Animismo

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Quando comecei a esboçar este capítulo, não percebi que falaria do animismo, mas ele se infiltrou a ponto de me obrigar a começar, ao invés de não só terminar por ele. Pois é assim o animismo, uma crença sinuosa que parece emergir á nossa volta, e não aparecer de fora.

Animismo

Eu diria que um praticante do animismo acredita que o mundo é uma só realidade, abarcando a interioridade das pessoas e a exterioridade da natureza. Portanto, nós não estaríamos separados das coisas – um monismo por oposição a um dualismo.

Essa realidade é grandemente espiritual, pois inclui poderes, visões, saberes, premonições e feitiços. E é comum que estas manifestações sejam atribuídas a espíritos. Eles habitam não só os humanos, mas todo o ambiente – desde o raio e o trovão, a luz e a sombra, a estrela e o mar, a árvore e o lago, o fungo e a relva.

No animismo, o mundo é unificado e habitado pelos espíritos.

A descendente de índios macuxi Julie Dorrico usa esse termo maravilhoso: gentes não humanas. Ela conta: Falamos com passarinho, comemos beiju com carne de caça, corremos de raposa parida. Nadamos em lagoa encantada, somos curados com fumaça. Nós somos filhos do ar, nós somos filhos da água, da mata e do entardecer.

Os espíritos não são subordinados aos seres ou aos objetos em que habitam, e sim estes é que dependem deles. Embora atribuído aos povos primitivos, anteriores às chamadas religiões organizadas, o animismo pode ser encontrado em grandes religiões atuais como o hinduísmo e o budismo, e traços dele em todas as demais.

Ele se manifesta pela existência de fadas, elfos e demônios, de monstros, anjos e fantasmas, de ídolos, totens e xamãs, de canções, cerimônias e encantamentos. Para mim, o animismo é a crença na realidade mágica da vida.

Você já se deitou na clareira de uma floresta e ficou observando o lento movimento dos galhos e folhas, e talvez mesmo troncos, acima de você? Na minha experiência, o tempo se torna imóvel e o espaço, vertiginoso. Uma canadense formada em silvicultura também fez isto, e com resultados mais reveladores do que os meus.

Suzanne Simard é professora de Ecologia Florestal no Canadá. Ela pesquisou a comunicação entre as árvores da floresta, com resultados surpreendentes.

Ao estudar o comportamento das mudas de abetos numa floresta, Suzanne Simard notou que a eliminação das mudas concorrentes de bétulas, ao invés de favorecer o crescimento, na realidade causava o declínio e depois a morte dos abetos. Ela começou a desconfiar que as mudas realmente não concorriam entre si.

Resolveu injetar carbono nessas mudas e descobriu que as bétulas e os abetos surpreendentemente o compartilhavam. Bétulas recebiam carbono adicional dos abetos quando perdiam suas folhas e forneciam carbono aos abetos quando estes estavam na sombra.

Abetos e bétulas são madeiras de clima temperado, não encontradas no Brasil. Os abetos são árvores grandes semelhantes aos pinheiros e as bétulas são pequenas, com um cerne resistente. Na realidade, Simard também incluiu os cedros no seu experimento. Esssa árvores de uma região diferente não trocaram carbono com as demais. Ou seja, a relação entre as mudas só existia entre espécies de mesma ecologia.

A vida na comunidade subterrânea entre fungos e raízes.

Simard identificou algo hoje conhecido como árvores mães. Elas eram os maiores exemplares nas florestas e funcionavam como pivôs centrais para vastas redes subterrâneas de fungos e raízes. Uma árvore mãe ajudava os brotos, infectando-os com fungos e fornecendo os nutrientes para seu crescimento.

Ela descobriu que as espécies se protegiam mais do que às espécies diferentes, que as árvores adultas liberavam carbono e espaço às jovens, que as espécies moribundas cediam seus nutrientes em benefício da floresta.

Simard constatou que as árvores usavam a rede de fungos para trocar nutrientes entre si. E que os fungos também se beneficiavam destas permutas, absorvendo orgânicos e liberando minerais. Fungos não dispõem de clorofila e árvores de enzimas, mas se supriam reciprocamente como se tivessem – num exemplo de mutualismo ecológico.

Simard enxergou a floresta como um sistema cooperativo no qual as árvores falavam entre si, numa manifestação de animismo vegetal. Ela chamou essa rede de wood wide web, numa referência à rede da internet. Elas produziam uma inteligência conjunta que descreveu como sabedoria da floresta.

Os fungos não são algas, nem bactérias ou musgos. Os líquens são um bom exemplo da versatilidade dos fungos, pois resultam da simbiose de um fungo com uma alga. Fungos existem no mundo inteiro e em ambientes extremos, sejam desérticos, radioativos ou glaciais. São responsáveis por boa parte da decomposição da matéria.

São inacreditavelmente variados e, até hoje, pouco conhecidos, por serem pequenos e subterrâneos. Podem ser predadores ou parasitas, porém podem também contribuir para o ciclo de vida e nutrição dos organismos, em especial das plantas. São tóxicos e pesticidas, mas também alimentícios e medicinais.

Fungos me lembram corais, pois são criaturas que partilham de situações contraditórias: são animais porém semelhantes a plantas, num certo sentido não começam nem terminam, ora parecem vivos ora mortos, não se sabe se possuem e transmitem sua vivência, se são indivíduos ou comunidades. Robert Macfarlane diz que os fungos desafiam nossos modelos usuais de tempo, espaço e espécie.

Imagem da chamada micorriza, associação subterrânea entre fungos e raizes. Os fungos aparecem na cor clara.

Macfarlane comenta sobre o maior fungo conhecido: habita o Oregon nos Estados Unidos, existe há pelo menos 2 mil (ou talvez 9 mil) anos e se estende por inacreditáveis dez km². Aparece acima do solo sob a forma de cogumelos pardos, mas manifesta toda a sua força abaixo dele.

Como fazem os fungos, lá ele lança seu emaranhado de ramificações compostas por filamentos. Ele avança à busca de organismos que possa matar, assimilar ou com quem se fundir, garantindo sua alimentação e reprodução.

Os fungos são muito antigos: começaram a ser esboçados há 1½ bilhões de anos, mantendo-se aquáticos até talvez ½ bilhão de anos atrás. A partir de então colonizaram a terra, tornando-se dominantes após a Extinção do Permiano há ¼ de bilhão de anos. Sua relação com as plantas data do período em que se tornaram terrestres e é um notável exemplo de mutualismo.

Animais pequenos, de vida longa e crescimento lento, com corpos moles e ramificados, de formas, funcionamento e ambientes variados, terrivelmente resistentes, os fungos ao decomporem e reciclarem a matéria, são interfaces entre a vida e a morte. Não surpreende que participem como alucinógenos dos rituais animistas.

Então li sobre a linguagem dos potawatomi, nativos das pradarias norte-americanas. Talvez seja equivalente ao nosso nheengatu amazônico ou ao guarani paraguaio, derivados do tupi – aliás, todos são faladas até hoje. Essa nação indígena, à semelhança das nossas, foi deslocada de suas terras, atacada e espoliada pelos colonizadores e depois relocada para diversas reservas nos Estados Unidos.

A língua dos potawatomi é principalmente verbal, no sentido em que é dominada por verbos, pois o mundo inteiro e não só os humanos tomam parte da vida – o animismo invade quase todas as palavras. Animais e árvores estão vivos, mas também montanhas, rochas, ventos e fogo. Igualmente, a vida inspira suas histórias, canções e ritmos.

Os potawatomi eram índios do ramo algonquino das grandes pradarias. Foram naturalmente desalojados pelos colonos.

A botânica Robin Kimmerer é professora de meio-ambiente e biologia florestal. Ela defendeu nos seus escritos o ensino dos saberes tradicionais, uma forma de conhecimento ligada aos povos nativos. Ela o chama de ways of knowing – algo fácil de entender mas difícil de traduzir. Foi o que aconteceu com ela, cuja família tinha laços com os potawatomi, e ela continuou até hoje ligada a eles.

Ela diz que ser uma baía significa que a água viva decidiu se abrigar entre suas encostas, conversando com as raízes dos cedros e os bandos de patos jovens nas suas margens. Kimmerer conclui que uma baía é um substantivo apenas se a água estiver morta. A língua que ela estudou convive com o emaranhado animista e evoca o mistério da vida.

A interrelação entre as árvores mediada pelos fungos, num trabalho persistente, silencioso e subterrâneo, me faz pensar no animismo do mundo. Na década de 1970 o cientista James Lovelock propôs a Hipótese de Gaia, segundo a qual a terra seria um único organismo vivo.

Ao trabalhar numa equipe da NASA norte-americana, Lovelock concluiu que nossa atmosfera era bem diferente da que deveria ter resultado de um planeta como o nosso, situado entre Vênus e Marte, por conter os gases propícios à vida. Essa composição só poderia ser explicada pela ação dos organismos vivos sobre o mundo mineral.

A composição das diferentes atmosferas, ponto de partida para a Hipótese de Gaia de James Loverlock.

Segundo ele, após surgir num planeta deserto, a vida assumiu o controle do ambiente inorgânico e passou a modificá-lo em seu próprio benefício, a fim de que a vida pudesse prosperar. Surgiu então desse processo um sistema complexo e auto regulador que chamou de Gaia.

O mundo se torna de novo estranhamente variado e vibrante. O gelo respira. A rocha tem marés. As montanhas recuam e avançam. A pedra pulsa. Vivemos numa Terra inquieta, escreveu Robert Macfarlane. Talvez ele não seja animista, mas exprimiu a sensação de um planeta vivo.

Apesar de Lovelock dizer mais tarde que esse sistema funcionava como se fosse vivo, muitos de seus leitores passaram a acreditar que a própria terra seria um ser vivo. Vale dizer, dotado de alguma forma de inteligência e propósito. Seja como for, Lovelock contribuiu para a percepção animista de que a vida era uma teia de relações abrangendo o mundo inteiro.

Aqui Lovelock, aos 85 anos, posa com a Deusa da Terra grega Gaia.

No fim desta jornada, eu me pergunto sobre a utilidade e a realidade do animismo.

Na medida em que o homem dominou a natureza, modelando-a aos seus interesses, esses espíritos do clima, dos elementos e da geografia passaram a ficar mudos. Como se os humanos tivessem se ausentado do mundo e o mundo deles. O animismo deixou de ser subjetivamente útil, ao perder seu significado para os homens.

Por outro lado, objetivamente Gaia pode de fato viver, independente das nossas crenças. E o mundo ser maior do que o homem. Assim, o rústico e ancestral animismo pode afinal ser a realidade de nossas vidas.

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Sobre o autor

Nasci no Rio, vivo em São Paulo, mas meu lugar é em Minas. Fui casado algumas vezes e quase nunca fiquei solteiro. Meus três filhos vieram do primeiro casamento. Estudei engenharia e depois administração, e percebi que nenhuma delas seria o meu destino. Mas esta segunda carreira trouxe boa recompensa, então não a abandonei. Até que um dia, resultado do acaso e da curiosidade, encontrei na natureza a minha vocação. E, nela, de início principalmente as montanhas. Hoje, elas são acompanhadas por um grande interesse pelos ambientes naturais. Então, acho que me transformei naquela figura antiga e genérica do naturalista.

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