Existe uma foto circulando na internet que é mais famosa que a pessoa que nela está. Essa fotografia registra o momento certeiro em que uma pessoa pula uma grande fenda no meio de uma geleira em uma montanha (foto ao lado). Para muita gente, isso acabou tendo um significado muito maior do que a cena ali registrada: a superação de conseguir vencer obstáculos! Talvez por conta desse significado, a foto acabou sendo usada por uma comunidade no Orkut que tinha milhares de seguidores, circulando de tal forma pela internet que tornou anônimos o autor do click, meu amigo e parceiro de aventuras Maximo Kausch, e a pessoa que está na foto: eu!
Para mim, aquela foto era somente o registro certeiro que o Max fez no momento em que eu pulei uma greta no Cerro Tronador, na Patagônia argentina, em 2003. Não houve nada de mágico, apenas o necessário para a gente prosseguir e atingir o cume da montanha, que foi o que aconteceu horas mais tarde.
Na hora que vi minha foto estampada naquela comunidade que se chama “Às vezes vale a pena arriscar”, eu não entendi aquilo e fiz o seguinte questionamento: por que as pessoas criam uma comunidade, que agrega milhares, dizendo que “às vezes” vale a pena arriscar? Para mim vale a pena arriscar o tempo todo e em todos os sentidos! Quando era adolescente e morava na pequena Itatiba, no interior de São Paulo, eu era muito indagador e sonhador, sempre clamando por liberdade, que é um valor um tanto que subjetivo para a maioria das pessoas.
A liberdade para mim está em realizar meus sonhos e ser feliz, e isso sempre me levou a buscar uma liberdade maior do que essa metafísica, para cair no mundo físico real, ou seja, estar livre para experimentar e ver o mundo de cima… Sonhava desde garoto poder escalar montanhas, conhecer territórios selvagens e, enfim, caminhar livremente calibrando minha energia com a da natureza. Com isso em mente, juntei dinheiro durante um bom tempo, deixando de fazer coisas que alienavam as pessoas da minha idade, como ir a baladas, beber e consumir roupinhas da moda. Quando fiz 18 anos, eu e o autor daquela famosa foto, Maximo Kausch, juntamos nossos precários equipamentos e nos lançamos pelo mundo. Eu estava realizando meu sonho.
Cheguei a prestar e a passar no vestibular, mas não me matriculei na faculdade, fui viajar! Quantos naquela idade falam mal do sistema, clamam por liberdade, mas vivem às custas da família no comodismo? É comum o adolescente bater o pé, se revoltar, porém, quando os pais abrem a porta de casa e dizem "Vá!", eles percebem as dificuldades de viver e voltam para a chamada "estabilidade" que destrói tantos sonhos… Meu pai abriu a porta de casa, e eu fui parar na Patagônia, de carona! Foram 10 mil quilômetros percorridos no dedão. No meio do caminho, escalamos uma montanha com quase 6 mil metros, vi a lava dentro da cratera de um vulcão, conheci o que é gelo, neve, frio e solidão. Aprendi a cozinhar, a costurar, a falar espanhol e aprimorei o inglês. Só não cortei a barba! Conheci muita gente e um mundo novo e mágico: o universo do montanhismo, para o qual sempre retornei.
Fiz tudo isso com quase nenhum recurso, não tinha dinheiro para ficar em hotel e tive que dormir sempre em barraca. Quando anoitecia e eu estava em alguma cidade, tinha que improvisar. Cheguei a dormir em rodoviária e em estação de trem, mas dormi também dentro de casas abandonadas e em terrenos baldios… Também já montei barraca em parques urbanos e no acostamento de estrada. Me arrisquei bastante! Mesmo com pouco dinheiro e saudades de casa, conseguimos fazer a viagem inteira, como havíamos planejado, e ainda sobrou dinheiro para, seis meses mais tarde, podermos embarcar rumo ao Peru, passando pela Bolívia e as ruínas de Machu Picchu.
O montanhismo me fisgou de tal maneira que nunca mais consegui largá-lo. Um ano mais tarde escalei o Aconcágua também com poucos recursos e sem mulas pra carregar minhas tralhas! Fui também para o remoto e distante Tupungato, que deve ser uma das montanhas com aproximação mais longa dos Andes. São cerca de 70 km caminhando para chegar à base da montanha. Começamos a caminhar aos 1.800 metros e o cume fica a 6.500. Fomos para lá de carona também! Nosso estilo de praticar montanhismo sempre prezou pela independência. Como a gente nunca tinha dinheiro, precisávamos improvisar sempre. Sem querer, acabamos praticando um “estilo alpino” de pobre que chamamos de “ estilo gente de montanha”: Ir para a montanha usando transporte público, viajando entre os países de ônibus, carregando todo o peso nas costas, não contratando guias e ainda improvisando nos equipamentos.
Foi arriscado? Foi mais difícil? Certamente. Mas valeu a pena. Com o passar do tempo fomos evoluindo. Em 2004 eu ganhei um GM Corsa usado e deixei de ir para a montanha de “busão” e “trem da morte”. Ia agora de Corsinha, e com ele eu cheguei a 5 mil metros na base do vulcão Incahuasi, montanha de 6.600 metros localizada na Puna do Atacama, um lugar tão remoto que deixei o carro aberto com a chave no contato, para eu não a perder durante a escalada na montanha. Percebi que o carro não servia para isso… Mesmo assim um ano depois voltei aos Andes com outro Corsa, desta vez de uma amigo. Meu Corsinha, que foi apelidado de Cabrito (não sei por quê) deixou saudades: rodei 140 mil quilômetros em um ano e meio com ele…
Impressionante como o odomêtro roda mais rápido comigo! Por conta de tudo isso, juro que não entendia porque milhares de pessoas se reuniam naquela comunidade que recebeu minha foto para ficarem debatendo se eles se arriscariam por algo ou alguém. As pessoas têm medo de arriscar, têm medo de viver, e o odômetro do carro delas anda em câmera lenta. Isso não é porque temem a desvalorização do veículo, mas sim porque não valorizam sua própria vida.
Já fui criticado por me arriscar demais, por fazer aquilo que as pessoas julgam de loucura. Pular a greta foi fichinha diante de tanta coisa que podia ter me matado e me aleijado. Não me tornei o melhor montanhista do mundo, nem nunca realizei grandes feitos esportivos. Não espere que eu escale vias difíceis, nem conquiste montanhas famosas, tudo o que fiz foram grandes feitos pessoais. Nunca busquei notoriedade tentando percorrer o caminho dos famosos, mas me tornei famoso por seguir meu próprio caminho, ainda que existam fotos minhas que são muito mais famosas do que eu.
Valeu a pena arriscar? Para realizar o meu sonho, sim! Porém, apesar de importante, isso não é tudo, pois aprendi que liberdade não é nada quando não se sabe o que fazer com ela e não se tem alguém com quem compartilhá-la. Hoje é exatamente isso o que eu busco, arriscando-me em outras áreas além do montanhismo que sei que me trarão muita felicidade também.
A segurança é uma prisão sem risco à felicidade.