas. São muito eficientes na recomposição de ambientes destruídos. Cerca de 2/3 das árvores tropicais são polinizadas por morcegos – sendo que algumas, somente por eles.
Os morcegos têm sido acusados da transmissão, junto com os exóticos pangolins, de vírus nocivos aos humanos. Entretanto, os culpados são certamente os próprios humanos, que têm infestado as regiões naturais habitadas por eles. Mais do que ameaçar, os morcegos têm atuado para manter a vida.
Queria terminar esse assunto com um comentários pessoal. Há muitos anos frequento cavernas, que são abrigos naturais para os morcegos. Acho impressionante vê-los dormitando de ponta cabeça nas paredes ou revoando assustados acima de mim.
Uma vez, tivemos minha companheira e eu de nos contorcer por uma passagem estreita numa rocha, para atingirmos o interior de uma cavidade maior. Ela nos daria acesso a uma pedra que queríamos escalar. Mas havia morcegos escondidos e seu voo aterrorizou a moça.
Ela retornou na passagem enquanto eu subia a cavidade. Foi um tempo enorme até que a convencesse a deixar o choro e me encontrar em cima. Porquê não desci para resgatá-la? Porque, já livre dos morcegos, poderia encontrar um deles, e talvez hematófago, me ameaçando lá em baixo.
II
Também são estranhas as corujas. São aves de rapina que, com seu aspecto diferente, seu hábito noturno e seu voo silencioso, são consideradas símbolos de mau agouro, presságios de morte ou disfarces de bruxas aladas.
Seu canto, ora rouco e profundo, ora trêmulo e estridente, pode parecer assombrado. Ligadas às magias e às doenças, foram temidas ao longo da história, mas também foram consideradas valiosos amuletos de cura.

A Corte das Corujas é uma organização secreta combatida por Batman que existe em Gotham há séculos.
Para os índios mojave, as pessoas se tornavam corujas após a morte, estágio intermediário antes de virarem besouro e, finalmente, puro ar. Para os gregos, corujas representavam a sabedoria. Para mim, são aves enigmáticas que parecem humanas e pelas quais sempre fui atraído. Então, estão aqui na boa companhia dos morcegos.
Assim como os morcegos, as corujas apresentam dois tipos, claro que com nomes complicados: titonídeos e strigídeos. Além de pequenas diferenças anatômicas, elas se distinguem pelo formato da face, as primeiras no desenho de coração e as segundas de círculo.
As titonídeos se originaram primeiro, há 60 milhões de anos. Corujas ocupam todas as regiões do planeta, exceto as polares. Embora com uma forma corporal bem estável, são aves muito variadas, com duas centenas de espécies que vão nos extremos desde 50 g até quase 5 kg.

As corujas titonídeos e strigídeos se diferenciam pelo formato da face.

Coruja stringideo.
Por serem animais de rapina, as corujas são caçadoras muito eficientes, devido a seus olhos aguçados e seus movimentos rápidos. São também bastante atentas ao ambiente e podem voar silenciosamente.
Em geral possuem penachos na cabeça, olhos grandes e frontais. São animais de hábitos notívagos, alimentando-se sobretudo de mamíferos pequenos como ratos, além de insetos, aranhas e peixes.
As fêmeas são curiosamente maiores e mais escuras do que os machos. Corujas podem ou não ser monogâmicas. Durante o período reprodutivo, elas cantam para atrair os parceiros sexuais. Normalmente só se reproduzem quando há fartura de alimento. Produzem dois a três ovos por vez. São bastante longevas, vivendo até 24 anos.
Veja que ave diferente é uma coruja. Seus grandes olhos nos fitam não com medo ou ameaça, mas com inteligência. Suas orelhas parecem colocá-la numa posição alerta, como se estivesse indagando sobre nós. E seu corpo redondo aparenta esconder mistérios no seu interior. Uma ave vigilante e pensadora.
De fato, há pelo menos três características notáveis nas corujas. A primeira é o aspecto da face. Ela se assemelha às humanas pela presença de olhos voltados para a frente. Eles são grandes, fixos e tubulares, extravasando para fora das órbitas onde não cabem completamente. Isto dá às corujas uma visão profunda, mas não periférica.

Os olhos das corujas funcionam como uma lente que intensifica a visão. São as únicas aves com esse dispositivo.
Para compensar, possuem músculos que fazem girar a cabeça até 270⁰, aumentando o campo de visão – isto representa 1½ vezes o nosso alcance. Suas pupilas dilatadas permitem imagens muito mais claras do que as nossas, fazendo-as enxergar no escuro, embora com menor percepção de cores.
Os seres humanos desenvolveram um cérebro poderoso, capaz de criar a memória, a consciência, a linguagem. Mas o preço a pagar foi o seu tamanho – consomem ¼ da energia de todo o corpo e tornam as nossas crias indefesas no começo da vida.
As corujas também tiveram que aumentar suas cabeças para acolher os olhos, contrariando a tendência à diminuição do peso nas aves. Por isso, o formato tubular dos olhos foi a solução: eles são enormes, mas as partes periféricas foram removidas e os músculos foram destinados a outras funções que não o movimento dos olhos, diminuindo seu peso.
Como caçam em situações de pouca luz, as corujas desenvolveram uma audição muito eficiente. Possuem ouvidos externos pontudos e assimétricos, em forma, posição e tamanho – bem como penas reflexivas na face para coletar o som.
Isto permite que possam comparar diferenças sutis na sonoridade e saber a localização exata de suas presas. Normalmente não precisam movimentar a cabeça, pois percebem os sinais tanto no eixo vertical como no horizontal.

As asas das corujas têm uma construção maravilhosa que permite seu voo silencioso.
A terceira característica é a sua plumagem. Ela é macia, o que reduz o ruído das asas durante o voo, fazendo com que as corujas apareçam de repente. Além disso, a plumagem permite que elas se camuflem no ambiente, sendo quase invisíveis contra as cascas dos galhos.
Para ajudar o voo silencioso, dispõem de uma franja rígida frontal ao longo das asas, que penteia e direciona o ar. Nas extremidades traseiras das asas, possuem uma franja macia para reduzir a turbulência do voo.
A maioria das corujas grandes abre suas asas até a metade e as giram para frente, de modo que as penas são levantadas, ficando com uma aparência assustadora. Este comportamento é usado tanto para proteção do ninho, como para afugentar ataques inimigos.
Assim como outros predadores de topo da cadeia, as corujas auxiliam no controle populacional de presas como os roedores. Elas consomem uma grande quantidade de ratos e insetos, saneando os ecossistemas. Evitam aumentos populacionais que trariam efeitos indesejáveis na natureza, nas cidades e nas plantações.
Eu enxergo as corujas como animais misteriosos, sedutores e poderosos – e como aves que protegem silenciosamente a natureza.
Queria de novo acrescentar um comentário pessoal. Existe em Sergipe o Parque dos Falcões, considerado o único local de criação de aves de rapina no Brasil. É um lugar simples, no sopé da Serra de Itabaiana, resultado do longo e devotado trabalho de Percílio Costa.

Percílio adestrando um gavião no Parque dos Falcões de Sergipe.
Quando menino, ele ganhou um dia um ovo de galinha. Para sua surpresa, ele chocou um gavião, que chamou de Tito e se tornou seu amigo inseparável. Tito (que era uma fêmea) dormia com ele e, diz Percílio, ensinou-o tudo o que sabe.
E Percílio aprendeu a conservar e manejar aves de rapina, fundando com um amigo o seu Parque, que hoje é uma ONG. Ele conta: Desde que Tito nasceu eu jurei proteger as aves de rapina. Cada uma delas faz parte da minha vida. Eu vim ao mundo para isso. E sou feliz.
Sempre admirei corujas, já conhecia o Parque e um dia liguei a Percílio para saber como ter uma. Claro que me falou sobre a burocracia do IBAMA para a adoção. Disse-lhe que sobreviveria a ela. Mas ele me lembrou que corujas comem ratos. Sem problema, descubro onde comprá-los. Mas ratos vivos, ele me disse. Terminou aí, antes mesmo de começar, o meu criatório de corujas.















